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Processo n.º 868/2018 Data do acórdão: 2018-11-29 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– crime de falsificação informática por funcionário
– art.o 10.o, n.os 1 e 4, alínea 1), da Lei n.o 11/2009
– registos de entradas ou saídas fronteiriças
– Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública
S U M Á R I O
  1. Não ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova de que se fala no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando após vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra ao tribunal de recurso que o tribunal recorrido, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no julgamento de factos.
2. Se um funcionário do Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública forja uma operação de registo de entrada ou de saída de uma pessoa sem que ocorra a correspondente entrada ou saída, está ele a falsificar o registo informático desse Serviço sobre as entradas ou saídas fronteiriças de pessoas. Do mesmo modo, se se faz sair ou entrar alguém sem que se efectue a correspondente operação de registo, está-se a falsear o registo de saídas ou entradas, atenta a desconformidade que tal provoca entre a realidade e os factos registados, pois, nestes casos, o registo deixa de espelhar a verdade do movimento de entradas e saídas pela fronteira. Ou seja, está em causa uma actuação que interfere no tratamento informático dos dados, falseando-os, e que, por isso, deve ser punida como falsificação informática praticada por funcionário, p. e p. pelo art.o 10.o, n.os 1 e 4, alínea 1), da Lei n.o 11/2009.
O relator substituto,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 868/2018
(Recurso em processo penal)
Arguidos recorrentes: 1.o arguido A
2.o arguido B
Arguidos não recorrentes: 3.o arguido C
4.a arguida D






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 5684 a 5807 do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR4-17-0481-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base:
– o 1.o arguido A ficou condenado:
– 1) pela co-autoria material (com o 2.o arguido B) de 51 crimes consumados de falsificação informática, p. e p. pelos art.o 10.o, n.o 4, alínea 1), e art.o 12.o da Lei n.o 11/2009, em dois anos de prisão por cada;
– 2) pela co-autoria material (com o 3.o arguido C) de 26 crimes consumados de falsificação informática, p. e p. pelos art.o 10.o, n.o 4, alínea 1), e art.o 12.o da Lei n.o 11/2009, em dois anos de prisão por cada;
– 3) pela co-autoria material (com os 2.o e 3.o arguidos) de um crime consumado de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo art.o 337.o, n.o 1, do Código Penal (CP), em três anos e seis meses de prisão;
– 4) pela co-autoria material (com o 2.o arguido) de outros quatro crimes consumados de falsificação informática, p. e p. pelos art.o 10.o, n.o 4, alínea 1), e art.o 12.o da Lei n.o 11/2009, em dois anos de prisão por cada;
– 5) pela co-autoria material (com o 2.o arguido) de um crime consumado de acolhimento, p. e p. pelos art.o 15.o, n.o 2, e art.o 23.o da Lei n.o 6/2004, em cinco anos e cinco meses de prisão;
– 6) pela co-autoria material (com o 2.o arguido) de um outro crime consumado de acolhimento, p. e p. pelos art.o 15.o, n.o 1, e art.o 23.o da Lei n.o 6/2004, em um ano e seis meses de prisão;
– 7) pela co-autoria material (com o 2.o arguido) de um crime consumado de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo art.o 337.o, n.o 1, do Código Penal (CP), em dois anos e nove meses de prisão;
– 8) pela co-autoria material (com o 2.o arguido) de mais outros dois crimes consumados de falsificação informática, p. e p. pelos art.o 10.o, n.o 4, alínea 1), e art.o 12.o da Lei n.o 11/2009, em dois anos de prisão por cada;
– 9) pela co-autoria material (mormente com os 2.o e 3.o arguidos) de 23 crimes consumados de violação de segredo, p. e p. pelo art.o 348.o, n.o 1, do CP, em dez meses de prisão por cada;
– 10) pela co-autoria material (com a 4.a arguida D) de 12 crimes consumados de violação de segredo, p. e p. pelo art.o 348.o, n.o 1, do CP, em nove meses de prisão por cada;
– 11) finalmente, em cúmulo jurídico das penas acima referidas, em 16 anos de pena única prisão;
– o 2.o arguido B ficou condenado:
– 1) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de 51 crimes consumados de falsificação informática, p. e p. pelos art.o 10.o, n.o 4, alínea 1), e art.o 12.o da Lei n.o 11/2009, em dois anos de prisão por cada;
– 2) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de um crime consumado de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo art.o 337.o, n.o 1, do CP, em dois anos e três meses de prisão;
– 3) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de outros quatro crimes consumados de falsificação informática, p. e p. pelos art.o 10.o, n.o 4, alínea 1), e art.o 12.o da Lei n.o 11/2009, em dois anos de prisão por cada;
– 4) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de um crime consumado de acolhimento, p. e p. pelos art.o 15.o, n.o 2, e art.o 23.o da Lei n.o 6/2004, em cinco anos e cinco meses de prisão;
– 5) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de um outro crime consumado de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo art.o 337.o, n.o 1, do CP, em dois anos e três meses de prisão;
– 6) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de um outro crime consumado de acolhimento, p. e p. pelos art.o 15.o, n.o 1, e art.o 23.o da Lei n.o 6/2004, em um ano e seis meses de prisão;
– 7) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de mais outros dois crimes consumados de falsificação informática, p. e p. pelos art.o 10.o, n.o 4, alínea 1), e art.o 12.o da Lei n.o 11/2009, em dois anos de prisão por cada;
– 8) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de 18 crimes consumados de violação de segredo, p. e p. pelo art.o 348.o, n.o 1, do CP, em dez meses de prisão por cada;
– 9) finalmente, em cúmulo jurídico das penas acima referidas, em 12 anos e seis meses de pena única de prisão;
– o 3.o arguido C ficou condenado:
– 1) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de 26 crimes consumados de falsificação informática, p. e p. pelos art.o 10.o, n.o 4, alínea 1), e art.o 12.o da Lei n.o 11/2009, em dois anos de prisão por cada;
– 2) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de um crime consumado de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo art.o 337.o, n.o 1, do Código Penal (CP), em dois anos e três meses de prisão;
– 3) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de um crime consumado de violação de segredo, p. e p. pelo art.o 348.o, n.o 1, do CP, em dez meses de prisão;
– 4) e, em cúmulo jurídico das penas acima referidas, em sete anos e nove meses de prisão;
– a 4.o arguida D ficou condenada:
– 1) pela co-autoria material (com o 1.o arguido) de 12 crimes consumados de violação de segredo, p. e p. pelo art.o 348.o, n.o 1, do CP, em nove meses de prisão por cada;
– 2) e, em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de dois anos e nove meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, sob condição de prestação de MOP40.000,00 de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau, destinada a reparar o mal dos seus crimes.
Inconformados, vieram os 1.o e 2.o arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.o arguido alegou (no seu essencial) e peticionou o seguinte na sua motivação (de fls. 5829 a 5853 dos presentes autos correspondentes):
– o Tribunal recorrido errou ao não ter aplicado o instituto de crime continuado na condenação dos crimes de falsificação informática e de acolhimento, isto porque:
– os factos imputados aos três primeiros arguidos foram executados de uma forma contínua e homogénea, em proximidade temporal, descrevendo sempre situações em que existiu um acordo entre os sujeitos e uma repetição de oportunidades, favoráveis à prática do crime que já havia sido aproveitada na primeira daquelas condutas criminosas, o que diminuiu consideravelmente a culpa dos arguidos, pelo que estaria verificada indubitavelmente a situação de crime continuado, nos termos do art.o 29.o, n.o 2, do CP, com necessária aplicação da regra do art.o 73.o deste Código;
– o próprio recorrente não cometeu os crimes de corrupção passiva para acto ilícito, isto porque:
– o desvio das funções, de que os alegados indivíduos corruptores beneficiaram, não foram inerentes aos “deveres do cargo” do próprio recorrente, por tudo ter sido processado no âmbito do Serviço de Migração, departamento a que o recorrente não estava adstrito, sendo, pois, ele um estranho ao serviço onde foram praticados os actos desviantes – daí o facto de ter solicitado os “serviços” dos 2.o e 3.o arguidos – não podendo, por isso, ser condenado, ele próprio, por prática de crime de corrupção passiva para acto ilícito;
– por outro lado, não se mostrou devidamente quantificado o suborno, já que a “contrapartida” da corrupção passiva não pôde ser algo irrelevante e um alegado “divertimento” (que não se qualificou nem se quantificou minimamente) ou uma alegada “refeição” (sem saber onde, quando e de quê valor) poderia não constituir (pelo menos, subsistiria a dúvida…) o elemento essencial do crime em causa;
– e a referência de que o recorrente recebeu “informações secretas” de uma empresa cotada em bolsa, de cujas informações ele beneficiou, não pôde ser considerada a “vantagem” do crime de corrupção, uma vez que ficou por apurar se essas “informações secretas” assumiram ou não a relevância que permitisse que as mesmas fossem consideradas contrapartida do crime de corrupção;
– nem existiu um nexo de causalidade entre o suborno e o acto alegadamente desviante do próprio recorrente, como funcionário;
– e a “recompensa” de HKD100.000,00 pelo crime de acolhimento fez parte deste tipo de crime, pelo que a “vantagem” do crime de corrupção foi consumida pela “recompensa” do crime de acolhimento;
– finalmente, quanto aos crimes de violação de segredo por que vinha condenado o próprio recorrente:
– a decisão recorrida não fez uma distrinça entre os factos que tipificaram os crimes de violação de segredo consumados e aqueles em que os factos tipificaram uma tentativa que até nem seria punida, e não se tendo consumado alguns dos crimes, não se poderia ter uma correcta percepção da intenção subjacente àquelas tentativas;
– sendo o tipo de crime de violação de segredo um crime semi-público, o Serviço de Migração (como um departamento do Corpo de Polícia de Segurança Pública) que superintendia os 2.o, 3.o e 4.a arguidos, não apresentou a competente queixa criminal no prazo de seis meses subsequentes ao conhecimento de cada uma das infracções em causa, tendo-se extinguindo, por isso, o direito de queixa, com necessária absolvição do recorrente da plúrima prática do crime de violação de segredo;
– e mesmo que assim não se entendesse, aplicar-se-ia também a este tipo legal de crime de violação de segredo a figura de crime continuado;
– e fosse como fosse, a pena única a aplicar ao recorrente seria de oito anos de prisão.
Por outra banda, o 2.o arguido invocou (no seu essencial) e rogou o seguinte na sua motivação (de fls. 5903 a 5918v dos autos, escrita originalmente em chinês):
– houve erro de direito por parte do Tribunal recorrido quanto ao número de crimes de falsificação informática, porquanto este número deveria ser contado em função do número de pares de registos falsos de entada e saída fronteiriças (e não em função de cada um dos registos falsos), pois só assim se alcançaria o efeito e propósito de prorrogar o prazo de permanência dos indivíduos em questão em Macau, e mesmo que assim não se entendesse, sempre haveria que aplicar a figura de crime continuado nos termos do n.o 2 do art.o 29.o do CP;
– houve, por parte do Tribunal recorrido, erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação no tocante à matéria do “facto provado 471”: é que o próprio recorrente não iria falsificar os registos de entrada e saída fronteiriças de alguém apenas por causa de alguns milhares de patacas de despesas hoteleiras de viagem turística “pagas de borla”; nem foi provado algum acordo ou promessa de oferta desse benefício patrimonial, sendo certo que as despesas em questão não foram pagas por outrem, mas sim adiantadas por esse outrem ao recorrente, pelo que por força do princípio de in dubio pro reo, deveria ser absolvido o recorrente da prática de crime de corrupção passiva para acto ilícito; e mesmo que se entendesse que tais despesas foram pagas por outrem, nem se poderia dar por verificado o nexo de causalidade entre esse benefício patrimonial e a prática dos actos pelo recorrente;
– no concernente aos dois dos crimes de falsificação informática por que vinha condenado o recorrente, como a sua conduta (de ter deixado passar pelo posto fronteiriço dois indivíduos com prazo de permanência já expirado) não consistiu em qualquer produção ou alteração de dados informáticos, nem teve a ver com a autenticidade de qualquer documento electrónico, o recorrente não pode ter cometido o crime de falsificação informática, deveria ele ser absolvido da prática deste crime, até porque tal conduta dele já foi tomada em conta na condenação dele em crime de acolhimento do art.o 15.o da Lei n.o 6/2004, por aí se vê que houve erro grave de aplicação do Direito e vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
– por outro lado, deveriam ser considerados como não provados, por falta de prova, nomeadamente os “factos provados 297 a 304” (no tangente à questão do recebimento pelo recorrente da recompensa de HKD30.000,00, no acto de auxiliar um indivíduo oriundo do Interior da China chamado E), com consequente absolvição do recorrente de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, e necessária convolação do crime de acolhimento do n.o 2 do art.o 15.o da Lei n.o 6/2004 para o do n.o 1 do art.o 15.o desta Lei;
– e fosse como fosse, entre o crime de acolhimento com recebimento da recompensa e o crime de corrupção passiva para acto ilícito existiria relação de concurso aparente, pelo que a conduta do recorrente (de ter deixado passar aquele indivíduo chamado E) só deveria integrar um crime de acolhimento do n.o 2 do art.o 15.o da Lei n.o 6/2004 (e não integrar também, em concurso real efectivo, um crime de corrupção passiva para acto ilícito);
– sobre os crimes de violação de segredo, houve erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação nos “factos provados 411 a 413”, devendo, pois, ser julgada como não provada a matéria fáctica descrita no “facto provado 413”;
– por outro lado, já decorreu há muito o prazo legal de apresentação da queixa pelo crime de violação de segredo;
– do exposto, resultaria a necessidade de se dar por não provados os “factos provados 471, 297, 304 e 413”;
– e fosse como fosse, houve excesso por parte do Tribunal sentenciador na medida da pena, com violação dos art.os 64.o, 40.o e 65.o do CP, devido à falta de consideração, em termos suficientes, das circunstâncias concretas apuradas.
Aos recursos dos 1.o e 2.o arguidos, respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido (a fls. 5943 a 5949 e a fls. 5950 a 5958v, respectivamente) no sentido de improcedência dos recursos.
Subidos os autos, emitiu, em sede de vista, o Digno Representante do Ministério Público parecer (de fls. 6553 a 6563), pugnando pelo não provimento dos recursos, com excepção da parte, suscitada no recurso do 2.o arguido, respeitante a um dos crimes de violação de segredo, que deveria ser absolvido com todas as consequências legais, designadamente, com nova medida da pena.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido (originalmente em chinês) a fls. 5684 a 5807 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Os factos provados que materialmente levaram à condenação, em primeira instância, dos 1.o e 2.o arguidos pela co-autoria material, na forma consumada, de um dos crimes de violação de segredo foram os factos provados 411 a 413, descritos nas páginas 158 a 159 do texto do acórdão recorrido, a fls. 5762v a 5763.
3. No facto provado 413 (de teor literal correspondente ao respectivo facto acusado descrito a fl. 5386, na acusação pública de fls. 5350 a 5394v), constou descrita, originalmente em chinês, a seguinte factualidade como provada: “Os dados de entradas e saídas fronteiriças do Corpo de Polícia de Segurança Pública mostram que F, portador do Passaporte da China n.o XXX, entrou em Macau em 3 de Maio de 2017 através do Posto Fronteiriço do Aeroporto, o que foi compatível com as informações respondidas pelo 2.o arguido B ao 1.o arguido A (cf. fl. 4621 dos autos)”.
4. A fls. 4621 a 4622 dos autos, foi junta uma “listagem de movimentos dos postos fronteiriços” referente ao indivíduo chamado F, no período de 1 de Junho de 2016 a 13 de Maio de 2017, segundo a qual esse individuo, com o Passaporte da China n.o XXX, entrou em Macau pelo Aeroporto Internacional de Macau em 26 de Abril de 2017 e saiu de Macau pelo Posto Fronteiriço da Porta do Cerco em 3 de Maio de 2017.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
Do recurso do 1.o arguido:
Este recorrente alegou que não poderia ser condenado pela prática dos crimes de corrupção passiva para acto ilícito.
Entretanto, ele esqueceu-se deveras de que em face da matéria de facto dada por assente (cf. por exemplo o facto provado 471, nas páginas 170 e 171 do texto do acórdão recorrido), ele agiu indubitavelmente em co-autoria, pelo que independentemente do demais, não pode ele vir alegar ser ele um estranho ao Serviço de Migração onde foram praticados por outrem os actos desviantes das funções, para se tentar libertar da sua responsabilidade pela prática deste tipo legal de crime em co-autoria com esse outrem (cf. sobretudo o disposto no art.o 25.o do CP).
E em tese jurídica falando em abstracto, mesmo que o suborno não se encontrasse quantificado, isto não impediria a verificação do tipo legal do art.o 337.o, n.o 1, do CP, pois esta norma incriminadora da corrupção passiva para acto ilícito fala em “vantagem patrimonial”, mas já não fala em “vantagem patrimonial com montante determinado”.
No caso, as vantagens em causa já estão indicadas concretamente na matéria de facto provada. Para constatar isto, basta atender, nomeadamente, aos factos provados 267, 268 e 269 (descritos nas páginas 132 a 133 do texto do acórdão recorrido), sendo, por outro lado, certo que as vantagens aí referidas, atentos os respectivos valores pecuniários, não podem ser consideradas como adequadas socialmente, ou socialmente irrelevantes.
Quanto às informações secretas de uma empresa cotada em bolsa, segundo a matéria de facto assente em primeira instância o 1.o arguido beneficiou dessas informações secretas, pelo que isto já basta para preencher o requisito de “vantagem” de que se fala no tipo-de-ilícito de corrupção passiva para acto ilícito (cfr. sobretudo o facto provado 267, descrito nas páginas 132 a 133 do texto do acórdão recorrido).
No tocante ao nexo de causalidade entre o suborno e o acto desviante, sem dúvida alguma o nexo está verificado, como espelha a matéria de facto dada por provada pelo Tribunal recorrido (cf. mormente o facto provado 471).
O 1.o arguido veio defender que como a recompensa pecuniária total de HKD100.000,00 (para ser repartida por ele e pelo 2.o arguido) era por causa do crime de acolhimento do indivíduo chamado E, essa circunstância de recompensa já fez parte deste tipo de crime de acolhimento qualificado, pelo que ele deveria ser absolvido de um dos crimes de corrupção para acto ilícito.
Não pode proceder esta tese do 1.o arguido.
É que os factos provados 291 a 306 (descritos nas páginas 138 a 140 do texto do acórdão recorrido) evidenciam que a não feitura do registo de saída fronteiriça daquele indivíduo, então com prazo de permanência em Macau já expirado, fez parte do “serviço” prestado pelos 1.o e 2.o arguidos em benefício desse mesmo indivíduo sob contrapartida patrimonial total de HKD100.000,00, para este poder sair directamente de Macau (cfr. também a descrição desse “serviço” feita no facto provado 290).
Os dois arguidos agiram em co-autoria material. A não feitura do registo da saída fronteiríça em causa integrou um crime de falsificação informática. E a conduta de transportar tal indivíduo e de guiar o mesmo para sair de Macau integrou um crime de acolhimento. Estes dois crimes são indubitavelmente actos ilícitos. Os dois arguidos obtiveram recompensa patrimonial para prática destes dois actos ilícitos. Assim sendo, está integralmente preenchido o tipo legal de corrupção passiva para prática de acto ilícito do art.o 337.o, n.o 1, do CP (pois os arguidos, em co-autoria material, obtiveram vantagem patrimonial total de HKD100.000,00 para prática daqueles dois actos ilícitos: acto de acolhimento e acto de não feitura do registo da saída fronteiriça daquele indivíduo com prazo de permanência expirado). E a conduta de transportar tal indivíduo preencheu o crime de acolhimento qualificado do n.o 2 do art.o 15.o da Lei n.o 6/2004, porque este delito foi praticado por conta parcial daquela recompensa patrimonial total de HKD100.000,00.
O 1.o arguido suscitou a questão de falta de apresentação atempada da queixa do crime de violação de segredo. Mas, não lhe assiste razão, porquanto o Tribunal recorrido já resolveu bem esta questão em termos legais e claramente expendidos nas páginas 193 a 194 do texto do acórdão recorrido.
Por outro lado, o 1.o arguido entendeu que a decisão recorrida não fez uma distrinça entre os factos que tipificaram os crimes de violação de segredo consumados e aqueles em que os factos tipificaram uma tentativa que até nem seria punida, e não se tendo consumado alguns dos crimes, não se poderia ter uma correcta percepção da intenção subjacente àquelas tentativas.
Contudo, não assiste razão a este recorrente, porque basta uma leitura atenta da matéria de facto descrita como provada no texto do acórdão recorrido para se poder saber quantos foram os crimes consumados de violação de segredo tidos pelo Tribunal recorrido como praticados por este 1.o arguido (cf. os factos provados 327 a 419, das páginas 144 a 160 do texto do acórdão recorrido), e dessa factualidade fáctica resulta também nítido que todos os crimes de violação de segredo por que o 1.o arguido ficou inclusivamente condenado foram crimes consumados, o que prejudica a viabilidade da sua hipótese jurídica de crimes tentados (e/ou ainda de tentativa não punível).
O 1.o arguido pretendeu que se lhe aplicasse a figura de crime continuado aos seus crimes de falsificação informática, acolhimento e violação de segredo. E pretendeu também, fosse como fosse, a redução da pena. Estas duas questões ficam resolvidas em momento ulterior.
Do recurso do 2.o arguido:
Este arguido invocou erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação no tocante à matéria do “facto provado 471”.
Pois bem, para o presente Tribunal de recurso, não se vislumbra qualquer contradição insanável no conteúdo desse facto provado 471 (nas páginas 170 a 171 do texto do acórdão recorrido).
Quanto ao erro notório na apreciação da prova, também nada se verifica a este nível, já que após vistos todos os elementos de prova já referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se pode entender que o Tribunal recorrido tenha violado de forma patente quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis, ou ainda quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, no julgamento do facto provado 471.
E sobre o nexo de causalidade entre benefício patrimonial e prática dos actos, frisa-se (aliás tal como já se concluiu acima aquando da apreciação do recurso do 1.o arguido) que esse nexo existe efectivamente, conforme a matéria de facto já dada por provada, sem mais indagação por desnecessária.
Perante o facto provado 471, não procede a tese de “adiantamento de pagamento de despesas hoteleiras” defendida pelo 2.o arguido.
O 2.o arguido entendeu que não podem ficar provados, por falta de prova, nomeadamente, os factos provados 297 a 304. Entretanto, também se mostra evidente ao presente Tribunal de recurso que o Tribunal recorrido, aquando do julgamento desses factos, não tenha violado quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis, ou ainda quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações.
E tal como já se explicou acima no conhecimento do recurso do 1.o arguido, no caso estão cabal e inclusivamente verificados, por co-autoria material dos 1.o e 2.o arguidos, um crime de corrupção passiva para acto ilícito e um crime de acolhimento qualificado tudo a respeito daquele indivíduo chamado E, pelo que não procede a pretensão do 2.o arguido de convolação do crime de acolhimento qualificado desse indivíduo com prazo de permanência expirado para o crime de acolhimento simples do n.o 1 do art.o 15.o da Lei n.o 6/2004, nem procede o seu desejo de ver o crime de corrupção passiva respeitante a esse mesmo indivíduo absorvido pelo crime de acolhimento qualificado desse mesmo indivíduo.
O 2.o arguido disse discordar do critério de contagem do número de crimes de falsificação informática, por razões expostas na sua motivação do recurso.
Mas, para o presente Tribunal ad quem, é acertado o critério de contagem adoptado pelo Tribunal recorrido, por estar em sintonia com o critério legal do art.o 29.o, n.o 1, do CP. Aliás, tal como observou com perspicácia o Digno Representante do Ministério Público no seu douto parecer emitido (cf. o teor da fl. 6558), “dada a feição casuística das falsificações, conforme as solicitações e a duração da permanência dos interessados, o processo de falsificação é renovado de cada vez que é necessário forjar um registo de saída ou um registo de entrada. Ou seja, não há unidade de resolução nem unidade de acção, devendo a conduta do agente ser punida de acordo com o número de vezes que o mesmo tipo for preenchido (artigo 19.o, n.o 1, do Código Penal). É de afastar, pois, a hipótese de necessidade de emparelhar uma simulação de entrada com uma simulação de saída para perfazer um crime de falsificação.”
Ainda sobre a temática de crime de falsificação informática, o 2.o arguido defende que como a sua conduta de não feitura de devidos registos informáticos da saída fronteiriça de duas pessoas com prazo de permanência em Macau expirado não consistiu em qualquer produção ou alteração de dados informáticos, nem teve a ver com a autenticidade de qualquer documento electrónico, essa conduta sua não pode ter integrado o tipo legal de falsificação informática.
Contudo, naufraga também esta tese do 2.o arguido, tal como já se entendeu no douto parecer do Ministério Público (concretamente a fls. 6559 a 6559v): “Se se forja uma operação de registo de entrada ou de saída de uma pessoa sem que ocorra a correspondente entrada ou saída, está-se a falsificar o registo informático de entradas ou de saídas. Do mesmo modo, se se faz sair ou entrar alguém sem que se efectue a correspondente operação de registo, está-se a falsear o registo de saídas ou entradas, atenta a desconformidade que tal provoca entre a realidade e os factos registados, pois, nestes casos, o registo deixa de espelhar a verdade do movimento de entradas e saídas pela fronteira. Ou seja, está em causa uma actuação que interfere no tratamento informático dos dados, falseando-os, e que, por isso, deve ser punida como falsificação informática”.
Quanto ao alegado já decurso do prazo legal para apresentação da queixa de crimes de violação de segredo, há que improceder esta tese do 2.o arguido, por razões já acima aduzidas aquando da apreciação do recurso do 1.o arguido.
O 2.o arguido assacou ao Tribunal recorrido erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação nos factos provados 411 a 413.
Procede a tese de erro notório na apreciação da prova nesses pontos fácticos em questão (o que prejudica a necessidade de conhecimento do vício de contradição insanável da fundamentação respeitante a esses factos).
É que:
– os factos provados que materialmente levaram à condenação, em primeira instância, dos 1.o e 2.o arguidos pela co-autoria material, na forma consumada, de um dos crimes de violação de segredo foram os factos provados 411 a 413;
– no facto provado 413, constou descrito, originalmente em chinês, que “Os dados de entradas e saídas fronteiriças do Corpo de Polícia de Segurança Pública mostram que F, portador do Passaporte da China n.o XXX, entrou em Macau em 3 de Maio de 2017 através do Posto Fronteiriço do Aeroporto, o que foi compatível com as informações respondidas pelo 2.o arguido B ao 1.o arguido A (cf. fl. 4621 dos autos)”;
– sucede, porém, que a “listagem de movimentos dos postos fronteiriços” (junta a fls. 4621 a 4622) referente ao indivíduo chamado F, no período de 1 de Junho de 2016 a 13 de Maio de 2017, não mostra que esse indivíduo entrou em Macau em 3 de Maio de 2017 através do Posto Fronteiriço do Aeroporto, mas sim mostra que esse indivíduo, com aquele Passaporte da China, entrou em Macau em 26 de Abril de 2017 pelo Aeroporto e saiu de Macau pelo Posto Fronteiriço da Porta do Cerco em 3 de Maio de 2017;
– por aí se vê que o Tribunal recorrido errou patentemente ao avaliar o teor dessa listagem de movimentos fronteiriços, pelo que o resultado de julgamento de facto feito por esse Tribunal, com base no teor da mesma listagem, a respeito da matéria fáctica contida no facto provado n.o 413 não pode ser mantido.
Como o julgamento do correspondente facto acusado depende só da análise do teor da mesma listagem, é de julgar agora directamente que a matéria inicialmente imputada na acusação pública, de teor literal idêntico ao desse “facto provado n.o 413”, não fica provada.
E, consequentemente, deve ser absolvido um dos crimes de violação de segredo (qual seja, o crime de violação de segredo relativamente ao caso do indivíduo chamado F) por que vinha condenado o 2.o arguido em primeira instância.
E como este arguido agiu em co-autoria material com o 1.o arguido, essa decisão absolutória também aproveita ao 1.o arguido (art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do CPP).
Ainda sobre os recursos dos 1.o e 2.o arguidos:
O 2.o arguido pretendeu ainda que se lhe aplicável a figura de crime continuado para os crimes de falsificação informática, e rogou também, fosse como fosse, a redução das suas penas.
Já o 1.o arguido também almejou que se lhe aplicasse a figura de crime continuado aos seus crimes de falsificação informática, acolhimento e violação de segredo, e desejou ver também, fosse como fosse, reduzida a pena.
Assim sendo, conhecendo uma vez por todas:
Da questão do crime continuado:
Atenta a matéria fáctica dada por provada em primeira instância (com excepção dos “factos provados 411 a 413”, uma vez que um dos crimes de violação de segredo, correspondente aos “factos provados 411 a 413”, deve ser absolvido por erro notório na apreciação da prova, nos termos já acima explicados), não é de julgar como existente, no caso, alguma situação exterior (pressuposta no n.o 2 do art.o 29.o do CP) susceptível de diminuir consideravelmente o grau da culpa do agente, pelo que não é de aplicar a regra especial da punição plasmada no art.o 73.o do CP (sobre o sentido e alcance da figura de crime continuado, cf. EDUARDO CORREIA, in DIREITO CRIMINAL, II, Livraria Almedina, Coimbra, 1992, páginas 208 a 211).
E agora da questão da medida da pena:
Desde já, é de observar que todas as penas parcelares aplicadas aos 1.o e 2.o arguidos no acórdão recorrido (com abstracção, porém, da pena inicialmente imposta ao crime de violação de segredo no caso do indivíduo chamado F, por razões acima expostas) não são severas, aos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro das correspondentes molduras penais aplicáveis.
Já no cúmulo jurídico das penas, é de reduzir, por ser justo, as penas únicas dos 1.o e 2.o arguidos, a pedido destes (mesmo com abstracção da questão da absolvição do referido crime de violação de segredo relativamente ao caso do indivíduo chamado F). E sendo co-autor do 1.o arguido, o 3.o arguido não recorrente vai beneficiar também da redução da sua pena única (art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do CPP). Nota-se que a 4.a arguida não recorrente, apesar de ser co-autora do 1.o arguido, não vai ver a sua pena única reduzida, porque a sua pena única não se mostra menos justa à luz do critério do art.o 71.o, n.o 1, do CP.
Desta feita, em sede, agora, de nova medida da pena única a aplicar aos 1.o, 2.o e 3.o arguidos (sendo de frisar que já não pode entrar na operação do novo cúmulo jurídico das penas a pena de dez meses de prisão inicial e identicamente aplicada no acórdão recorrido aos 1.o e 2.o arguidos pela co-autoria material de um crime consumado de violação de segredo por causa do caso desse indivíduo F, porque este crime tem que ser absolvido nos termos já acima vistos): ponderando em conjunto os factos e a personalidade dos 1.o, 2.o e 3.o arguidos nos termos e para os efeitos do art.o 70.o, n.o 1, do CP, entende o presente Tribunal de recurso que os 1.o, 2.o e 3.o arguidos devem passar a ser condenados em 12 (doze) anos, nove anos e seis anos de prisão única, respectivamente.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em:
– julgar parcialmente providos os recursos dos 1.o e 2.o arguidos;
– absolver os 1.o e 2.o arguidos da acusada prática, em co-autoria material, de um crime consumado de violação de segredo (respeitante ao caso do indivíduo chamado F);
– e passar a condenar o 1.o arguido na pena única de doze anos de prisão, o 2.o arguido na pena única de nove anos de prisão, e o 3.o arguido na pena única de seis anos de prisão.
Pagará o 1.o arguido 9/10 das custas do seu recurso e dezoito UC de taxa de justiça em correspondência ao decaimento parcial do seu recurso. E pagará o 2.o arguido 7/9 das custas do seu recurso e catorze UC de taxa de justiça em correspondência ao decaimento parcial do seu recurso.
Comunique a presente decisão ao Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública.
Macau, 29 de Novembro de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator substituto)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta substituta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto substituto)



Processo n.º 868/2018 Pág. 27/27