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Processo n.º 81/2018
Recurso penal
Recorrente: A
Recorridos: Ministério Público e B
Data da conferência: 5 de Dezembro de 2018
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Condição da suspensão da execução da pena de prisão
- Dever de indemnização
  
  SUMÁRIO
1. Ao abrigo do n.º 2 do art.º 48.º do Código Penal, a determinação de cumprimento de deveres (incluindo o pagamento de indemnização) como condição da suspensão da execução da pena depende da consideração e do juízo do tribunal sobre a sua conveniência e adequação à realização das finalidades da punição.
2. A imposição do dever de indemnização, destinada a reparar o mal do crime, não pode em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir.
A Relatora,
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Por acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 15 de Dezembro de 2017, A, arguido nos presentes autos, foi condenado, pela prática de um crime de burla p.p. pelo art.º 211.º n.ºs 1 e 4, al. a), conjugado com o art.º 196.º, al. b), e um crime de falsificação de documento p.p. pelo art.º 244.º n.º 1, al. a), todos do Código Penal, nas penas de 2 anos e 6 meses de prisão e de 5 meses de prisão, respectivamente.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos.
O Tribunal julgou ainda procedente o pedido cível deduzido pelo demandante cível (e assistente) B, condenando o arguido no pagamento de uma indemnização no montante de MOP 1,962,959.00, com juros legais a contar da sentença até ao pagamento integral da quantia.
Inconformado com a decisão, recorreu o assistente B para o Tribunal de Segunda Instância, que julgou parcialmente procedente o recurso, determinando que o arguido se obriga a pagar a indemnização fixada pelo TJB em 12 prestações e dentro de um ano após o trânsito em julgado do acórdão, como condição da suspensão da execução de pena.
Deste acórdão vem agora o arguido A recorrer para o Tribunal de Última Instância, alegando que:
I. Falta de fundamentação
- O acórdão recorrido faz fundamentação apenas relativamente à fixação ou não da condição da suspensão.
- No entanto, ignora completamente nem fundamenta porque escolha, dentro dos deveres enumerados no art.º 49.º, n.º 1 do Código Penal de Macau e viáveis na lei, apenas o da indemnização integral ao invés dos outros (tais como: indemnização parcial).
- Com base nisso, é nula por causa da falta de fundamentação a decisão do acórdão recorrido de escolher como condição da suspensão da execução da pena o pagamento integral da quantia superior a MOP 1,900,000 dentro dum ano. (art.º 355.º, n.º 2 e art.º 360.º do Código de Processo Penal)
II. Condição ilegal e improporcional da suspensão da execução da pena
- Como refere o acórdão recorrido, são seguintes os factos provados na decisão condenatória de primeira instância (vide página 9 do acórdão recorrido):
“O arguido admitiu voluntariamente os factos criminosos acusados.”
“É seguinte a situação pessoal e familiar do arguido:
- O arguido é condutor de táxi, auferindo mensalmente MOP 15,000 a MOP 18,000.
- Tem dois filhos menores a seu cargo.”
“O arguido adquiriu o vício de jogos antes do acontecimento da causa.”
“Posteriormente, o arguido determinou-se a abandonar o vício de jogos e, em 2014.11.12, requereu a “Auto-Exclusão” junto da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) e aceitou os serviços de orientação prestados por instituições de prevenção e tratamento do jogo problemático, por período de 2 anos, o que foi autorizado pela Direcção.”
“Na última dezena do Fevereiro de 2016, o arguido requereu mais uma vez junto da DICJ a “Auto-Exclusão por período de 2 anos, o que foi autorizado pela Direcção.”
“Até hoje o arguido não jogou, nem cometeu outro crime. A vida dele ficou normal.”
- Sem dúvida, o estabelecimento de condição da suspensão é destinado a reparar o mal do crime (art.º 49.º, n.º 2 do Código Penal de Macau).
- Porém, dispõe o art.º 49.º, n.º 2 do Código Penal que “não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir”.
- O que revela os princípios da legalidade e da proporcionalidade, evitando a “suspensão imprópria da suspensão da execução da pena” – por um lado suspender a execução da pena e, por outro lado, decidir pela execução mais tarde.
- Na situação de que a indemnização de valor elevado excede demasiado a capacidade económica do recorrente, a fixação desta condição da suspensão, pagar a indemnização de MOP 1,962,959.00 dentro de um ano, a qual viola absolutamente a lei e o princípio da proporcionalidade, não é nada diferente da condenação do recorrente na pena de prisão, porque não é possível este realizar e cumprir o dever.
- Por isso, o acórdão recorrido alterou a condenação e fixou a condição da execução da pena, o que viola manifestamente a lei e o princípio da proporcionalidade.
III. Possibilidade de ser alterada a decisão condenatória de primeira instância sem erro ou vício
- Concorda muito com a declaração feita pelo juiz vencido constante no acórdão recorrido (página 12 e 13 do acórdão recorrido, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido).
- É de notar subsidiariamente que, depois de adquirir a impressão geral sobre o arguido na audiência de julgamento por via dos princípios da imediação e da oralidade, bem como ponderar a necessidade da prevenção criminal e a indemnização civil, o Tribunal Judicial de Base não fixou condição da suspensão da execução da pena na decisão condenatória de primeira instância (equivalendo à não fixação de condição).
- A não ser que a não fixação de condição da suspensão da execução da pena na decisão condenatório de primeira instância fosse ilegal ou padecesse de erro ou vício, não existia qualquer fundamento de direito a permitir o tribunal recorrido alterar a condenação.
- Assim sendo, não há qualquer fundamento de direito para a alteração da decisão ou a fixação de condição de suspensão da execução da pena.
IV. Cumprimento da indemnização civil
- Para efeito do cumprimento da obrigação da indemnização civil na decisão condenatória de primeira instância, o recorrente tem pago, conforme o acordo com o assistente, a maioria do rendimento mensal, MOP 15,000, ao assistente por via da transferência bancária. (Doc. 1)

Respondeu o Ministério público, apresentando as seguintes conclusões:
1) Relativamente à falta de fundamentação prevista no art.º 355.º n.º 2 do Código de Processo Penal e, por consequência, nulidade prevista no art.º 360.º n.º 1, al. a) do mesmo Código, como julga o Tribunal de Segunda Instância em 2013.12.12, no processo n.º 610/2011, com o qual temos concordado:
“1. Apenas aparece a nulidade referida no art.º 355.º, n.º 2 do Código de Processo Penal quando o tribunal falta absolutamente à fundamentação de facto e de direito.”
2) No acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância no presente caso, podemos ver claramente a decisão pela condição da suspensão da execução da pena de o arguido / recorrente A no pagamento dentro de um ano da quantia de MOP 1,962,959.00, nos termos do art.º 49.º do Código Penal, o qual atribui o julgador impor deveres ao condenado destinados a reparar o mal do crime. O julgador tem, em obediência à equidade e sem violação a lei, discricionariedade para decidir a escolher o dever de pagamento ao lesado da indemnização integral ou aquele de pagamento da indemnização parcial.
3) A fundamentação do acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância basta satisfazer a exigência do art.º 355.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
4) Assim sendo, afigura-se-nos que não faz sentido a imputação contra o acórdão recorrido feita pelo recorrente A, o qual não viola o art.º 355.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Por isso, não existe a nulidade referida no art.º 360.º, n.º 1, al. a) do mesmo Código.
5) Condição ilegal e improporcional de suspensão da execução da pena. O recorrente A alega que o acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância não pode alterar a decisão e fixar condição da suspensão da execução da pena, quando a não fixação de condição da suspensão da execução da pena na decisão condenatório de primeira instância não era ilegal ou padecia de erro ou vício, bem como que a condição de suspensão de o recorrente A pagar integralmente a quantia de MOP 1,926,959.00 dentro de um ano, excede a capacidade económica do recorrente e “representa para o condenado obrigação cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir”, a qual viola manifestamente a lei e o princípio da proporcionalidade, não é nada diferente da condenação do recorrente na pena de prisão, porque não é possível este realizar e cumprir o dever.
6) Como se refere no acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância, quer no círculo académico quer na prática judicial, vem entendendo que a subordinação de tal suspensão ao cumprimento do dever de indemnizar do art.º 49.º do Código Penal, o lesado não pode levar a confundir ou a identificar uma tal imposição com qualquer obrigação indemnizatória de natureza civil, pois que se trata, única e exclusivamente, de uma condição de natureza meramente penal, cuja função se circunscreve ao âmbito do instituto da suspensão e visa reforçar as finalidades da punição. No entanto, atentos os princípios da “razoabilidade” ou da “exigibilidade”, não devem ser impostos deveres, (nomeadamente o de indemnizar), sem que seja viável a possibilidade de o arguido os cumprir.
7) Assim sendo, é de notar que o Tribunal de Segunda Instância ignorou com efeito a considerar se era suficiente a capacidade económica do recorrente A para cumprir o dever, ou os princípios da “razoabilidade” ou da “exigibilidade”, porque o recorrente A, condutor de táxi, que auferia mensalmente MOP 15,000 a MOP 18,000, se obrigava a pagar integralmente MOP 1,962,959.00 dentro de um ano, ou seja, ele pagava mensalmente uma quantia de MOP 163,579, a qual era 10 vezes mais do que rendimento mensal!
8) Este dever de suspensão da execução da pena é impossível, quer na vontade subjectiva do recorrente A quer na situação objectiva comum, o qual não alcança as finalidades da suspensão da execução da pena, nem é diferente da pena de prisão de forma dissimulada. Ademais, salvo o devido respeito, existe a suspeita de confundir a imposição do dever de indemnizar com a obrigação indemnizatória de natureza civil.
9) Reafirma-se aqui a posição do Ministério Público no presente caso. Em primeiro lugar, não se pode exigir o recorrente A a pagar integralmente a indemnização no montante de MOP 1,962,959.00 dentro de um ano no período da suspensão da execução da pena por três anos. De acordo com a promessa feita pelo arguido na audiência de julgamento, ele tinha a sinceridade a pagar a indemnização e queria pagar mensalmente MOP 15,000 ao lesado. Por outras palavras, o recorrente A queria e era capaz de satisfazer a condição da suspensão da execução da pena fixada pelo tribunal superior.
10) Além disso, o recorrente A tem um quarto da propriedade da fracção em causa, a qual vai ser vendida por leilão no Tribunal Judicial de Base. Ou seja, vendida por leilão a propriedade do recorrente A, a quantia serve para pagamento da indemnização ao lesado / assistente B.
11) Subordina-se nesta fase a suspensão da execução da pena à condição de o recorrente A pagar mensalmente MOP 15,000 no período da suspensão por três anos, o que, por um lado, pode revelar a sinceridade do recorrente A para corrigir-se e alcançar as finalidades de prevenção. Por outro lado, este montante é aproximado àquele da indemnização de MOP 1,962,959.00 e os juros legais, o qual pode servir para indemnizar os danos sofridos pelo lesado / assistente B, não prejudicando a revogação posterior desta condição se a quantia adquirida por leilão é suficiente para pagamento da indemnização.
12) Nestes termos, o acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância viola o art.º 49.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal. Afigura-se-nos procedente esta parte do recurso do recorrente A. Atento o montante de burla, as circunstâncias da causa e a capacidade económica do recorrente A, deve ser mantida a decisão do colectivo do Tribunal de Segunda Instância de subordinar à condição a suspensão da execução da pena e alterada a condição para “o arguido A pagar, antes ou no dia 10 de cada mês no período da suspensão da execução da pena por três anos após a transição em julgado do acórdão, a quantia de MOP 15,000, como cumprimento em prestações da indemnização (MOP 1,962,959.00)”.

Nesta instância, a Digna Procuradora-Adjunta do Ministério Público mantém a posição já assumida na resposta à motivação do recurso, pugnando pelo provimento parcial do recurso.
Foram corridos vistos.
Cumpre decidir.

2. Os Factos
Nos autos foram considerados provados os seguintes factos:
- O arguido A é o dono da empresa de [Agência Imobiliária].
- Em Abril de 1994, os quatro irmãos, arguido, C, D e E, compraram juntos a fracção situada em [Endereço], cada uns dos quatro irmãos possuindo um quarto da propriedade da fracção.
- Em Junho de 2014, o arguido, visando a pagar a dívida de jogos, queria vender sem autorização toda a propriedade da fracção.
- O ofendido B ficou a saber por meio de Internet que a empresa [Agência Imobiliária] estava a vender a fracção acima referida e contactou o arguido.
- Em Junho de 2014 (dia incerto), o arguido chegou em acordo com o ofendido sem autorização dos outros proprietários da fracção, o qual tinha o conteúdo de que o arguido vendeu a fracção ao ofendido no preço de HKD 5,300,000.00.
- O ofendido sabia que o arguido era um dos proprietários e pagou uma quantia de HKD 200,000.00 em numerário como sinal da compra da fracção.
- Em 2014.6.24, quando o arguido e o ofendido celebraram o contrato-promessa de compra e venda n.º XXXXX, o arguido preencheu no lugar de vendedor as palavras “por todos os proprietários da fracção”. O ofendido acreditou o arguido e pagou ao arguido o sinal de HKD 800,000.00 por transferência à conta bancária da [Agência Imobiliária] (vide fls. 30 e 115 dos autos).
- Em 2014.7.7, o arguido preparou mais um contrato-promessa de compra e venda n.º XXXXX, no qual tinha assinado previamente o nome dele no lugar de vendedor e falsificou as assinaturas da mulher dele F, do C, do D e da mulher deste G, do E e da mulher deste H. Mostrou o contrato ao ofendido, deixando este a assinar no lugar de comprador. Depois de assinar o contrato, o ofendido pagou ao arguido o sinal de HKD 800,000.00 por transferência à conta bancária (vide fls. 31, 116 e 152 dos autos).
- O ofendido pagou três vezes ao arguido o sinal no total de HKD 1,800,000.00 e pagou à Direcção dos Serviço de Finanças o imposto de selo no montante de MOP 108,959.00 por causa do negócio acima referido.
- O arguido já usou o sinal pago pelo ofendido para reembolso da dívida de jogos.
- Em 2014.11.5, o C ficou a saber o negócio e fez a denúncia perante a Polícia Judicial. Posteriormente, o ofendido B não era capaz de adquirir a fracção em causa.
- De facto, os outros proprietários C, D e E não sabiam o negocia, não autorizaram o arguido a tratar do negócio, nem assinaram com as cônjuges no contrato-promessa de compra e venda n.º XXXXX.
- Os actos do arguido provocaram ao ofendido os danos no total de MOP 1,962,959.
- O arguido praticou livre, voluntaria e conscientemente os actos em causa.
- O arguido, com a intenção de enriquecimento ilegítimo para si próprio, falsificou as assinaturas dos outros proprietários e das cônjuges deles no contrato-promessa de compra e venda, deixando o ofendido a acreditar que podia comprar a fracção por meio do contrato, o qual, por isso, pagou ao arguido o sinal no valor consideravelmente elevado. Em final, o ofendido sofreu de prejuízo patrimonial no valor consideravelmente elevado porque não conseguia comprar a fracção.
- O arguido bem sabia que os actos dele eram ilegais e puníveis pela lei.
São seguintes os factos provados na contestação penal:
- O arguido apanhou o vício de jogos antes da ocorrência dos factos.
- Posteriormente, o arguido determinou-se a abandonar o vício de jogos e, em 2014.11.12, requereu a “Auto-Exclusão” junto da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) e aceitou os serviços de orientação prestados por instituições de prevenção e tratamento do jogo problemático, por período de 2 anos, o que foi autorizado pela Direcção. (Doc. 1)
- Na última dezena do Fevereiro de 2016, o arguido requereu mais uma vez junto da DICJ a “Auto-Exclusão por período de 2 anos, o que foi autorizado pela Direcção. (Doc. 2)
- Até hoje o arguido não jogou, nem cometeu outro crime. A vida dele ficou normal.
Factos provados no pedido de indemnização civil: basicamente iguais àqueles na acusação.
- Também se prova:
- De acordo com o CRC, o arguido foi condenado em 2016.5.5 no processo n.º CR3-16-0052-PCS pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de multa de 90 dias, com quantia de MOP 200 por cada dia, no total na multa de MOP 18,000 ou na pena de prisão de 60 dias. O acórdão já transitou em julgado e o arguido já pagou a multa.
- O arguido admitiu voluntariamente os factos criminosos acusados.
É seguinte a situação pessoal e familiar do arguido:
- O arguido é condutor de táxi, auferindo mensalmente MOP 15,000 a MOP 18,000.
- Tem dois filhos menores a seu cargo.
- Tem como habilitação o ensino de licenciatura.

3. O direito
O Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente da decisão de 1.ª instância, mantendo o período (de 3 anos) da suspensão da execução de pena fixado, impondo no entanto ao arguido ora recorrente a obrigação de pagar a indemnização em 12 prestações e dentro de um ano após o trânsito em julgado do acórdão, como condição da suspensão da execução de pena.
Insurgindo-se contra a determinação da condição da suspensão da execução de pena, imputa o recorrente ao acórdão recorrido os seguintes vícios:
- Falta de fundamentação;
- Ilegalidade e desproporcionalidade da condição da suspensão da execução de pena; e
- Impossibilidade de alterar a decisão condenatória de 1.ª instância sem erro ou vício.
Vejamos se tem razão o recorrente.

3.1. Começamos pelo último vício imputado pelo recorrente.
Na óptica do recorrente, se a decisão do Tribunal Judicial de Base que, depois de adquirir a impressão global sobre o arguido na audiência de julgamento por via dos princípios da imediação e da oralidade e de ponderar as necessidades da prevenção criminal e a indemnização civil, não fixa qualquer condição para a suspensão da execução da pena, for legal e não padecer de erro ou vício, não há fundamento legal para o Tribunal de Segunda Instância alterar a decisão condenatória de 1.ª instância, com imposição de condição da suspensão da execução da pena, tal como sucedeu no presente caso.
Ora, a decisão aqui impugnada foi proferida pelo TSI no recurso interposto pelo assistente do acórdão de 1.ª instância.
Quanto à legitimidade do assistente em recorrer, temos entendido que o assistente não pode recorrer quanto à escolha e medida da pena, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação, como nos casos em que o assistente tenha deduzido acusação, aderido à acusação do Ministério Público ou pretendido que a suspensão da execução da pena aplicada deve ser decretada com a condição de pagamento da indemnização.1
Se se reconhecer ao assistente a legitimidade em interpor recurso quando pretender que a suspensão da execução da pena aplicada seja decretada com a condição de pagamento da indemnização, logicamente há de afirmar que o tribunal de recurso tem evidentemente poder de cognição sobre tal questão, apreciando a bondade da decisão que não impõe aquela condição.
Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 48.º do Código Penal, “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”, sendo um dos deveres o previsto na al. a) do n.º 1 do art.º 49.º do Código penal, referente ao pagamento, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, da indemnização devida ao lesado.
Daí que a determinação de cumprimento de deveres (bem como da observância de regras de conduta e aplicação de regime de prova) depende da consideração e do juízo do tribunal sobre a conveniência e adequação da respectiva medida à realização das finalidades da punição.
No caso positivo, deve o tribunal decretar a suspensão da execução da pena com imposição, cumulativa ou não, de deveres, de regras de conduta ou de regime de prova (art.º 48.º n.º 3 do Código Penal).
Normalmente os deveres, as regras de conduta e o regime de prova são impostos pelo tribunal de 1.ª instância. No entanto, nada impede que, no recurso interposto pelo assistente ou pelo Ministério Público, a questão é apreciada pelo tribunal de recurso, que tomará decisão sobre a imposição daqueles deveres, regras de conduta ou regime de prova.
Saber se a decisão que não fixa condição para a suspensão da execução da pena é legal e não padecer de erro ou vício já é a outra questão, que só vai ser resolvida após a apreciação do recurso.

3.2. Imputa ainda o recorrente a falta de fundamentação (e por conseguinte a nulidade) do acórdão recorrido, alegando que este se limitou a fundamentar a sua decisão relativamente à fixação ou não da condição da suspensão, ignorando completamente e não fundamentando porque escolheu, dentro dos deveres enumerados no art.º 49.º n.º 1 do Código Penal e viáveis na lei, apenas o da indemnização integral, em vez de outros (tal como: indemnização parcial).
Não assiste razão ao recorrente.
Por um lado, o pagamento de indemnização como condição da suspensão da execução da pena foi determinado pelo TSI no recurso interposto pelo assistente do acórdão de 1.ª instância, que pretendia a prorrogação para 5 anos do período de suspensão da execução da pena, com condição de pagamento mensal no mesmo prazo de 5 anos da quantia de MOP 15,000.00.
É esta a questão submetida à apreciação do TSI, sendo que o tribunal deve pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, não podendo conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, sob pena da nulidade da sentença, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, o Tribunal recorrido toma em consideração a disposição no art.º 49.º do Código Penal, fazendo especial referência à finalidade do pagamento de indemnização como condição da suspensão da execução da pena e ao princípio de razoabilidade ou exigibilidade que orienta a determinação dos deveres (nomeadamente o dever de indemnizar) previstos no n.º 1 do art.º 49.º, bem como as circunstancias apuradas no caso concreto, incluindo as condições económicas e da vida do recorrente.
Eis a fundamentação da decisão que impõe o pagamento integral da indemnização como condição da suspensão da execução da pena.

3.3. Invoca ainda a ilegalidade e desproporcionalidade da condição da suspensão da execução de pena.
Ora, o pagamento de indemnização imposto nos presentes autos como condição de suspensão da execução da pena foi determinado ao abrigo do disposto no art.º 49.º do Código Penal, que prevê o seguinte:
Artigo 49.º
(Deveres)
1. A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar a instituições de solidariedade social ou ao Território uma contribuição monetária ou prestação em espécie de valor equivalente.
2. Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir.
3. Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver conhecimento.
Ao abrigo do n.º 2 do art.º 48.º do Código Penal, a determinação de cumprimento de deveres (incluindo o pagamento de indemnização) depende da consideração e do juízo do tribunal sobre a sua conveniência e adequação à realização das finalidades da punição.
E a imposição do dever de indemnização, destinada a reparar o mal do crime, não pode “em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir”.
Daí que, “conexionando esta obrigação com a cláusula de exigibilidade contida no art.º 49.º-3, parece dever concluir-se que a suspensão é ainda compatível com um pagamento parcial, se o tribunal concluir que só este é concretamente exigível”.
E quanto à exigibilidade de que, em concreto, deve revestir-se aqueles deveres, “o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados. Não seria adequado, neste sentido, impor ao agente, v.g., o reatamento de uma relação conjugal ou amorosa; como não seria proporcional impor-lhe, v.g., uma apresentação diária a uma qualquer entidade oficial durante os 5 anos de suspensão ou muito distante do seu local de residência ou de trabalho”.2
Por outras palavras, ao impor a obrigação de indemnizar não pode o tribunal ultrapassar o âmbito de razoabilidade, que deve ser aferida segundo as condições do próprio condenado.
Com a consagração do princípio da razoabilidade a que tem de obedecer a imposição de deveres, o juiz deve ponderar a possibilidade e viabilidade de cumprimento de deveres a impor, nomeadamente o de indemnizar o lesado, não devendo fixar a obrigação condicionante cujo cumprimento não seja razoável, até seja impossível, para com o condenado, caso contrário significa apenas adiar a execução da pena de prisão.3
No caso ora em apreciação, decorre da factualidade assente que:
- O recorrente apanhou o vício de jogos antes da ocorrência dos factos.
- Posteriormente, o recorrente determinou-se a abandonar tal vício e requereu, por duas vezes, a “Auto-Exclusão” junto da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos e aceitou os serviços de orientação prestados por instituições de prevenção e tratamento do jogo problemático, por período de 2 anos, o que foi autorizado pela Direcção.
- Até hoje o recorrente não jogou, nem cometeu outro crime. A vida dele ficou normal.
- De acordo com o CRC, o recorrente foi condenado em 2016.5.5 no processo n.º CR3-16-0052-PCS pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de multa de 90 dias, com quantia de MOP 200 por cada dia, no total na multa de MOP 18,000 ou na pena de prisão de 60 dias. O acórdão já transitou em julgado e o recorrente já pagou a multa.
- O recorrente admitiu voluntariamente os factos criminosos acusados.
- O recorrente é condutor de táxi, auferindo mensalmente MOP 15,000 a MOP 18,000.
- Tem dois filhos menores a seu cargo.
- Tem como habilitação o ensino de licenciatura.
Ponderado o circunstancialismo do caso concreto, nomeadamente a situação pessoal, as condições familiares e económicas do recorrente, afigura-se-nos desrazoável, desproporcional e inexigível a condição da suspensão da execução da pena fixada no acórdão recorrido, que obriga o recorrente a pagar dentro dum ano e em 12 prestações toda a quantia indemnizatória, ou seja, MOP 1,962,959.00, o que significa que ele tem de pagar mensalmente MOP 163,579.91, quantia esta que evidentemente se mostra demasiadamente elevada e excessiva para uma pessoa que aufere mensalmente MOP 15,000.00 a MOP 18,000.00.
Os documentos juntos pelo recorrente aos autos demonstram que o recorrente tem pago mensalmente MOP 15,000.00 ao assistente (fls. 346 a 349 dos autos).
Tudo ponderado, afigura-se razoável exigir ao recorrente o pagamento parcial da indemnização, que se concretiza no pagamento mensal de MOP 15,000.00 ao assistente durante o período de 3 anos de suspensão da execução da pena, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão.
Procede o recurso interposto pelo recorrente.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido na parte respeitante à fixação da condição da suspensão da execução de pena, passando-se a determinar que o recorrente deve pagar ao assistente, mensalmente e durante o período de 3 anos de suspensão da execução de pena, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, o montante de indemnização de MOP 15,000.00, como condição da suspensão da execução de pena.
Fixam o honorário da Ilustre Defensora no montante de MOP 2,500.00.
Sem custas.

Macau, 5 de Dezembro de 2018

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 Cfr.Ac.do Tribunal de Última Instância, de 23 de Julho de 2014, Proc. n.º 43/2014.
2 Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, p. 351 e 352.
3 Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, p. 208.
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Processo n.º 81/2018