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Processo n.º 883/2018 Data do acórdão: 2018-12-18 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal

S U M Á R I O
Como vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se mostra patente que o tribunal recorrido tenha violado quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis, ou ainda quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações no julgamento dos factos, não pode ter esse tribunal cometido o erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 883/2018
(Recurso em processo penal)
Recorrentes:
1.a arguida A
  2.o arguido B








ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 742 a 767 do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR5-17-0006-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base:
– ficou a 1.a arguida A condenada (na parte penal falando) como co-autora material de um crime consumado de burla de valor consideravelmente elevado, p. e p. sobretudo pelo art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do Código Penal (CP), na pena de três anos e três meses de prisão, como autora material de um crime consumado de burla de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do CP, na pena de quatro anos de prisão, como autora material de um outro crime consumado de burla de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do CP, na pena de três anos e três meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de sete anos de prisão;
– e ficou o 2.o arguido B condenado (na parte penal falando) como co-autor material de um crime consumado de burla de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do CP, na pena de três anos e três meses de prisão.
Inconformados, vieram os dois arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou (no essencial) a 1.a arguida e rogou o seguinte na sua motivação apresentada a fls. 789 a 811 dos presentes autos correspondentes:
– a decisão condenatória dos seus três crimes de burla padece do erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), porquanto o Tribunal recorrido não considerou como verdadeiros ofendidos os diversos pretendentes de emprego de Macau, mas sim as pessoas que receberam desses pretendentes os “emolumentos de tratamento de pedido de emprego”;
– assim, diversamente do entendido pelo Tribunal recorrido, o número de crimes de burla deveria ser contado em função do número de pessoas pretendentes de emprego de Macau (nos termos do art.o 105.o do CP), e os crimes de burla em causa deveriam ser de burla simples (atento o valor não grande de “emolumentos” em causa por cada pretendente), e muitos desses crimes de burla simples não poderiam ter sido objecto de procedimento penal por falta de apresentação tempestiva de queixa por parte de muitos respectivos pretendentes de emprego;
– sem prova concreta objectiva (por exemplo: recibos), não se pode basear em declarações de pessoas queixosas para se julgar a matéria de facto relativa ao “adiantamento dos emolumentos feito por pessoas queixosas a favor de diversos pretendentes do emprego de Macau”; e seja como for, só se trata, no caso dos autos, da situação referida no art.o 583.o do Código Civil (CC), sem qualquer responsabilidade penal daí adveniente;
– houve erro notório na apreciação da prova respeitante ao montante pecuniário referido no facto provado 20, pois o montante aí referido de trinta mil renminbis pago pela ofendida C deveria ser de vinte mil renminbis apenas, conforme o teor do depoimento prestado por essa ofendida na audiência de julgamento;
– houve também erro notório na apreciação da prova respeitante à matéria descrita no facto provado 13, com consequente devida absolvição de um crime de burla de valor consideravelmente elevado;
– assim sendo, deveria ela ser absolvida dos seus crimes de burla de valor consideravalmente elevado, e apenas condenada num crime de burla simples (relativo à ofendida C), com rectificação da quantia indemnizatória arbitrada a esta, de trinta mil renminbis para vinte mil renminbis apenas;
– e fosse como fosse, as penas achadas no acórdão recorrido para ela seriam sempre severas, pelo que deveriam ser reduzidas.
Por outra banda, alegou (no essencial) o 2.o arguido e rogou o seguinte na sua motivação apresentada a fls. 818 a 913 dos autos:
– houve falta de fundamentação no acórdão recorrido (mormente na parte da sua fundamentação probatória), ao arrepio do art.o 355.o, n.o 2, do CPP, pelo que a decisão recorrida deveria ser declarada nula;
– houve ilegalidade no exercício do direito de queixa (sobretudo por não se poder concluir que o ofendido do crime por que o próprio recorrente ficou condenado em primeira instância era esse mesmo ofendido), em violação do disposto nos art.os 220.o, n.o 1, e 105.o, n.o 1, do CP e no art.o 38.o do CPP, daí que o procedimento criminal deveria ter sido declarado extinto;
– a decisão recorrida padeceu da contradição insanável da fundamentação (devido à existência de contradição entre os factos provados 13 e 38 e alguns factos provados da causa civil enxertada) e do erro notório na apreciação da prova (designadamente no julgamento dos factos 2, 8, 13 e 38), com violação do princípio de in dubio pro reo, devendo ser reenviado o processo para novo julgamento;
– e fosse como fosse, foram violados os art.os 40.o e 65.o do CP na medida da pena, devendo o recorrente passar a ser condenado em pena inferior a dois anos e seis meses de prisão, com suspensão da execução da pena.
Aos recursos, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 985 a 992 no sentido de improcedência do recurso do 2.o arguido, e de procedência do recurso da 1.a arguida apenas na parte respeitante à quantia indemnizatória relativa a uma das pessoas ofendidas.
Subidos os autos, emitiu, em sede de vista, a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 1004 a 1009v, opinando também pelo não provimento do recurso do 2.o arguido, e pelo provimento do recurso da 1.a arguida somente na parte respeitante à rectificação da quantia indemnizatória relativa a uma das pessoas ofendidas, a qual deve ser de vinte mil renminbis e não de trinta mil renminbis.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido (originalmente em chinês) a fls. 742 a 767 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
Nesse acórdão, foi arbitrada oficiosamente a quantia indemnizatória de trinta mil renminbis a favor da ofendida chamada C, com juros legais desde a data desse aresto até efectivo e integral pagamento.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
A 1.a arguida começou por apontar à decisão condenatória recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova.
Entretanto, a questão (também suscitada por essa recorrente ao invocar esse vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP) de quem deve ser considerado ofendido nos crimes de burla não tem propriamente a ver com a apreciação da prova, mas sim com a questão de interpretação dos factos provados, questão essa que irá ser apreciada depois.
Outrossim, é de notar que a questão de rectificação do montante indemnizatório arbitrado no acórdão recorrido a favor da ofendida C não pode ser objecto de apreciação na presente lide recursória, porquanto o montante de trinta mil renminbis por que vinha condenada essa recorrente a favor dessa ofendida nem ultrapassar a alçada da Primeira Instância em matéria civil (cf. as disposições conjugadas dos art.os 74.o, n.o 3, e 73.o do CP, do art.o 583.o, n.o 1, parte inicial, do Código de Processo Civil e do art.o 18.o, n.o 1, da Lei n.o 9/1999).
É, pois, altura de aquilatar se o Tribunal recorrido cometeu, ou não, erro notório na apreciação da prova.
Após vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se mostra patente que o Tribunal recorrido tenha violado quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis, ou ainda quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, no julgamento dos factos, inclusivamente da matéria fáctica descrita no facto provado 13, sendo de frisar que o recibo não é o único meio legalmente admissível para fazer provar a entrega de determinado montante.
Não sendo de alterar a factualidade provada em primeira instância, por razões acima expostas, é de decidir agora se é correcta a qualificação jurídico-penal dos factos provados feita pelo Tribunal recorrido.
Em face dessa factualidade provada, é de concordar com o raciocínio exposto pelo Tribunal recorrido sobretudo no segundo parágrafo da página 36 e no 3.o parágrafo da página 37 do texto do seu acórdão, pelo que o montante a considerar para efeitos de qualificação jurídico-penal dos actos de burla no caso dos autos não é cada um dos montantes de “emolumentos” de cada um dos pretendentes de emprego de Macau, improcedendo, assim, a tese de crimes simples de burla, o que prejudica a necessidade de abordagem da tese de falta de queixa tempestiva e da tese de sub-rogação do art.o 583.o do CC.
A 1.a arguida fez uma referência vaga à norma do art.o 29.o do CP sobre o crime continuado. Seja como for, não se vislumbra ao presente Tribunal de recurso que in casu haja qualquer situação exterior susceptível de diminuir consideravelmente o grau de culpa dessa recorrente na prática dos factos de burla em causa, pelo que não se lhe aplica a figura de crime continuado (e sobre o sentido e alcance da figura de crime continuado, cf. EDUARDO CORREIA, in DIREITO CRIMINAL, II, Livraria Almedina, Coimbra, 1992, páginas 208 a 211).
E agora da questão da medida da pena:
Ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas e descritas no acórdão recorrido com pertinência à medida da pena aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o, n.os 1 e 2, e 71.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro das correspondentes molduras penais aplicáveis, é de julgar que todas as penas parcelares e única já achadas pelo Tribunal recorrido à 1.a arguida não admitem mais redução.
É de conhecer agora do recurso do 2.o arguido:
Este recorrente suscita a questão de falta de fundamentação no acórdão recorrido, mas em vão, dado que lida a fundamentação desse aresto, não se mostra que o Tribunal recorrido tenha incumprido o seu dever de fundamentação exigido no n.o 2 do art.o 355.o do CPP, mormente a nível da fundamentação probatória alusiva ao processo de formação da sua livre convicção sobre os factos.
Invoca este arguido o vício de contradição insanável da fundamentação (nomeadamente entre os factos provados 13 e 38 e alguns factos provados na causa civil enxertada). Mas, também não assiste razão ao arguido, como observou já a Digna Procuradora-Adjunta (concretamente, nos primeiros quatro parágrafos da página 9 do seu judicioso parecer, a fl. 1008 dos autos). De facto, a fundamentação da decisão penal condenatória do 2.o arguido em primeira instância mostra-se congruente, sem contradição alguma, e os factos civis provados não contradizem irredutivelmente com os factos penais provados, mas sim descrevem em detalhes a relação material civil controvertida em discussão na causa civil enxertada, detalhes esses que não comprometem a validade legal da condenação penal desse arguido, nem a condenação civil dele tomada no acórdão recorrido.
No tangente ao também assacado erro notório na apreciação da prova, não se pode dar por verificado este vício, porque realmente o Tribunal recorrido não violou quaisquer regras da experiência da vida humana, ou quaisquer normas sobre o valor legal das provas, ou quaisquer legis artis no julgamento dos factos (designadamente no julgamento dos factos 2, 8, 13 e 38).
Quanto à questão de quem deve ser considerado ofendido e à questão de falta de queixa e à questão de qualificação jurídico-penal dos factos de burla, improcedem todas essas questões, por razões, aqui adoptadas, já aduzidas acima aquando da análise do recurso da 1.a arguida.
Por fim, no concernente à medida da pena desse arguido, também não lhe assiste razão, já que a decisão recorrida lhe aplicou pena de prisão justa, aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, pena justa essa que não poderia ser objecto de suspensão, por inverificação do requisito formal do n.o 1 do art.o 48.o do CP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em manter a decisão recorrida.
Custas dos recursos pelos respectivos dois arguidos recorrentes, com dez UC de taxa de justiça para cada um deles.
Macau, 18 de Dezembro de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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