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Processo n.º 773/2018 Data do acórdão: 2018-12-6 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– crime de consumo ilícito de estupefaciente
– crime de detenção indevida de utensílio
– concurso aparente
S U M Á R I O

Não há relação de concurso aparente entre o crime de consumo ilícito de estupefaciente e o crime de detenção indevida de utensílio.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 773/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.o arguido B






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 347 a 360 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-18-0165-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base:
– ficou condenado o 1.o arguido A:
– como co-autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), na pena de dez anos de prisão;
– como autor material de um crime consumado de consumo ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de sete meses de prisão;
– e como autor material de um crime consumado de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.o 15.o da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de sete meses de prisão;
– e, em cúmulo jurídico dessas penas, finalmente na pena única de onze anos de prisão;
– e ficou condenado o 2.o arguido B:
– como co-autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), na pena de nove anos de prisão;
– como autor material de um crime consumado de consumo ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de seis meses de prisão;
– e como autor material de um crime consumado de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.o 15.o da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de seis meses de prisão;
– e, em cúmulo jurídico dessas penas, finalmente na pena única de nove anos e seis meses de prisão.
Inconformados, vieram esses 1.o e 2.o arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou (no essencial) e peticionou o 1.o arguido, na sua motivação apresentada a fls. 374 a 393 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– por existir concurso aparente de normas entre os crimes de consumo e de detenção de utensílio, ele só deveria ser punido pelo crime de consumo, e não por ambos esses crimes;
– ele deveria ser condenado pela prática de “tráfico de quantidades diminutas” do art.o 11.o da Lei n.o 17/2009, e não de tráfico ilícito de estupefacientes (visto que da fundamentação da decisão recorrida não resulta que a sua concreta conexão com o produto estupefaciente encontrado na fracção autónoma do Edifício Hotline, e se o Tribunal recorrido aceitou a confissão dos factos feita pelo 2.o arguido, então essa confissão não pôde ser seccionada, isto porque essa confissão, na parte em que beneficiaria o próprio 1.o arguido (é que o 2.o arguido confessou também que essa fracção não era residência do 1.o arguido), também deveria ser aceite como verdadeira pelo Tribunal recorrido);
– e fosse como fosse, as suas penas deveriam ser reduzidas (não devendo a pena do tráfico exceder os sete anos e seis meses de prisão, e cada um dos restantes dois crimes exceder os dois meses de prisão, e a pena única os sete anos e oito meses de prisão), sobretudo por razões de justiça relativa em comparação com o 2.o arguido, até porque o Tribunal recorrido não especificou os fundamentos que presidiram à medida da sanção (art.o 356.o, n.o 1, do Código de Processo Penal (CPP)), nem expressamente referiu os fundamentos de determinação da pena (art.o 65.o, n.o 3, do Código Penal (CP)).
Por outra banda, alegou (no essencial) e rogou o 2.o arguido na sua motivação de 368 a 370v, o seguinte:
– ele deveria ser absolvido do crime de detenção indevida de utensílio, porquanto os objectos apreendidos em questão não poderiam ser considerados como utensílios especificadamente destinados ao consumo de estupefaciente, para efeitos de incriminação do art.o 15.o da Lei n.o 17/2009 (cf. o entendimento veiculado no acórdão do TSI de 28 de Julho de 2015, no Processo n.o 669/2015);
– além disso, houve excesso por parte do Tribunal recorrido na medida das penas.
Aos recursos dos 1.o e 2.o arguidos, respondeu a fls. 404 a 407 e a fls. 408 a 410, respectivamente, a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido, igualmente no sentido de improcedência dos recursos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 428 a 430v, pugnando também pelo não provimento dos recursos.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– o acórdão ora recorrido consta de fls. 347 a 360, cuja fundamentação se dá por aqui integralmente reproduzida;
– conforme a fundamentação fáctica desse acórdão, uma fita de papel de estanho apreendida nos autos foi usada pelo 1.o arguido para consumo de estupefaciente, e uma garrafa plástica com tubo de ingestão apreendida nos autos foi usada pelos 1.o e 2.o arguidos para consumo de estupefaciente (cfr. o facto provado 15, descrito na página 13 do texto do acórdão, a fl. 353);
– segundo a fundamentação probatória do acórdão recorrido (na parte especialmente escrita nos 3.o e 4.o parágrafos da página 16 do seu texto, a fl. 354v): o 2.o arguido confessou os factos acusados na parte respeitante a ele e declarou, nomeadamente, que o 1.o arguido não residia na fracção autónoma envolvida nos autos; e como existiu divergência grave entre as declarações prestadas em audiência pelo 2.o arguido e as declarações por ele prestadas no Juízo de Instrução Criminal, procedeu-se à leitura da parte (em divergência) destas declarações.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Ambos os dois arguidos recorrentes começaram por pedir a absolvição deles da prática do crime de detenção indevida de utensílio.
Procede este desejo comum deles, concretamente por procedência do argumento invocado pelo 2.o arguido na sua motivação.
É que embora não exista relação de concurso aparente entre o crime de detenção indevida de utensílio e o de consumo ilícito de estupefaciente, como os objectos referidos no facto provado 15 são de uso comum na vida quotidiana das pessoas, os mesmos não podem ser considerados como utensílios especificamente destinados ao consumo ilícito de estupafaciente, pelo que o crime de detenção indevida de utensílio por que os 1.o e 2.o arguidos vinham condenados como autores materiais tem que ser absolvido, decisão absolutória essa que não aproveita aos 4.o e 5.a arguidos (ora não recorrentes) do mesmo processo penal subjacente, porque estes dois arguidos, apesar de serem condenados, cada um deles, em primeira instância, por prática do mesmo tipo legal de detenção indevida de utensílio, não foram co-autores nem do 1.o nem do 2.o arguidos no cometimento deste crime de detenção.
O 1.o arguido alegou que ele próprio não residia na fracção autónoma dos autos (segundo a confissão do 2.o arguido feita na audiência), pelo que as quantidades de estupefacientes encontradas pela Polícia nessa fracção não poderiam ser contabilizadas no sentido de se fazer imputar a ele a prática de um crime de tráfico ilicito de estupefaciente.
Não pode proceder esta tese do 1.o arguido, porque a questão de o Tribunal sentenciador recorrido não ter acreditado, ou não, nas declarações prestadas pelo 2.o arguido na audiência de julgamento na parte em que este disse que o 1.o arguido não residia na fracção autónoma dos autos é uma questão da livre convicção desse Ente Julgador por aval do art.o 114.o do CPP, o qual, aliás, afirmou, na fundamentação probatória do acórdão recorrido, que o 2.o arguido confessou os factos acusados a ele respeitantes (o que significa que o Tribunal sentenciador não acreditou nas palavras ditas por este 2.o arguido na audiência na parte não respeitante ao próprio 2.o arguido, juízo de valor judicial esse que não se mostra patentemente desrazoável aos olhos do presente Tribunal de recurso, depois de vistos todos os elementos de prova referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido).
Sendo de respeitar assim a matéria de facto já dada por assente em primeira instância (sem qualquer erro notório na apreciação da prova na parte esgrimida pelo 1.o arguido na sua motivação do recurso), é acertada a condenação do 1.o arguido pela prática de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefaciente.
E agora do desejo comum dos dois recorrentes no tangente à medida da pena: ponderando todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à medida concreta da pena aos padrões plasmados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro das molduras penais legalmente aplicáveis, entende o presente Tribunal de recurso que as penas achadas no acórdão recorrido para os crimes de tráfico ilícito de estupefaciente e de consumo ilícito de estupefaciente dos dois recorrentes já não admitem mais margem para redução, improcedendo, pois, a tese de injustiça relativa na medida da pena alegada pelo 1.o arguido, sendo certo que também naufraga a tese deste arguido de não estar fundamentada, no acórdão recorrido, a decisão judicial em matéria da medida da pena (é que da leitura da fundamentação jurídica do aresto recorrido, sobretudo na parte constante da página 22 do respectivo texto, a fl. 357v, resulta que o Tribunal recorrido explicou a sua decisão em matéria da medida da pena).
Entretanto, operado de novo o cúmulo jurídico (por causa da absolvição do crime de detenção indevida de utensílio dos dois recorrentes), nos termos ponderados do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, é de passar a condenar o 1.o arguido em dez anos, três meses e quinze dias de prisão única, e o 2.o arguido em nove anos e três meses de prisão única.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente providos os recursos dos 1º e 2.o arguidos, absolvendo-os da acusada prática de um crime de detenção indevida de utensílio, e passando a condenar (a título de novo cúmulo jurídico das penas já aplicadas no acórdão recorrido para os crimes de tráfico ilícito de estupefaciente e de consumo ilícito de estupefaciente) o 1.o arguido na pena única de dez anos, três meses e quinze dias de prisão, e o 2.o arguido na pena única de nove anos e três meses de prisão.
Pagará o 1.o arguido 3/4 das custas do seu recurso e seis UC de taxa de justiça, em correspondência ao decaimento parcial do recurso.
Pagará o 2.o arguido metade das custas do seu recurso e duas UC de taxa de justiça, em correspondência ao decaimento parcial do recurso.
Fixam em duas mil e duzentas patacas os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso do 2.o arguido, a entrarem na regra de custas.
Macau, 6 de Dezembro de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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