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Processo n.º 808/2018 Data do acórdão: 2018-12-13 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– mensagem recebida em telemóvel mas ainda não aberta
– mensagem recebida em telemóvel e já aberta
– regime de protecção de reserva das comunicações
– conversas deixadas na aplicação “wechat” de telemóvel
S U M Á R I O
1. Tal como acontece com o correio tradicional, no âmbito da recolha de prova em processo penal, deverá ser dado um tratamento diferenciado a mensagens recebidas mas ainda não abertas, por um lado, e a mensagens recebidas e já abertas, por outro. Quanto às primeiras, se se lhe aplicar o regime processual do correio tradicional, têm que ser consideradas correspondência não aberta. No que respeita às segundas, se já foram abertas, porventura lidas e mantidas no computador ou telemóvel a que se destinavam, não deverão ter mais protecção que as cartas em papel que são recebidas, abertas e porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo. Sendo meros documentos escritos, estas mensagens não gozam da aplicação do regime de protecção de reserva da correspondência e das comunicações.
2. No caso dos autos, as mensagens de “wechat” foram recebidas em telemóvel e já abertas, antes da valoração do teor das mesmas pelo tribunal a quo, pelo que se lhes aplica inteiramente a posição jurídica acima referida, sendo, pois, legalmente admissível a sua valoração pelo tribunal para efeitos de formação da sua livre convicção sobre os factos.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 808/2018
(Recurso em processo penal)
Recorrente: 1.o arguido A







ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 897 a 915 do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR3-17-0493-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 1.o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado como autor material de seis crimes consumados de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 4, alínea b), do Código Penal (CP), em dois anos e nove meses de prisão por cada, e de dois crimes consumados de emissão de cheque sem provisão de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 214.o, n.o 2, alínea a), do CP, em um ano de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico dessas oito penas, finalmente em seis anos e seis meses de prisão única, para além da condenação no pagamento de diversas quantias indemnizatórias (com juros legais contados da data desse acórdão até efectivo e integral pagamento) fixadas a favor das correspondentes pessoas ofendidas.
Inconformado, veio esse arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a anulação do julgamento ou a absolvição penal total dele ou pelo menos a condenação dele sob a figura de crime continuado, ou, fosse como fosse, a nova medida das penas parcelares e única em seu favor, tendo alegado (no seu essencial) o seguinte na sua motivação (de fls. 926 a 934 dos presentes autos correspondentes):
– a decisão condenatória recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), porquanto:
– a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento não permite dar como provados os factos inseridos no elenco de factos provados, nem sustenta a condenação do próprio recorrente (por não se mostrarem preenchidos os crimes de abuso de confiança e de emissão de cheque sem provisão dos quais vinha acusado);
– a convicção do Tribunal recorrido apoiou-se essencialmente nas declarações prestadas pelos ofendidos e baseou-se na prova documental, sendo certo que grande parte da prova documental (consistente em mensagens de texto) não é admissível, por se tratar de um método proibido de prova nos termos do art.o 113.o do CPP);
– o Tribunal recorrido andou mal ao julgar como provados os factos n.os 1 a 10 e 12 a 19;
– isto porque era mister saber a proveniência do dinheiro, a origem dos fundos, especialmente das quantias alegadamente ganhas ao jogo, na medida em que existe legislação (i.e., Lei n.o 2/2006) que obriga a que sejam produzidos registos das apostas ganhas ao jogo e da conversão do dinheiro ganho ao jogo em dinheiro vivo;
– cabia ao Ministério Público ter produzido prova nesse sentido, o que não foi feito, e o Tribunal recorrido bastou-se com o depoimento dos ofendidos, sem ser averiguada a proveniência dos fundos;
– isso aliado ao facto de também não existir qualquer recibo a comprovar que os montantes foram entregues como alegado pelos ofendidos, não se podendo dar como provados os factos descritos na acusação relativos aos crimes de abuso de confiança (factos n.os 1 a 10 e 12 a 13);
– resulta dos autos que a assinatura constante do documento de identificação do arguido recorrente não é a mesma como aposta nos cheques, e sendo a assinatura um elemento essencial do cheque, os cheques em causa não produzem efeito enquanto cheque;
– não se demonstrou cabalmente a relação subjacente ou causal que terá dado origem à emissão dos cheques, e mais uma vez, não bastavam as declarações da 10.a pessoa ofendida e cabia ao Ministério Público a prova dos elementos necessários ao preenchimento do tipo legal, nomeadamente a alegação e prova de factos constitutivos do dolo;
– e subsidiariamente falando, sempre seria de aplicar ao recorrente a figura de crime continuado, no sentido de passar ele a ser condenado por um crime continuado de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado e um crime continuado de emissão de cheque sem provisão, por existir uma só resolução criminosa, num período compreendido entre Junho a Julho de 2017;
– e fosse como fosse, as penas aplicadas no acórdão recorrido ao recorrente deveriam ser próximas do limite mínimo das respectivas molduras legais, atentas nomeadamente todas as circunstâncias que envolveram a prática dos factos, sendo de aplicar aos crimes de emissão de cheque sem provisão as penas de multa.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador junto do Tribunal recorrido (a fls. 946 a 951) no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu, em sede de vista, a Digna Procuradora-Adjunta parecer (de fls. 975 a 977v), pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido (originalmente em chinês) a fls. 897 a 915v dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
O 1.o arguido ora recorrente começou por apontar à decisão condenatória recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Contudo, do teor da argumentação concretamente tecida por ele para sustentar a existência desse vício aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, resulta nítido que o que ele andou a suscitar a título principal na sua motivação do recurso não tinha a ver propriamente com este vício, mas sim com o eventual vício de erro notório na apreciação da prova previsto na sede da alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP. (E mesmo que assim não se entendesse, sempre se diria que a decisão condenatória recorrida não pôde ter enfermado do vício nominado na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, uma vez que da leitura do elenco dos factos acusados concretamente dados por provados e como tal descritos especificadamente nas páginas 12 (a partir da linha 10 da página 12) a 21 (até à linha 13, inclusive) do texto do acórdão recorrido, conjugada com o teor das linhas 4 a 21 da página 22 do mesmo texto decisório, se vislumbra que o Tribunal recorrido já investigou, e sem omissão alguma, todo o tema probando traçado pela matéria fáctica então acusada pelo Ministério Público inclusivamente ao 1.o arguido ora recorrente).
Assim sendo, é de ver se o Tribunal recorrido errou ou não na apreciação da prova.
Desde já, há que aquilatar do argumento do recorrente respeitante à falada prova proibida.
Alegou ele que a prova documental dos autos é constituída, em parte, por mensagens trocadas (mormente através de “wechat”) em telemóvel, cujo conteúdo não pode ser objecto de valoração probatória, sob pena de se estar a utilizar um método proibido de prova.
Sobre esta temática, já se pronunciou este TSI no acórdão de 16 de Junho de 2016 do Processo n.o 830/2015 e no acórdão de 30 de Junho de 2016 no Processo n.o 373/2016, no sentido de legalidade da valoração probatória das mensagens de “wechat” em telemóvel recebidas e já abertas, sem ofensa alguma às regras sobre a prova proibida.
Isto porque tal como acontece com o correio tradicional, no âmbito da recolha de prova em processo penal, deverá ser dado um tratamento diferenciado a mensagens recebidas mas ainda não abertas, por um lado, e a mensagens recebidas e já abertas, por outro. Quanto às primeiras, se se lhe aplicar o regime processual do correio tradicional, têm que ser consideradas correspondência não aberta. No que respeita às segundas, se já foram abertas, porventura lidas e mantidas no computador ou telemóvel a que se destinavam, não deverão ter mais protecção que as cartas em papel que são recebidas, abertas e porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo. Sendo meros documentos escritos, estas mensagens não gozam da aplicação do regime de protecção de reserva da correspondência e das comunicações.
No caso dos autos, as mensagens de “wechat” foram recebidas e já abertas, antes da valoração do teor das mesmas pelo Tribunal recorrido, pelo que se lhes aplica inteiramente a posição jurídica já assumida nos dois acórdãos acima identificados, no seguimento da doutrina jurídica pertinente na matéria em questão (e referida na fundamentação jurídica desses dois próprios arestos).
Outrossim, falou o arguido ora recorrente da legislação sobre a prevenção e repressão de crime de branqueamento de capitais (mormente a Lei n.o 2/2006).
Entretanto, independentemente da indagação do demais por desnecessária, a eventual inexistência de registo de apostas ganhas ao jogo e/ou de registo de conversão do montante ganho ao jogo não obsta à formação da livre convicção do Ente Julgador Judicial sobre os factos objecto da causa penal em questão, sob o aval do art.o 114.o do CPP.
Por outra banda, a alegada inexistência de recibos de montantes entregues por pessoas ofendidas também não impede a formação da livre convicção do Tribunal recorrido sobre os factos em julgamento.
É que no caso dos autos, vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se mostra patente que o Tribunal recorrido tenha violado quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis, ou ainda quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, no julgamento dos factos então acusados.
Daí que não se pode satisfazer o desejo do ora recorrente de ver não provados os factos já dados por provados no acórdão recorrido com os quais ele não concordou especificadamente na motivação do recurso (sendo de notar que quanto à assinatura aposta nos cheques, é regra da experiência da vida humana que não poucas vezes a gente adopta um tipo de assinatura diferente da constante do documento de identificação, para efeitos de emissão de seu cheque).
É, pois, de deixar intocada toda a factualidade provada em primeira instância, a qual preenche todos os requisitos da verificação dos crimes por que vinha condenado o recorrente no acórdão recorrido, não só a nível dos respectivos tipos-de-ilícito objectivos como subjectivos (sendo de observar que essa mesma factualidade provada (cf. em concreto, os quatro primeiros parágrafos do conteúdo do facto provado 14, descrito nas páginas 19 a 20 do texto do acórdão recorrido) já demonstrou até qual a relação causal subjacente à emissão de cheques a favor da 10.a pessoa ofendida).
O recorrente pretendeu, subsidiariamente rogando, que fosse condenado como autor material de um crime continuado de abuso de confiança e de um crime continuado de emissão de cheque sem provisão.
Mas, em vão, aos olhos do presente Tribunal de recurso. É que atenta toda a matéria fáctica dada por provada em primeira instância, não é de julgar, desde logo e independentemente da indagação do demais, como existente, no caso, alguma situação exterior (pressuposta no n.o 2 do art.o 29.o do CP) susceptível de diminuir consideravelmente o grau da culpa do agente, pelo que não é de aplicar a regra especial da punição plasmada no art.o 73.o do CP (sobre o sentido e alcance da figura de crime continuado, cf. EDUARDO CORREIA, in DIREITO CRIMINAL, II, Livraria Almedina, Coimbra, 1992, páginas 208 a 211).
E agora da questão da medida da pena:
Desde já, não se pode aplicar pena de multa em detrimento da pena de prisão quanto aos crimes de emissão de cheque sem provisão do recorrente, em virtude das prementes e elevadas exigências da prevenção geral do tipo legal de emissão de cheque sem provisão de valor consideravelmente elevado (cf. o critério material na questão da escolha da espécie da pena plasmado no art.o 64.o do CP).
E sobre a medida concreta das penas parcelares e única: ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas e descritas no acórdão recorrido com pertinência à medida da pena aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o, n.os 1 e 2, e 71.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro das correspondentes molduras penais aplicáveis, é de julgar que todas as penas parcelares e única já achadas pelo Tribunal recorrido ao recorrente não admitem mais redução.
Naufraga, in totum, o recurso, sem mais abordagem, por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pelo arguido recorrente, com dez UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão às pessoas ofendidas referidas no ponto 5 do dispositivo do acórdão recorrido.
Macau, 13 de Dezembro de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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