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Processo nº 447/2018
(Recurso em matéria laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 06 de Dezembro de 2018
Descritores:
     - Contrato de trabalho
     - Descanso semanal

SUMÁRIO:

Ao abrigo do DL 24/89/M (art. 17º, n.1, 4 e 6, al. a), tem o trabalhador direito a gozar um dia de descanso semanal, sem perda da correspondente remuneração (“sem prejuízo da correspondente remuneração”); mas se nele prestar serviço terá direito ao dobro da retribuição (salário x2), sem prejuízo do valor que já receberia mesmo sem prestar trabalho.




Proc. nº 447/2018

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
A, de nacionalidade nepalesa, residente habitualmente no Nepal, em XXX, Nepal, titular do Passaporte Nepalês nº XXX, emitido pela autoridade competente do Nepal, instaurou no TJB (Proc. nº LB1-17-0022-LAC) contra:-----
B, com sede na XXX, Macau,
Acção de processo comum do trabalho, ----
Pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de MOP$ 78.417,00 a título de créditos salariais vencidos e não pagos.
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Na oportunidade foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré no pagamento da quantia global de MOP$ 68.968,32 e juros respectivos.
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A ré da acção, inconformada com esta sentença, dela recorreu, formulando as seguintes conclusões alegatórias:

“a) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços;
b) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente;
c) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador;
d) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho;
e) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho;
f) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3º e 9º;
g) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil;
h) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta;
i) As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como “contratos de prestação de serviços”;
j) Deles é possível extrair que a Sociedade “contratou” trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.;
k) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros;
I) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro;
m) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contra prestação de obrigações;

n) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro;
o) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro;
p) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços;
q) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro;
r) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário;
s) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º, nº 2 do Código Civil (princípio res inter alias acta, aliis neque nocet neque prodest);
t) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal;
u) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse;
v) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A., sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede a qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro;
w) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A., de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos;
x) Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º, nº 2 e 437º do Código Civil;
y) Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A. para reclamar quaisquer “condições mais favoráveis” emergentes destes contratos;

z) Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais;
aa) Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos deverá decorrer a absolvição da R. também quanto ao pedido formulado a título de trabalho extraordinário;
bb) O fundamento legal do pedido formulado pelo A. e julgado procedente pelo Tribunal a quo reconduz-se ao art. 17º, nº 6, a) do DL 24/89/M, que estatui que o trabalho prestado em dia de descanso semanal deve ser remunerado “pelo dobro da retribuição normal”;
cc) Entende a R. que a interpretação daquele preceito adoptada pelo Tribunal recorrido conduz, na realidade, ao recebimento pelo A., a título de compensação por trabalho prestado em dia de descanso semanal, do triplo daquela retribuição;
dd) O sentido do art. 17º, nº 6, a) do DL 24/89/M é tornado claro pela redacção do preâmbulo do mesmo diploma, no qual se refere que “o pagamento do dobro da retribuição normal, quando o trabalho é prestado em dia de descanso semanal” (parágrafo 2, a));
ee) Acrescenta-se também que, ainda no mesmo diploma, o art. 20º, nº 1, tratando da remuneração do trabalho prestado em dias de feriado obrigatório, estatui que este “dá direito a um acréscimo salarial nunca inferior ao dobro da retribuição normal”;
ff) Esta diferença inculca decisivamente o entendimento de que o legislador pretendeu consagrar soluções distintas no tocante à remuneração do trabalho em dia descanso semanal e em dia de feriado obrigatório, no sentido de este último render ao trabalhador uma quantia superior;
gg) É este o único entendimento que se mostra conforme com a presunção hermenêutica, consagrada no art. 8º, nº 3, in fine, do Código Civil, de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados;
hh) A adequada interpretação do art. 17º, nº 6, a) do DL 24/89/M não pode também prescindir da sua análise histórico-sistemática;
ii) A este respeito, será de notar que, nos termos da lei laboral Portuguesa que vigorava aquando da aprovação em Macau do DL 24/89/M, os trabalhadores que prestassem a sua actividade em dia de descanso semanal receberiam um acréscimo remuneratório equivalente a um só dia de retribuição normal;
jj) Num outro prisma, cabe referir que a L 7/2008, ao traçar o regime das relações de trabalho que substituiu o plasmado no DL 24/89/M, deixou inequívoco, no seu art. 43º, nº 2, 1), que a prestação de trabalho em dia de descanso semanal confere ao trabalhador o direito a “auferir um acréscimo de um dia de remuneração de base, para os trabalhadores que auferem uma remuneração mensal”;
kk) Não parece razoável que, quase vinte anos volvidos e numa trajectória legislativa de reforço da protecção e direitos do trabalhador, o legislador tenha pretendido, reduzir para metade a compensação a atribuir ao trabalhador por trabalho prestado em dia de descanso semanal;
II) Bem pelo contrário, o objectivo do legislador de 2008 foi o de manter a solução legal que já vigorava anteriormente, mas adoptando uma formulação mais clara, com o que, ainda que sem enveredar por expressa interpretação autêntica, pretendeu resolver definitivamente as dúvidas interpretativas que se vinham suscitando nesta matéria;
mm) O entendimento por que ora se pugna é também o adoptado pelo TUI nos seus doutos acórdãos de 22.11.2007 (Proc. nº 29/2007), 27.02.2008 (Proc. nº 58/2007) e 21.09.2008 (Proc. nº 28/2007).
Nestes termos, e nos mais de Direito, revogando a decisão recorrida nos termos e com as consequências expostas supra, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA”.
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Não houve resposta ao recurso por parte do autor da acção.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
“1) A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores, entre outros. (A)
2) Desde o ano de 1992, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior», entre outros. (B)
3) Entre 27/12/2003 e 20/10/2006, o Autor esteve ao serviço da Ré, exercendo funções de “guarda de segurança”. (C)
4) O Autor foi recrutado pela C Lda., e posteriormente exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré ao abrigo do Contrato de Prestação de Serviços n.º 1/1: (D)
- aprovado pelo Despacho n.º 00830/IMO/SEF/2005, de 08/02/2005, com efeitos a partir de 18/03/2005 a 31/01/2006 (Cfr. Doc. 2);
- foi substituído pelo Despacho n.º 00751/IMO/DSAL/2006, de 24/01/2006, com efeitos a partir de 15/03/2006 a 31/03/2007 (Cfr. Doc. 3);
5) Nos termos do Contrato de Prestação de Serviços n.º 1/1, aprovado pelo Despacho n.º 00830/IMO/SEF/2005, de 18/03/2005, válido até 15/03/2006 seria sempre garantido o pagamento mensal correspondente a MOP$3.500,00 (três mil e quinhentas patacas), conforme as funções e salários do Mapa II”. (E)
6) Entre 05/2005 e 03/2006, a Ré pagou ao Autor a título de salário de base a quantia de MOP$2,000.00. (F)
7) Nos termos do Contrato de Prestação de Serviços n.º 1/1, aprovado pelo Despacho n.º 00751/IMO/DSAL/2006, de 15/03/2006, válido até 31/03/2007 (mantendo-se em vigor até 12/06/2007), seria sempre garantido o pagamento mensal correspondente a MOP$4,000.00 (quatro mil patacas), conforme as funções e salários do Mapa II”. (G)
8) Entre 04/06 e 10/2006, a Ré pagou ao Autor a título de salário de base a quantia de MOP$2,288.00. (H)
9) Entre 18/03/2005 e 31/01/2006, a Ré pago ao Autor a título de hora extraordinária a quantia de MOP$11,00. (I)
10) Entre 01/02/2006 e 20/10/2006, a Ré pago ao Autor a título de hora extraordinária a quantia de MOP$11,50. (J)
11) Durante todo o período da relação de trabalho, a Ré nunca atribuiu ao Autor um qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, tendo sido remunerado pela Ré com o valor de uma retribuição diária, em singelo. (K).
12) Durante todo o período da relação de trabalho, o Autor trabalho, em média, 12 horas de trabalho por dia, o que corresponde à prestação por parte do Autor de 4 horas de trabalho extraordinário por dia (1.º).
13) Nos termos do Contrato de Prestação de Serviço n.º 1/1, aprovado pelo Despacho n.º 00830/IMO/SEF/2005, de 08/02/2005, válido até 31/01/2006, a remuneração horária mínima constante do «Contrato de Prestação de Serviço» aprovado pela DSTE é de MOP$14,58 (MOP$3.500,00/30/8 horas) (2.º).
14) Nos termos do Despacho n.º 00751/IMO/DSAL/2006, de 24/01/2006, válido até 31/03/2007, a remuneração horária mínima constante do «Contrato de Prestação de Serviço» aprovado pela DSTE é de MOP$16,66 (MOP$4.000,00/30/8 horas) (3.º).
15) Durante todo o período da relação de trabalho entre a Ré e o Autor, nunca o Autor gozou de qualquer dia a título de descanso semanal, com excepção de 27 dias em 2004, 7 dias em 2005 e 4 dias em 2006 (4.º).
16) A Ré nunca fixou ao conferiu ao Autor o gozo de um outro dia de descanso compensatório em virtude do trabalho prestado em dia de descanso semanal (6.º)
17) Durante todo o período da relação de trabalho, o Autor auferiu da Ré, a título de salário normal diário, as quantias que abaixo se discrimina
Ano
Salário normal diário A
2003
66.66
2004
66.66
2005
116.66
2006
133.33
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III – O Direito
1 – Do regime do Despacho nº 12/GM/88 e da Qualificação dos contratos celebrados entre a “C Limitada” e a “B”.
A recorrente reedita no recurso aquilo que tantas vezes já fez junto deste TSI, noutros processos similares, a propósito da natureza do Despacho nº 12/GM/88 e da natureza dos contratos, se a favor de terceiros (posição do tribunal “a quo”), se de prestação de serviços (posição da recorrente).
Porque não vemos motivo para alterar a nossa posição, limitar-nos-emos, com o devido respeito, a transcrever o que dissemos no Ac. do TSI, de 28/01/2013, no Proc. nº 824/2010:
“1ª questão
Que tipo de relação administrativa se estabeleceu entre B e a Administração?
Quando a ora recorrida se dirigiu à Administração pedindo admissão, nos termos do Despacho nº 12/GM/88 (leia-se autorização) para contratar não residentes, fê-lo como mero interessado particular que, para ver proferido o acto permissivo, deveria observar certos requisitos.
Superados os primeiros obstáculos através dos pareceres pertinentes favoráveis (cfr. nº9, a, b, do referido Despacho), a entidade competente proferiu despacho de admissão, condicionando-a, porém, à apresentação do contrato a celebrar entre requerente (B) e entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (C, Lda).
Aquele despacho disse, ainda, que a autorização implicava a sujeição da requerente a determinadas obrigações específicas: a) - manter um número de trabalhadores residentes igual à média dos que lhe prestaram serviço nos últimos três meses; b) - garantir a ocupação diária dos trabalhadores residentes ao seu serviço e manter-lhes os respectivos salários a um nível igual à média verificada nos três meses anteriores; c)- observar uma conduta compatível com as legítimas expectativas dos trabalhadores residentes).
Estamos, portanto, perante um acto administrativo cuja eficácia foi diferida para momento posterior, em virtude de os seus efeitos dependerem da verificação do requisito ulterior (arts. 117º, nº1 e 119º, al. c), do CPA): apresentação do contrato de prestação de serviço com a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente.
Ora, este contrato é, para este efeito, um contrato-norma com estipulações vinculantes para ambas as partes.
Ou seja, a Administração, satisfez-se com a celebração daquele instrumento negocial em que o futuro empregador (contratante B) declarava contratar futuros trabalhadores não residentes e prometia conceder-lhes as condições e regalias a que ali mesmo, livremente, se deixou subjugar. Claro está que, em nossa opinião, deveria ser mais natural e lógico que a condição fosse mais longe ao ponto de se exigir de todo e qualquer interessado na aquisição de mão-de-obra não residente em Macau a demonstração da efectiva contratação nos moldes em que o compromisso foi assumido perante a entidade fornecedora. Faria mais sentido, realmente, que a condição do acto não se ficasse pela realização de uma mera “declaração de intenções” ou de uma simples “promessa de facere”, que podia não ser, como não foi, cumprida. Na verdade, a vinculação entre as partes contratantes iniciais (B e Sociedade de Apoio) podia bem ser quebrada sem conhecimento do Governo, o qual assim nada podia fazer para repor as condições de trabalho que estiveram na base da autorização, ou até mesmo para a cancelar. Isto é, parece absurdo que se estabeleçam requisitos de contratação, que as partes iniciais acolheram no contrato-norma para que o despacho autorizativo adquirisse eficácia, e depois o autor do acto se desligue completamente da sorte dos contratos de aplicação dando azo a toda a sorte de incumprimentos e abusos eventuais. Não se deveria esquecer que os contratos de aplicação devem obediência não só ao contrato-norma, como ao acto autorizativo. E, por isso mesmo, é de questionar quais as consequências derivadas da violação dos contratos celebrados com o trabalhadores e quais os efeitos para estes (futuros e incertos) decorrentes desse contrato-norma. À primeira questão – sem sermos muito categóricos – somos de parecer que nem o Despacho 12/GM/88, nem o contrato firmado na sequência do despacho autorizativo estabelecem sanções. À segunda questão já somos obrigados a responder, e essa é tarefa que nos ocupará já de seguida.
*
2ª Questão
Quais os direitos para os trabalhadores contratados na sequência daquele contrato de prestação de serviços celebrado entre B e Sociedade de Apoio?
Tal como a sentença o afirma, ao caso não pode ser aplicável o DL nº 24/89/M, de 3/04, uma vez que este diploma se aplica aos trabalhadores residentes.
E também é certa, em parte, a ideia que emana da mesma decisão, segundo a qual o Despacho nº 12/GM/88 não visa estatuir sobre os contratos a celebrar entre empregadores e trabalhadores não residentes. Visa sim, e nessa medida reflecte-se sobre eles, determinar um conjunto de conteúdos mínimos que o empregador deve respeitar nos contratos a celebrar. Contudo, não desce ao pormenor dos direitos e regalias concretas, embora se refira no art. 9, d.2 ao dever de ser averiguado no contrato de prestação de serviços se se encontra satisfeita a garantia do pagamento do salário acordado com a empresa empregadora. Ora, como pode ser prestada esta garantia se depois do contrato com o trabalhador ninguém mais controla o cumprimento do clausulado! E como garantir no contrato-norma algo que só no contrato de aplicação pode ser constatado! Por conseguinte, só indirectamente se pode dizer que os contratos celebrados com os trabalhadores têm no referido despacho a sua regulação normativa.
A Lei nº 4/98/M, de 29/97, por seu turno, também não passa de um conjunto de normas programáticas inseridas naquilo que é uma Lei de Bases (Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais), não preenchendo as necessidades de regulação as normas que constam do art. 9º, uma vez que aí igualmente nada é estabelecido sobre o conteúdo das relações laborais entre aqueles.
Só a Lei nº 21/2009/M de 27/10, sim, define um conjunto de regras a que deve obedecer a contratação de trabalhadores não residentes, mas escapa ao nosso raio de alcance, atendendo ao momento em que surge a lume.
De qualquer modo, assentem os contratos celebrados com os trabalhadores não residentes indirectamente no Despacho nº 12/GM/88, ou derivem eles directamente do contrato firmado entre B e Sociedade de Apoio, a verdade é que ninguém se atreve a dizer que aquele instrumento contratual e o Despacho em causa são de todo inertes e indiferentes ao clausulado que viesse a integrar o contrato entre empregador e trabalhadores. A questão só se complica na medida em que se trata de pessoas que não intervieram no referido instrumento. Daí que se pergunte a que título dele nasceram direitos para a sua esfera.
Não se pode dizer com total tranquilidade que há lacuna de regulamentação, se for de pensar que a vinculação do instrumento entre B e Sociedade de Apoio é suficiente, isto é, se for de considerar que, mesmo que por causa do despacho autorizativo e do Despacho 12/GM/88, os direitos nascem com aquele instrumento. Faltaria apurar somente a que título.
A sentença em crise entende, porém, que não, por não sentir emergir daquele contrato de prestação de serviços nenhuma das figuras contratuais que costumam associar terceiros não intervenientes, como foi o caso.
Por outras palavras, a questão é a do apuramento da natureza jurídica desse contrato no que a estes terceiros concerne.
E considerando não se estar perante um contrato de trabalho, um contrato de trabalho para pessoa a nomear, ou um contrato de cedência de trabalhadores – por razões que explicita e com as quais concordamos, mas que, por comodidade e desnecessidade ao desfecho decisório do recurso nos dispensamos de reproduzir – acabou por concluir que, do mesmo modo, não se estaria em presença do contrato a favor de terceiros, mas eventualmente ante um contrato de promessa de celebrar um contrato de trabalho com pessoa a nomear (sem qualquer efeito na relação laboral contratada entre empregador e trabalhador) e que apenas permitiria à beneficiária (Sociedade de Apoio) reclamar prejuízos resultantes do incumprimento.
E para assim concluir, arrancando da leitura do art. 437º do Código Civil, foi peremptório em afirmar que no conceito da figura do contrato a favor de terceiro avulta o requisito da “prestação”, que aqui julga não ser possível, uma vez que essa prestação apenas equivaleria à “celebração de outro contrato” (ver fls. 20 vº a 22 da sentença). Argumento a que ainda adita o de que de um contrato a favor de terceiro não podem nascer obrigações para este. Dois obstáculos, portanto, que, em sua óptica, o impediam de preencher os elementos-tipo desta espécie contratual.
A solução a dar a ambos estes impedimentos invocados pelo Ex.mo juiz “a quo” merece um tratamento em bloco.
Vejamos.
Segundo o art. 437º do CC:
“1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais”.
No contrato a favor de terceiro, como se vê, existem três elementos pessoais a considerar: dois contraentes e um beneficiário; de um lado, o promitente, a pessoa que promete realizar a prestação e o promissário, a pessoa a quem é feita a promessa; do outro, o terceiro beneficiário, estranho à relação contratual, mas que adquire direito à prestação. Eis aqui um bom exemplo de desvio à relatividade dos contratos ou ao princípio do efeito relativo (inter-partes) dos contratos1.
Claro que se poderia alvitrar que, para valer perante um qualquer terceiro, este deveria ser designado no contrato como beneficiário, o que implicava desde logo a sua identificação. Todavia, este eventual obstáculo tomba sob o peso da norma criada pelo art. 439º, ao permitir que a prestação pode ser estipulada a favor de terceiro indeterminado, bastando que o beneficiário seja determinável no momento em que o contrato vai produzir efeitos a seu favor.
Regra geral, portanto, do contrato nasce um direito a uma prestação2, a uma vantagem3, não uma obrigação4. Por isso se diz que o efeito para a esfera do “beneficiário” deva ser positivo5.
A questão está, agora, em saber duas coisas:
Uma, se esse efeito positivo ou de vantagem é incompatível com a atribuição de deveres; outra, como deve esse efeito ser conferido, isto é, qual a forma de manifestação da prestação.
A primeira questão, é respondida com relativa facilidade. É certo que através de um contrato entre duas partes não pode impor-se apenas uma obrigação a outra pessoa que nele não tenha figurado, enquanto objecto único dos efeitos pretendidos em relação a ela. Isso contraria o espírito da relatividade contratual na sua essência mais pura e escapa, pela letra do preceito transcrito, à sua mais estrita previsão. Não é disso, porém que aqui se trata.
Por outro lado, a imposição de deveres, num quadro mais alargado de uma posição jurídica que também envolva vantagens, não tem qualquer eficácia se o terceiro não os aceitar dentro da sua livre determinação e no quadro do exercício da sua vontade. De resto, é hoje pacífico que podem ser fixados ónus e deveres ao terceiro, sem que com isso resulte afectada a sua margem de liberdade. As partes atribuem-lhe vantagens, se de benefícios o negócio unicamente tratar. Mas, se a atribuição do efeito positivo carecer de uma atitude posterior do beneficiário da qual resulte a assunção de deveres, através da sua adesão por qualquer facto6, não se vê em que isso contrarie o objectivo do contrato. A vantagem é, para este efeito, cindível ou autonomizável. Por conseguinte, tudo ficará cometido ao seu livre arbítrio e alto critério pessoal: o terceiro é livre de acatar ou não os deveres, sendo certo que se a sua resposta for negativa, perderá o direito à vantagem e ao efeito positivo7 resultante daquele contrato.
A segunda pode ser mais problemática, mas a solução acaba por ser pacífica, segundo se crê, se for de entender que “dar trabalho”, isto é, conceder um posto de trabalho, proporcionar emprego a alguém nas condições estipuladas no contrato-norma é uma prestação de facere ou uma prestação de facto8, mesmo que incluída numa relação jurídica a constituir. O contrato a celebrar com o terceiro não seria o fim último da situação de vantagem reconhecida e prometida pelo contrato entre B e Sociedade de Apoio, mas sim e apenas o instrumento jurídico através do qual se realizaria o benefício, a vantagem, o direito.
De resto, também se não deve negar que, para além do efeito positivo traduzido no próprio emprego prometido oferecer, qualquer cláusula que ali o promitente assumiu em benefício do trabalhador a contratar (v.g, valor remuneratório, garantia de assistência, etc.) ainda representa uma prestação positiva a que B se obrigou.
Por conseguinte, os obstáculos erigidos na sentença a este respeito, salvo melhor opinião, não têm consistência. O que equivale a dizer que (…), o contrato a favor de terceiro9 será aquele que melhor se adequa à situação em apreço e é nesse pressuposto que avançaremos para as consequências daí emergentes” (destaque nosso)
Julgamos que a transcrição é suficiente para, com base no seu teor, o qual aqui uma vez mais subscrevemos, darmos por improcedente o recurso nesta parte.
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2 – Das diferenças salariais
Partindo do contrato de prestação de serviços nºs 1/1, a sentença apurou as diferenças salariais que ao autor seriam devidas a título de remuneração. E o quantitativo que alcançou foi o de MOP 25.180,00, reduzido no entanto para MOP$ 24.430,00, por ser o valor que a esse título foi peticionado pelo autor na petição inicial.
Tendo em conta o que acima concluímos, nada tem o TSI a censurar quanto a esta parte do julgado pelo que nada mais há a referir.
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3 – Do trabalho extraordinário
A recorrente, limitando-se a dar por reproduzido neste capítulo o que havia referido sobre a natureza do dito Despacho e dos contratos subsequentemente celebrados, entende que deles não podem emergir direitos de crédito em benefício do autor. Razão pela qual conclui que, nesta parte, deveria ser absolvida do pedido.
Ora, face ao que acima asseverámos, entende o TSI que não tem motivo para divergir da sentença, também neste capítulo.
Será, pois, o valor de MOP$ 9.990,08 a considerar para este efeito, de acordo com os termos do julgado na 1ª instância.
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4 – Do trabalho em dia de descanso semanal
A sentença impugnada considerou que o trabalho prestado em dias de descanso semanal deveria ser pago em dobro, para além daquele que foi recebido em singelo.
No recurso, a recorrente defende que o dobro da remuneração deve incluir o valor já recebido.
A razão está do lado da sentença, sem dúvida, como este TSI repetidamente sublinhado nos seus arestos, dos quais, por comodidade, citamos o proferido em 16/11/2017, no Proc. nº 680/2017, de que transcreveremos o seguinte trecho:
“A razão está do lado do recorrente, como este TSI de forma insistente tem vindo a decidir (v.g., ver os Acs. TSI de 15/05/2014, Proc. nº 61/2014, de 15/05/2014, Proc. nº 89/2014, de 29/05/2014, Proc. nº 627/2014; 29/01/2015, Proc. nº 713/2014; 4/02/2015, Proc. nº 956/2015; de 8/06/2016, Proc. nº 301/2016; 1/06/2017, Proc. nº 307/2017;27/07/2017, Proc. nº 447/2017).
Com efeito, no que a este assunto concerne, vale o disposto no art. 17º, nºs 1, 4 e 6, al. a), do DL nº 24/89/M.
Nº1: Tem o trabalhador direito a gozar um dia de descanso semanal, sem perda da correspondente remuneração (“sem prejuízo da correspondente remuneração”).
Nº4: Mas, se trabalhar nesse dia, fica com direito a gozar outro dia de descanso compensatório e, ainda,
Nº6: Receberá em dobro da retribuição normal o serviço que prestar em dia de descanso semanal.
Portanto, como o trabalhador trabalhou o dia de descanso semanal terá direito ao dobro do que receberia, mesmo sem trabalhar (n.º 6, al. a)).
Como remunerar, então, este dia de trabalho prestado em dia que seria de descanso semanal?
Ora bem. Numa 1ª perspectiva, se o empregador pagou o valor devido (pagou o dia de descanso que sempre teria que ser pago), falta pagar o trabalho prestado. E como o prestado é pago em dobro, tem o empregador que pagar duas vezes a “retribuição normal” (o diploma não diz o que seja retribuição normal, mas entende-se que se refira ao valor remuneratório correspondente a cada dia de descanso, que por sua vez corresponde a um trinta avos do salário mensal).
Numa 2ª perspectiva, se se entender que o empregador pagou um dia de salário pelo serviço prestado, continuam em falta:
- Um dia de salário (por conta do dobro fixado na lei), e ainda,
- O devido (o valor de cada dia de descanso, que não podia ser descontado, face ao art. 26º, n.º 1);
E, em qualquer caso, sem prejuízo da remuneração correspondente ao dia de “descanso compensatório” a que se refere o art. 17º, nº4 - desde que peticionada, como foi o caso, - quando nele se tenha prestado serviço (neste sentido, v.g., Ac. TSI, de 15/05/2014, Proc. nº 89/2014).
Quanto à remuneração pelo dia de descanso semanal, temos, portanto, que a fórmula a utilizar será AxBx2, a que não há que descontar o valor já efectivamente pago em singelo.
Não faria, aliás, sentido que fosse de outra maneira.
Na verdade, se o trabalhador, mesmo sem prestar serviço nesse dia de descanso (v.g., domingo), sempre já auferiria o correspondente valor (uma vez que a entidade patronal não lho pode descontar), não faria sentido que, indo trabalhar nesse dia apenas passasse a receber em singelo o trabalho efectivamente prestado. Seria injusto que apenas se pagasse ao trabalhador esse dia de serviço, que deveria ser de folga e descanso. Que vantagem teria então o trabalhador por prestar serviço a um domingo, se, além do que já receberia mesmo sem trabalhar, apenas lhe fosse pago o valor do trabalho efectivamente prestado nesse dia de folga como se tratasse de uma dia normal de trabalho?!
Por isso é que o legislador previu que o trabalho efectivamente prestado nesses dias pelo trabalhador, além do valor que já lhes seria devido em qualquer caso, fosse compensado em dobro pelo valor da retribuição normal diária. Quando a lei fala em dobro refere-se, obviamente, à forma de remunerar esse serviço efectivamente prestado nesses dias de descanso, sem atender, claro, ao valor da remuneração a que sempre teria direito correspondente ao dia de descanso”.
Significa isto que a 1ª instância andou bem em liquidar em MOP$ 23.032,16 o valor a pagar neste capítulo.
*
Não foi impugnada no presente recurso nenhuma outra parte da sentença, razão pela qual toda ela tem que ser confirmada.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
               T.S.I., 06 de Dezembro de 2018
               José Cândido de Pinho
               Lai Kin Hong
               Tong Hio Fong
               Votei vencido por entender que, para efeitos de cálculo do valor da compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal, o trabalhador tem direito a receber o dobro da retribuição, mas há-de descontar o salário diário já pago em singelo, sob pena de ele estar a ser pago, não pelo dobro, mas pelo triplo do valor diário, ao que acresce ainda o dia de descanso compensatório previsto no n.º 4 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, o trabalhador irá ser pago pelo quádruplo do valor diário se trabalhar em dias de descanso semanal.


1 Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudos de Direito Civil, pag. 492.
2 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pag. 410;
3 Digo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, pag. 13.
4 Ob. cit, pag. 417.
5 Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 493. Também, E. Santos Junior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Almedina, pag. 165.
6 Inclusive pela forma que as partes contraentes entendam indicar: Autor e ob. cit, pag. 519. Nós entendemos que isso pode ser feito pela via do contrato a celebrar.
7 Neste sentido, por outras palavras, ver Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 494.
8 Neste sentido, ver Ac. do TSI no Proc. nº 574/2010, de 19/05/2011 e referências ali feitas à noção de prestar por Pessoa Jorge, in Obrigações, 1966, pag. 55, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º, pag. 336 e 338.
9 O TSI assim tem considerado de forma insistente (v.g., Ac. TSI, de 23/06/2011, Proc. nº 69/2011; 25/07/2013, 25/04/2013, Proc. nº 372/2012, 13/09/2012, Proc. nº 396/2012).
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447/2018 22