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Processo nº 292/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 13/Dezembro/2018

Assuntos: Fundo de Garantia de Automóvel Marítimo
Sub-rogação nos direitos do lesado após o pagamento

SUMÁRIO
No caso de acidente causado por veículo sujeito ao seguro obrigatório mas não beneficiando o responsável de seguro válido e eficaz, o Fundo de Garantia de Automóvel Marítimo garante o pagamento da indemnização decorrente do respectivo acidente.
Cumprida a obrigação de pagamento da indemnização, aquele Fundo fica sub-rogado nos direitos do lesado.
Se o valor peticionado pelo lesado contra o Fundo de Garantia de Automóvel Marítimo for superior ao limite mínimo do seguro obrigatório, a acção pode ser intentada também contra o obrigado ao seguro e o responsável civil.
Entretanto, o Fundo de Garantia apenas garante o pagamento da indemnização pelos danos até ao limite do seguro obrigatório, enquanto o restante valor indemnizatório é da responsabilidade do obrigado ao seguro e do responsável civil, se for caso disso.
Enquanto garante da obrigação de indemnização, o Fundo de Garantia só fica sub-rogado nos direitos do lesado após o cumprimento da sua obrigação, pelo que não se pode condenar solidariamente o Fundo, o obrigado ao seguro e o responsável civil no pagamento da indemnização ao lesado.
       
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 292/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 13/Dezembro/2018

Recurso final
Recorrente:
- Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo (1º Réu)

Recorridos:
- A e B (Autores)

Recurso subordinado
Recorrente:
- X Insurance (Hong Kong) Limited (Interveniente)

Recorridos:
- A e B (Autores)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
Inconformado com a sentença que condenou o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo (adiante designado por “FGAM”) a pagar aos Autores A e B a quantia de MOP$1.000.000,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, recorreu aquele jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos presentes autos a fls. 821-837, no que respeita (i) à atribuição de culpa / repartição do risco entre a 2ª Ré condutora e a falecida vítima-peão; (ii) ao montante indemnizatório arbitrado a título de danos não patrimoniais (pelos danos da própria vítima; pelo dano de morte e, ainda, pelo sofrimento infligido aos pais sobrevivos); (iii) à condenação do FGAM por lesões materiais (decorrentes das despesas com o funeral e transportes); e (iv) à falta de condenação solidária, juntamente com o ora Recorrente FGAM, da 2ª Ré-condutora e do 3º Réu-proprietário/sujeito da obrigação de segurar, do veículo automóvel com a chapa de matrícula MG-XX-XX, que deu azo ao acidente.
II. Salvo o devido respeito, incorreu-se no dito acórdão em erro de julgamento e violação de lei.
III. No primeiro caso, face ao disposto no artigo 564º do Código Civil de Macau e, particularmente, nos artigos 68º e 70º, ambos da Lei do Trânsito Rodoviário.
IV. No segundo caso, atento o disposto no artigo 564º e, bem assim, na primeira parte do n.º 3 do artigo 489º, em conjugação com o artigo 487º, todos do Código Civil de Macau.
V. No terceiro caso, atento o prescrito no n.º 2 do artigo 23º do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e no n.º 2 do artigo 477º do Código Civil de Macau.
VI. Por fim, no quarto caso, face ao disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 2º, no n.º 2 do artigo 23º, no artigo 25º e nos n.ºs 2 e 3 do artigo 45º, todos do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro (regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) e, bem assim, nos artigos 477º, 496º e 587º do Código Civil de Macau.
VII. Consequentemente, deve aquele ser parcialmente revogado e substituído por outra decisão em que (i) seja excluído o dever de indemnizar da 2ª Ré-condutora; (ii) seja arbitrada indemnização consentânea aos Autores, a título de danos não patrimoniais (apenas pelo dano de morte e sofrimento próprios), que leve em consideração a situação económica do agente e do lesado e as demais circunstâncias da lide, bem como os valores atribuídos em casos semelhantes aos dos autos, em valor global não superior a MOP$1.050.000,00; (iii) o FGAM seja absolvido do pagamento das lesões materiais decorrentes das despesas com o funeral e transportes; e, ainda, (iv) sejam a 2ª Ré-condutora e o 3º Réu-proprietário/sujeito da obrigação de segurar, do veículo automóvel com a chapa de matriculo MG-XX-XX, interveniente no acidente, solidariamente condenados com o FGAM.
VIII. Para o apuramento da culpa efectiva na produção do acidente e sua repartição torna-se imperioso atender às respectivas circunstâncias e dinâmica, nomeadamente: (i) ao local concreto onde o atropelamento aconteceu; (ii) se há ali, comummente, circulação de peões; (iii) se as condições da via são adversas ao seu atravessamento naquele exacto local; (iv) se há nas proximidades pistas, zonas ou passagens destinadas aos peões; (v) existência de sinalização extraordinária; (vi) à velocidade a que circulava o veículo automóvel; (vii) se o condutor deste ia atento ao trânsito; (viii) de onde surge a vítima e sua visibilidade pelo condutor do automóvel; (ix) à distância entre a vítima e o veículo; (x) velocidade do próprio peão no atravessamento.
IX. O atravessamento da Avenida da Amizade por um peão, nas imediações da torre de controlo do grande prémio junto ao Terminal Marítimo do Porto Exterior, é, em si mesmo, um acto perigoso, temerário e leviano, pois naquele local não existe qualquer passeio onde se faça a circulação de peões – de um lado, há apenas relva debaixo do viaduto rodoviário de acesso à Ponte da Amizade; do outro, uma estreita “ilha” que separa a avenida da via adjacente que vem da Ponte da Amizade e que está protegida por um muro -, tanto mais quando a cerca de 200 metros do local existe uma passagem (superior) para peões.
X. Assim, o condutor não é obrigado a prever ou a contar com a falta de prudência dos restantes utentes da via – nomeadamente, peões – antes devendo razoavelmente partir do princípio de que todos cumprem os preceitos regulamentares do trânsito e observam os deveres de cuidado inerentes, «pois se ele as cumpre e a todos é exigido cumpri-las, as probabilidades de acidente estão afastadas».
XI. A circunstância de haver sinalética, na faixa de rodagem contrária, a sinalizar a ocorrência de “trabalhos na estrada”, não determina, por si só, que fosse previsível o atravessamento da via, particularmente quando a faixa de rodagem contrária, onde se realizam os trabalhos, se encontra congestionada e a outra, onde se dá o atropelamento, tem trânsito fluido.
XII. O facto de o peão ser colhido na metade final da hemifaixa esquerda, quase no fim do atravessamento da via, também não indicia nem permite judicialmente presumir que o condutor do automóvel estivesse desatento ou seguisse a velocidade desadequada, tanto mais quando tal factualidade, apesar de alegada, não resultou provada.
XIII. Se o peão surge subitamente entre as duas faixas de rodagem, saindo da parte de trás de um autocarro – não podendo por isso o condutor antecipá-lo face à altura daquele – e se precipita na faixa de rodagem onde a circulação era fluida, a passo rápido, para a atravessar, não se vê como poderia o condutor, mesmo mais prudente, evitar o embate.
XIV. A conduta da vítima, ao ter atravessado a Avenida da Amizade no local em que o fez e naquelas circunstâncias violou de forma muito grave os artigos 68º e 70º da Lei do Trânsito Rodoviário.
XV. A Ré-condutora não violou o disposto no n.º 1 do artigo 30º da Lei do Trânsito Rodoviário, porquanto a mera existência de sinalética na faixa contrária a indicar trabalhos na estrada não exige, por si só, um especial dever de previsibilidade no atravessamento da respectiva via pelos trabalhadores (que, de resto, não o fazem sequer em passo acelerado e saindo detrás de um autocarro!).
XVI. Como com acerto decidiu este douto Tribunal Superior, o condutor de um veículo automóvel não é culpado perante «uma súbita incursão da infeliz vítima na faixa de rodagem em que seguia o arguido, e por isso, incapaz este de o evitar, pois que, também os condutores não têm obrigação de estar a contar com tais “súbitas incursões” na via em que conduzem».
XVII. Sendo o acidente exclusivamente imputável à vítima, sem que haja qualquer culpa objectiva da Ré-condutora e não contribuindo para o mesmo o risco inerente à circulação do veículo em termos de causalidade adequada, fica em consequência excluída a responsabilidade daquela, atento o disposto no n.º 2 do artigo 564º do Código Civil de Macau, pelo que se impõe a revogação da sentença proferida, nesta parte.
XVIII. «Os danos não patrimoniais próprios da vítima correspondem à dor que esta terá sofrido antes de falecer, e devem ser valorados tendo em atenção o grau de sofrimento daquela, a sua duração, o maior ou menor grau de consciência da vítima sobre o seu estado e a previsão da sua morte.»
XIX. A verificação pelo Tribunal, segundo as regras de experiência de vida, de “ausência de possibilidade de usufruir da saúde, da vida, da liberdade de gozo, decorrente das lesões sofridas” não basta, per se, para a atribuição de uma indemnização a título de danos não patrimoniais pelo sofrimento da própria vítima.
XX. Nada vindo provado, no presente caso, quanto à existência de sofrimento e consciência da vítima quanto à sua situação – bem pelo contrário, dos documentos juntos aos autos tudo aponta na imediata perda de consciência e entrada em estado de coma, com aparente morte cerebral – não pode falar-se de danos não patrimoniais próprios da vítima, com o que o Tribunal a quo terá feito uma aplicação errada do disposto no artigo 564º e, bem assim, na primeira parte do n.º 3 do artigo 489º, em conjugação com o artigo 487º, todos do Código Civil de Macau.
XXI. Sendo incontestável que a perda do direito à vida constitui um dano autónomo, susceptível de reparação pecuniária, e que a morte absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais, devendo, por conseguinte, o montante da sua indemnização ser superior à soma dos montantes de todos os outros danos imagináveis, não pode descurar-se que a sua valoração em concreto, através de uma compensação uniforme, deverá ter em conta diversos factores, de natureza circunstancial própria ou social, como a idade da vítima, a sua saúde, integração e relacionamento social, função desempenhada na sociedade, entre outros.
XXII. Esta é, de resto, a jurisprudência que tem vindo a formar-se junto dos Tribunais Superiores da RAEM, que têm vindo a defender que no cálculo da indemnização pelo dano de morte se deve atender a critérios de “equidade”, ao “grau de culpa” e “às demais circunstâncias do caso”, com o que adequado parece se o entendimento jurisprudencial segundo o qual se deve atender à “situação concreta”.
XXIII. Não tendo o Tribunal a quo fundamentado a sua decisão em qualquer razão objectiva, que sustente a fixação do montante de MOP$1.200.000,00 – nem sequer a referida “já frequente jurisprudência em que se arbitram valores ligeiramente superiores” – tal valor afigura-se manifestamente exagerado, nomeadamente face à idade da vítima e à função social que desempenhava na sociedade, já que mais não vem provado nos autos, com o que o Tribunal a quo terá feito uma aplicação errada do disposto no artigo 564º e, bem assim, na primeira parte do n.º 3 do artigo 489º, em conjugação com o artigo 487º, todos do Código Civil de Macau.
XXIV. Face aos valores praticados por este douto Tribunal, afigura-se ao FGAM que o valor a atribuir pelo dano de morte dever-se-á fixar, in casu, em montante não superior a MOP$800.000,00.
XXV. Salvo raras e anómalas excepções, a perda do lesado é para os seus familiares mais próximos causa de sofrimento profundo, sendo facto notório o grave dano moral que a perda de uma vida humana traz aos seus familiares, normalmente as pessoas que lhe são mais chegadas.
XXVI. Não obstante, é pacífico entre a jurisprudência que um dos factores a ponderar na atribuição desta forma de compensação será sempre o grau de proximidade ou ligação entre a vítima e os titulares desta indemnização.
XXVII. In casu, face aos valores que têm vindo a ser fixados pelos Tribunais Superiores, a indemnização a atribuir a título de danos não patrimoniais dos próprios pais da vítima dever-se-á estabelecer em valor não superior a MOP$250.000,00, atendendo já ao índice de preços no consumidor e ao aumento do custo de vida e características do caso concreto.
XXVIII. Dest’arte, ao atribuir o valor de MOP$400.000,00, por danos morais, a cada um dos Autores, a douta sentença recorrida não fez uma aplicação criteriosa dos artigos 487º e 489º do Código Civil de Macau, por atribuir uma compensação que vai para além da medida dos danos não patrimoniais.
XXIX. A responsabilidade do FGAM, atento o disposto no n.º 2 do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, abrange unicamente a obrigação de satisfazer indemnizações «por morte ou lesões corporais», ficando de fora os danos materiais.
XXX. A expressão “lesões corporais” a que alude o referido n.º 2 do artigo 23º respeita unicamente à integridade física das pessoas e visa apenas os danos não patrimoniais ou morais, neles se incluindo o dano morte ou os ferimentos sofridos em consequência do acidente, por contraposição às “lesões materiais”.
XXXI. As despesas com o funeral da vítima e com transportes não configuram uma lesão corporal indemnizável pelo FGAM ao abrigo do n.º 2 do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, mas outrossim uma lesão material, excluída do âmbito daquela norma, com o que o Tribunal a quo terá feito uma aplicação errada do prescrito naquele inciso e no n.º 2 do artigo 477º do Código Civil de Macau.
XXXII. Sendo de mera garantia a intervenção do FGAM na acção de indemnização, o “papel principal” será sempre do responsável civil e do proprietário do veículo automóvel/sujeito da obrigação de segurar, e não da RAEM.
XXXIII. O FGAM fica sub-rogado e tem sempre a faculdade de reaver dos responsáveis principais as quantias que houver despendido, podendo accionar tanto o condutor do veículo, com base na culpa deste, como o proprietário, baseado no risco ou por não ter cumprido o dever de efectuar o seguro de responsabilidade civil.
XXXIV. O FGAM apenas responde de forma subsidiária e não na qualidade de responsável directo.
XXXV. O FGAM mais não é do que um garante, um responsável “subsidiário”, já que o principal obrigado é sempre o responsável civil e/ou o proprietário do veículo automóvel/sujeito da obrigação de segurar. E só se estes se furtarem ao cumprimento do seu dever é que o FGAM entra em acção, satisfazendo a indemnização arbitrada.
XXXVI. Ao estabelecer a garantia de satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais, nos casos previstos pelo artigo 23º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, em que o FGAM é demandado, o legislador prescreveu a subsidiariedade, tendo em vista três objectivos evidentes: a) Tornar acessível ao FGAM, pela via mais autêntica do próprio interveniente no acidente, a versão deste e todo o material probatório a que doutro modo não acederia; b) Facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, permitindo-lhe optar entre o património do lesante faltoso e a indemnização do FGAM; c) Tirando partido da presença do responsável, definir de imediato, na medida do possível e sem mais dispêndio processual, os pressupostos de facto e jurídicos em que há-de basear-se o direito de sub-rogação do FGAM.
XXXVII. Nos referidos casos, existe uma solidariedade imprópria, imperfeita ou “impura”.
XXXVIII. Enquanto no plano externo o lesado pode exigir de qualquer um dos responsáveis-obrigados – do lesante ou do FGAM – a satisfação do seu crédito, já no plano interno, só se for o último a pagar a indemnização é que fica sub-rogado nos direitos lesados, podendo, depois, exigir do lesante tudo aquilo que pagou, acrescido dos juros legais de mora e das despesas efectuadas com a liquidação e cobrança.
XXXIX. Daí que na sentença final devam o responsável civil e o proprietário do veículo automóvel/sujeito da obrigação de segurar ser condenados solidariamente a pagar a quantia reclamada, pois a responsabilidade do FGAM é meramente subsidiária daqueles.
XL. Não fez o Tribunal a quo, por conseguinte, uma interpretação correcta do disposto no n.ºs 1 e 3 do artigo 2º, no n.º 2 do artigo 23º, no artigo 25º e nos n.ºs 2 e 3 do artigo 45º, todos do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro e, bem assim, nos artigos 477º, 496º e 587º, todos do Código Civil de Macau.
Termos em que deve o acórdão e proferido nestes autos ser parcialmente revogado e substituído por outra decisão em que: (i) seja excluído o dever de indemnizar da 2ª Ré-condutora; (ii) seja arbitrada indemnização consentânea aos Autores, a título de danos não patrimoniais (pelo dano de morte e sofrimento próprios), que leve em consideração a situação económica do agente e do lesado e as demais circunstâncias da lide, bem como os valores atribuídos em casos semelhantes aos dos autos, em valor global não superior a MOP$1.050.000,00; (iii) o FGAM seja absolvido do pagamento das lesões materiais decorrentes das despesas com o funeral e transportes; e, ainda, (iv) sejam a 2ª Ré C e o 3º Réu D, respectivamente condutora e proprietário-sujeito da obrigação de segurar do veículo automóvel com a chapa de matrícula MG-XX-XX, interveniente no acidente, solidariamente condenados com o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, com o que se fará JUSTIÇA.”
*
Ao recurso responderam os Autores A e B, ora recorridos, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“I. Vem o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo (de ora em diante FGAM) colocar em crise a douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” na parte referente à atribuição de culpa/repartição do risco entre a 2ª Ré condutora e a vítima/peão, ao montante indemnizatório atribuído a título de danos não patrimoniais, à condenação do FGAM por lesões materiais, e à falta de condenação solidária, juntamente com o Recorrente FGAM e a 2ª e 3º Réus.
II. O Recorrente elenca uma série de argumentos tentando para o efeito atribuir a culpa na totalidade à infeliz vítima, não tendo, no entanto, tido sucesso já que de toda a matéria que ficou provada em audiência se pode retirar que os pontos mais importantes foram omitidos pelo Recorrente.
III. Resulta do acórdão com interesse para o apuramento da culpa na produção do acidente que “Da factualidade apurada o que resulta é que o acidente ocorreu na Avenida da Amizade tendo a via duas faixas de rodagem em sentidos de marcha distintos, cada uma com duas hemifaixas, configurando uma recta com boa visibilidade para as duas faixas de rodagem. No local do embate encontravam-se em curso obras com sinalética a advertir obras em curso e trabalhadores na estrada estando a hemifaixa da esquerda, da faixa de rodagem terminal marítimo / Rua dos Pescadores, vedada ao trânsito O autocarro em que a E seguia parou na hemifaixa direita atento o sentido de marcha em que seguia – Terminal Marítimo/Rua dos Pescadores – e deixou-a sair. E, saindo do autocarro, atravessou a via do lado direito para o lado esquerdo atento o sentido de marcha Rua dos Pescadores/Terminal marítimo (isto é aquele em que seguia a 2ª Ré conduzindo o MG). A 2ª Ré por sua vez conduzia o veículo MG no sentido Rua dos Pescadores/Terminal Marítimo, na hemifaixa esquerda atento o seu sentido de marcha. O embate entre o veículo MG conduzido pela 2ª Ré e a E dá-se quando a E se encontra atravessar a hemifaixa da esquerda da faixa de rodagem no sentido Rua dos Pescadores/Terminal Marítimo (onde seguia o veículo MG) sendo a E colhida pela parte dianteira esquerda (esquerda atento o sentido de marcha/visão do condutor) do veículo MG, caindo no lado esquerdo do pária-brisas deste veículo.”
IV. Da dinâmica do acidente acima descrito se retira que quando a infeliz vítima é colhida, esta tinha a travessia da via praticamente feita, pois o embate dá-se na hemifaixa esquerda da via (atento o sentido de marcha do veículo MG), e no lado esquerdo do MG e que configurando o local do acidente uma recta com boa visibilidade para as duas faixas de rodagem a condutora do MG poderia ter avistado a infeliz vítima, abrandado a sua velocidade e evitado o acidente e por consequência evitado a morte da filha dos Recorridos, por isso, dúvidas não restam que a condutora do MG teve culpa na produção do acidente.
V. E quanto ao montante indemnizatório atribuído a título de danos não patrimoniais, nada há a apontar à douta sentença recorrida pois o Digno Tribunal Colectivo arbitrou quantias que têm sido atribuídas pelos Tribunais Superiores em casos semelhantes, veja-se por exemplo quanto ao Direito à Vida, o caso no processo 535/2010 onde foi proferido Acórdão por este Venerando Tribunal, no qual note-se que já no ano de 2010, em caso semelhante, do mesmo se retira que “Nesta conformidade, atenta a situação dos autos, em que em causa está uma jovem, saudável, com mérito nos estudos, e, tudo o indica, com uma promissora carreira profissional, certo sendo que importa também acompanhar a evolução social e o custo de vida, mostra-se-nos adequado fixar o montante de MOP$1.500.000,00” e já num outro acórdão mais actual, no processo 746/2015, também deste Venerando Tribunal, se pode verificar que pela morte de uma pessoa de 69 anos de idade é confirmada a atribuição de MOP$1.200.000,00 de indemnização do direito à vida arbitrada em primeira instância e tendo, por certo, em atenção aquilo que já foi dito e feito por este Venerando Tribunal em outros casos, optou o Tribunal “a quo” por atender ao critério da “situação concreta” e bem arbitrou a indemnização do Direito à Vida no montante de MOP$1.200.000,00.
VI. Do mesmo modo, nada há a apontar ao montante atribuído pelo Tribunal a quo pelo sofrimento da própria vítima, nos momentos que precederam o seu óbito e pelo sofrimento dos próprios Autores, ora Recorridos, tendo as mesmas sido devidamente provadas em audiência de discussão e julgamento e fundamentadas pela douta sentença recorrida.
VII. Quanto à condenação do FGAM no pagamento de indemnização por danos patrimoniais decorrentes das despesas do funeral e transportes, vem o Recorrente alegar que não é o FGAM responsável pelas mesmas alegando para tanto que a expressão “lesões corporais” a que alude o n.º 2 do artigo 23º DL 57/94/M de 28 de Novembro, visam apenas os danos não patrimoniais ou morais, enquanto que a expressão “lesões materiais” se refere apenas a danos exclusivamente patrimoniais e que por causa disso, o pagamento de despesas de funeral e despesas com transportes não podem ser garantidas pelo FGAM.
VIII. Sobre este aspecto, o Venerando Tribunal de Segunda Instancia também já se pronunciou, determinado em caso semelhante, no processo 285/2012 que: “Como as percas salariais do demandante civil, dadas por provadas no texto da decisão final da Primeira Instância, foram causadas necessária e adequadamente por lesões corporais sofridas pelo mesmo no acidente de viação dos autos, a obrigação de indemnização a cargo do FGAM e como tal referida no n.º 2 do art.º 23º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, comporta naturalmente a indemnização dessas percas salariais.” Ou seja, no caso concreto, como as despesas de funeral foram causadas necessária e adequadamente pelas lesões fatais sofridas pela infeliz vítima no acidente de viação dos autos, também daí decorre a obrigação de indemnização do FGAM no aludido artigo 23º do referido diploma, aplicando-se o mesmo raciocínio às despesas de transporte, nada havendo a apontar à Douta sentença recorrida.
Assim, e face a todo o exposto, não deve ser dado provimento ao presente recurso interposto pelo Recorrente Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA!”
*
Por outro lado, a interveniente X Insurance (Hong Kong) Limited interpôs recurso subordinado tendo apresentado as seguintes conclusões alegatórias:
“1. O presente recurso vem interposto na medida em que a sentença recorrida não condenou os réus a pagar qualquer quantia à interveniente mas tão-só aos autores originais do processo.
2. E também para reavaliar a repartição da culpa na eclosão do acidente, entendendo a recorrente que deve ser atribuída uma maior quota-parte de responsabilização à condutora do veículo automóvel.
3. Aquando da sua intervenção na presente acção, a fls. 367-8 dos autos, a recorrente invocou o seu direito de sub-rogação conferido ope legis até ao montante de MOP$582.362,00.
4. A sub-rogação legal conferida pelo Decreto-Lei n.º 40/95/M é a razão principal pela qual se impõe o chamamento oficioso da seguradora do acidente de trabalho na acção judicial que se proponha contra a seguradora do veículo causador do acidente de viação.
5. Nos termos do art. 58º, n.º 1 do DL n.º 40/95/M e do art. 587º, n.º 1 do CC, a recorrente pode fazer valer quaisquer direitos do sinistrado em relação à seguradora do acidente de viação para ser ressarcida do montante compensatório pago ao sinistrado (ou seus beneficiários).
6. E isto porque, em acidente simultaneamente de viação e laboral, o primacial responsável por indemnizar as partes ofendidas é a seguradora de viação, que não se desincumbe das suas obrigações pelo facto de o acidente revestir também um aspecto relevante a nível laboral.
7. Tendo sido o chamamento oficioso da recorrente determinado pela sub-rogação legal conferida pelo art. 58º do DL n.º 40/95/M, para que pudesse reaver as quantias adiantadas no âmbito da acção judicial contra a seguradora do veículo causador do acidente de viação, e
8. Tendo a recorrente aquando da sua intervenção, a fls. 367-8 dos autos, apelado especificamente ao seu direito de sub-rogação legal, tendo-o quantificado e consubstanciado.
9. Deveria ter o Tribunal a quo determinado o pagamento à recorrente das quantias em que sub-rogou, visto tratar-se de um direito que transitou parcialmente da esfera jurídica dos autores para o da recorrente.
10. A recorrente sub-rogou-se em todos os direitos da sinistrada, devendo exercê-los conjuntamente com os herdeiros da sinistrada, nos termos do art. 58º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 40/95/M, preceito que de certa forma prevê um litisconsórcio necessário para a formulação do pedido de indemnização civil.
11. Tanto a recorrente como os autores actuam com interesse igual do lado activo da causa, fazendo valer um direito que é incindível, apenas delimitado quantitativamente por efeito da sub-rogação parcial dos direitos da sinistrada em favor da seguradora laboral.
12. Os autores poderão haver dos responsáveis pelo pedido de indemnização civil tudo o que ultrapassar a quantia sub-rogada, sendo certo que os danos peticionáveis à entidade responsável por cobrir os danos advindos de acidente de viação serão muito mais extensos do que os ressarcíveis no foro laboral.
13. A sentença recorrida violou o art. 58º, n.º 1 do DL n.º 40/95/M, devendo atribuir à recorrente o montante de MOP$582.362,00 do total da indemnização atribuída aos herdeiros da sinistrada.
14. Consta como facto provado na sentença que “[n]o âmbito do processo especial emergente de acidente de trabalho n.º CV3-10-0009-LAE, do 3º Juízo Cível, os Autores receberam da ora intervenientes X Insurance Limited, companhia seguradora da entidade patronal da E, a quantia de MOP$10.588,40, a título de indemnização pelo funeral da filha e a quantia de MOP$285.886,80, cada um, a título de indemnização legal” (alínea m) da matéria de facto provada).
15. Não faltava nem matéria fáctica para fazer operar a sub-rogação legal, nem tampouco faltou o pedido efectuado no mesmo sentido (a fls. 367-8 dos autos), pelo que faltou o Tribunal a quo retirar as devidas ilações da questão jurídica que se lhe apresentava.
16. Ressalvado o devido respeito, padece nestes termos de nulidade a sentença, nos termos do art. 571º, n.º 1, al. d) do CPC, uma vez que não apreciou o direito de sub-rogação da recorrente, a qual desde já deixa arguida.
17. O douta Tribunal a quo entendeu que a lesada teria contribuído decisivamente para a eclosão do acidente, atribuindo-lhe 50% da culpa pela verificação do mesmo, o que parece exagerado tendo em conta as circunstâncias do acidente.
18. A recorrente entende que maior responsabilização deveria ter sido atribuída à condutora do veículo automóvel, tendo em conta a matéria de facto dada como provada.
19. Os factos g), q), r), h) e i) da matéria de facto provada revelam que a condutora do veículo automóvel conduzia sem prestar a devida atenção à restante actividade que se desenrolava à sua volta, tendo violado o dever de moderação e atenção previsto no art. 30º, n.º 1 da Lei n.º 3/2007.
20. A condutora do veículo conseguiu embater na infeliz sinistrada com a parte dianteira esquerda do carro, sendo certo que caminhava também pela hemifaixa esquerda, o que significa que a vítima estava prestes a terminar a travessia das faixas de rodagem para porto seguro, tendo já ultrapassado quase a totalidade da largura não só das faixas de rodagem como também do veículo que a atropelou.
21. É difícil de conceber como foi possível que a condutora do veículo automóvel conseguiu não se aperceber do corpo que atravessava a faixa de rodagem, sendo apenas certo que conduzia desatenta, pois a visibilidade era boa, assim como as condições climatéricas.
22. Por outro lado, os factos ii), y), cc), ee) e jj) da matéria de facto provada também revelam que a sinistrada, ao ser largada no meio da rua, tinha a opção de atravessar para um lado da estrada onde não havia passeio e que estava em obras, ou de atravessar para o outro lado da rua, onde havia passeio para transitar.
23. A conduta da sinistrada encaixa-se perfeitamente na excepção legal prevista no art. 70º, n.º 5º da Lei n.º 3/2007.
24. Não existindo passagens a menos de 50 metros de distância, a sinistrada tentou atravessar as faixas de rodagem o mais rapidamente possível, dirigindo-se para o único porto onde poderia transitar seguramente.
25. A recorrente entende que foi violada, nessa medida, a norma do art. 564º do Código Civil, por não ter aplicação no caso concreto, ou de todo o modo por ter sido atribuído excesso de culpa à lesada.
26. A recorrente entende que deveria ter sido atribuída a culpa em exclusivo à condutora do veículo automóvel pela eclosão do acidente, e nunca menos de 80% da responsabilidade pela verificação do mesmo.
Termos em que, contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser corrigida a douta sentença recorrida nos termos acima expostos, devendo ser atribuído à recorrente o montante em que se sub-rogou e uma maior percentagem de culpa à condutora do veículo não segurado.”
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Ao recurso responderam os mesmos recorridos, formulando nas alegações as seguintes conclusões:
“1. Vem a Recorrente insurgir-se contra a decisão recorrida no sentido em que pretende, salvo o devido respeito, convidar o Tribunal a violar a lei, a par dos presentes autos que correm termos no CV3-12-0050-CAO, nos quais a Recorrente, que aí é Autora, exerceu um direito de sub-rogação no sentido de pedir que os Réus nos presentes fossem aí condenados a ressarcir a Recorrente do valor que esta Recorrente havia pago aos familiares da sinistrada.
2. Mas a Recorrente não tem qualquer razão na sua teoria segundo a qual terá havido omissão de pronúncia na decisão posta em crise, isto porque a causa que a Recorrente propôs, está suspensa e tal significa que o pedido aí formulado pela Autora irá ser apreciado devidamente porquanto foi nesse que a Recorrente escolher que fosse apreciado e conhecido tal pedido.
3. Nos presentes autos a interveniente é uma mera interveniente, dando-lhe a lei a prerrogativa de a mesma pode proteger, nos presentes autos, os seus direitos por forma a que não visse prejudicado qualquer dos pedidos que a Recorrente formulou nos indicados autos CV3-12-0050-CAO e a Recorrente mais não pretende que o Tribunal antecipe, substitua, o juiz na causa que corre termos no 3º Juízo Cível pretendendo que o direito de sub-rogação peticionado naqueles autos seja desde já reconhecido.
4. Mas não pode por várias razões: em primeiro lugar se a outra causa está pendente, com o mesmo propósito, ora manifestado pela Recorrente, o Tribunal nos presentes autos entraria em manifesta litispendência, facto que constitui, como se sabe, excepção dilatória impeditiva e em segundo lugar, porque nos presentes autos já se apreciou a questão da apensação dos processos, apensação essa que já foi decidida no sentido do seu indeferimento com a decisão já transitada em julgado, já que todas as partes já aceitaram com o trânsito em julgado da decisão referente à apensação que as causas não são a mesmas, são causas distintas e por isso a Recorrente não pode exigir nem tão pouco pretender que o Tribunal, na presente causa, se substitua ao Tribunal que julgará o processo no 3º Juízo Cível, que aguarda, aliás, precisamente o desfecho deste.
5. Nestes termos, resulta do exposto que carece de fundamento a tese da Recorrente segundo a qual ocorre nulidade da decisão por falta de decisão, pois se houvesse decisão na parte pretendida pela Recorrente, com todo o devido respeito, ocorreria, isso sim, nulidade de sentença atento os princípios que proíbem a litispendência e a independência e autoridade dos dois juízes titulares das respectivas causas, não assistindo razão à Recorrente pelo que deve manter-se a decisão recorrida.
Assim, e face a todo o exposto, não deve ser dado provimento ao presente recurso interposto pela Recorrente X Insurance (Hong Kong) Limited, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA.”
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
Cerca das 14 horas e 20 minutos do dia 5 de Outubro de 2009, na Avenida da Amizade, em Macau, ocorreu um embate entre o veículo automóvel de passageiros MG–XX–XX e o peão E, aliás E.
No referido dia e hora a 2ª Ré conduzia o veículo MG na hemifaixa esquerda da Avenida da Amizade, no sentido de marcha Rua dos Pescadores–Terminal Marítimo.
O veículo automóvel de passageiros MG–XX–XX, à data, estava registado em nome do 3º Réu D e, no momento do embate, era conduzido pela 2ª Ré C.
À data do embate o automóvel ligeiro MG não tinha seguro válido.
A Avenida da Amizade, na altura e no local onde se deu o embate, encontrava-se em obras e estava sinalizado com sinalética a advertir entre outros obstáculos, trabalhadores na estrada.
No local do embate a via tinha duas faixas de rodagem, com dois sentidos distintos, dotada cada faixa de duas hemifaixas.
No momento do embate o piso estava seco e o tempo estava bom.
Do local do acidente a E, aliás E foi transportada de ambulância para o Hospital Conde S. Januário onde foi socorrida acabando por não resistir aos ferimentos e falecer no dia seguinte, dia 6 de Outubro, às 10 horas e 55m.
A E, aliás E faleceu devido a fractura da base do crânio e lesões graves no crânio–cerebral, causadas pelo embate do veículo MG.
E tinha, à data, 28 anos de idade.
À data, E trabalhava para o estabelecimento comercial Supermercado Setenta e Um Limitada, em Macau.
Os AA são pais da falecida E e seus únicos e universais herdeiros.
No âmbito do processo especial emergente de acidente de trabalho nº CV3–10-0009-LAE, do 3º Juízo Cível, os Autores receberam da ora interveniente X Insurance Limited, companhia seguradora da entidade patronal da E, a quantia de MOP$10,588.40, a título de indemnização pelo funeral da filha e a quantia de MOP$285,886.80, cada um, a título de indemnização legal.
O embate em apreço nestes autos deu origem a um processo de natureza criminal que correu termos no 2º Juízo Criminal deste Tribunal sob o nº CR2-10-0182-PCS, tendo como arguida a ora 2ª Ré, que veio a ser condenada em 1ª instância, por sentença não transitada em julgado, pela prática de crime de homicídio por negligência previsto e punido no artigo 134º, nº 1 do Código Penal.
A E atravessou a sobredita Avenida, do lado direito para o lado esquerdo, atento o sentido de marcha do MG.
A E encontrava-se a atravessar a hemifaixa esquerda da faixa de rodagem atento o sentido Rua dos Pescadores–Terminal Marítimo.
A E foi colhida pela parte dianteira esquerda do veículo MG.
E caiu no lado esquerdo do para-brisas do MG.
Tendo o seu corpo sido projectado pelo ar para cerca de 13,5 metros de distância.
O local onde se deu o embate configura uma recta, com boa visibilidade para as duas faixas de rodagem.
No local o limite de velocidade é de 60 Km/hora.
No local do acidente a via tem trânsito automóvel constante.
O local do acidente é após uma curva atento o sentido de marcha do MG e antes da curva no sentido de marcha oposto.
Naquela via no local do acidente não existe passeio para a circulação de peões.
Não existe passeio do lado do reservatório (apenas relva).
E do lado contrário existe apenas uma estreita “ilha” entre a Avenida da Amizade e a via adjacente para os veículos que vêm da Ponte da Amizade em direcção ao Terminal Marítimo-Avenida da Amizade.
O que implicava a travessia de parte da via com a largura de 10,20 metros.
Antes do local do acidente atento o sentido de marcha oposto àquele em que seguia o MG paralela à hemifaixa esquerda há o acesso ao viaduto para a Ponte da Amizade.
A hemifaixa da esquerda no sentido Terminal Marítimo-Rua dos Pescadores estava em obras e vedada ao trânsito.
O que conduzia a uma maior intensidade de trânsito nesse sentido.
A cerca de 200 metros do local do embate existe uma passagem superior para peões.
Que faz a ligação entre a via pedonal do reservatório, o edifício do Grande Prémio e o Terminal Marítimo do Porto Exterior.
A E não tomou cuidado e atenção às condições de trânsito e não se apercebeu da aproximação do veículo MG.
No local do embate não existe qualquer estação de paragem de autocarros.
O autocarro em que a E seguia parou nesse troço da via e deixou-a sair.
E passou a via a andar de forma rápida aproveitando o espaço entre a parte traseira do autocarro e a parte dianteira de um automóvel privado.
E não verificou se circulavam veículos vindos do lado esquerdo da via.
A 2ª Ré, atenta a altura do autocarro, não conseguia ver a E.
A 2ª Ré, por circular com o MG numa via que não tinha passadeira para peões, confiou que ninguém a atravessaria.
A morte de E sobreveio na sequência do acidente como resulta das alíneas h) e i).
E era uma pessoa alegre.
E tinha vontade de viver.
E tinha amigos.
E era amiga dos pais e da irmã.
E trabalhava há vários anos.
E pensava no futuro ter um negócio próprio.
Os AA. durante o dia e a noite de 5 para 6 de Outubro sabiam o estado de saúde da filha.
Os AA. sabiam que a filha se debatia entre a vida e a morte, prostrada numa cama de hospital, ligada a uma máquina que lhe fornecia oxigénio para sobreviver.
A E apesar de viver e trabalhar em Macau visitava frequentemente a mãe.
A morte da filha dos AA. foi um desgosto do qual nunca vão recuperar.
A Autora mãe passou um período em que deixou de tratar das lides da casa.
A mãe perdeu o ânimo.
A mãe chorava a todo o momento, vivendo revoltada com o sucedido.
Os Autores com o sofrimento deixaram de falar com os amigos e familiares.
E fecharam-se para o mundo, tendo alterado os seus hábitos e o seu modo de vida social.
Com o funeral da filha os AA. despenderam a quantia total de CNY$52.340,00.
Os Autores deslocaram-se a Macau para tratar da trasladação do corpo da filha para Zhuhai.
Em transportes, designadamente, viagens de avião despenderam CNY$2.200,00.
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O caso dos autos
Está em causa um acidente de viação em que causou a morte da filha dos Autores, tendo esta sido embatida pelo veículo conduzido pela 2ª Ré e cuja propriedade está registada em nome do 3º Réu.
Entretanto, o veículo do 3º Réu não tinha seguro válido.
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Comecemos pelo recurso principal.
Da atribuição de culpa
Entende o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, ora 1º Réu, que o acidente se deveu à culpa exclusiva da vítima e não houve qualquer conduta incorrecta por parte da 2ª Ré condutora, desejando ver excluída a sua responsabilidade civil.
Conforme ficou provado: o acidente ocorreu na Avenida da Amizade tendo esta via duas faixas de rodagem em sentidos de marcha distintos, cada uma com duas hemifaixas. No local onde se deu o embate configura uma recta com boa visibilidade para as duas faixas de rodagem e foi colocada sinalética a advertir obras em curso e trabalhadores na estrada. Ao mesmo tempo, a hemifaixa esquerda da faixa de rodagem Terminal Marítimo-Rua dos Pescadores estava vedada ao trânsito, o autocarro em que a vítima seguia parou na hemifaixa direita da mesma faixa, e deixou-a sair. A vítima, saindo do autocarro, atravessou a via do lado direito para o lado esquerdo atento o sentido da marcha do veículo conduzido pela 2ª Ré (Rua dos Pescadores-Terminal Marítimo). O embate entre o veículo conduzido pela 2ª Ré e a vítima deu-se quando esta se encontrava a atravessar a hemifaixa esquerda da faixa de rodagem atento o sentido da marcha Rua dos Pescadores-Terminal Marítimo, tendo ela sido colhida pela parte dianteira esquerda do veículo, caindo no lado esquerdo do pára-brisas do mesmo.
Ora bem, verifica-se que a vítima atravessou num local onde não havia espaço destinado à circulação de peões, apenas existia uma passagem superior para peões a cerca de 200 metros do local do embate.
É verdade que a vítima teve culpa no acidente, por ter atravessado a hemifaixa de forma rápida e apressada sem tomar atenção aos veículos que circulavam no sentido da marcha que tinha que atravessar, mas dúvidas não restam de que a 2ª Ré condutora do veículo também teve culpa no mesmo acidente.
Segundo dispõe o n.º 1 do artigo 30.º da Lei do Trânsito Rodoviário, “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias especiais, possa, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis (…)”
No caso dos autos, a vítima atravessou três hemi-faixas: fez a primeira travessia atrás do autocarro, a segunda quando saiu da traseira deste para entrar na faixa de rodagem em sentido contrário, e finalmente foi colhida pelo veículo conduzido pela 2ª Ré na última hemifaixa.
Conforme dito na sentença recorrida, e bem, sendo o local do acidente uma recta com boa visibilidade, havendo uma hemifaixa livre entre aquela onde circulava o veículo conduzido pela 2ª Ré e aquela outra onde a vítima saiu do autocarro, sendo esta colhida pela parte da frente esquerda do veículo na hemifaixa esquerda da faixa de rodagem atento o sentido da marcha Rua dos Pescadores-Terminal Marítimo, ou seja, já no final da travessia, a condutora ora 2ª Ré estaria em condições de parar em tempo o seu veículo se tivesse actuado com cuidado e atenção normalmente exigidos a um condutor médio durante a condução, por forma a evitar o referido acidente mortal.
Ademais, atenta a circunstância de haver no local do acidente sinalética a advertir obras em curso e trabalhadores na estrada, a condutora do veículo deveria ter conduzido o seu veículo com maior cuidado e atenção, abrandando a sua velocidade, de modo a poder parar em tempo caso surgisse qualquer obstáculo.
Nestes termos, dúvidas não restam de que a 2ª Ré teve culpa na produção do acidente, improcedem, pois, as razões do recorrente nesta parte.
*
Do valor da indemnização fixada a título de danos não patrimoniais
Entende o FGAM que o montante de indemnização pelos danos não patrimoniais é desajustado e extremamente elevado.
Vejamos.
Foram fixados pelo Tribunal recorrido os seguintes valores indemnizatórios:
- Danos não patrimoniais sofridos pela vítima --- MOP150.000,00;
- Danos não patrimoniais pela perda do direito à vida --- MOP1.200.000,00; e
- Danos não patrimoniais sofridos pelos Autores --- MOP800.000,00.
Face à matéria provada, não se vislumbra que o valor arbitrado a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima seja montante inadequado e exagerado.
Sobre o dano resultante da privação da vida, atendendo aos actuais índices económicos, financeiros e sociais, a idade da vítima, mostra-se adequada a atribuição de uma quantia de MOP1.200.000,00 pela perda do direito à vida.
O mesmo acontece com o valor dos danos não patrimoniais sofridos pelos Autores. Por um lado, considerando que, tendo a vítima apenas 28 anos de idade, a perda da filha foi um grande desgosto e dor para os Autores, e por outro, atento o facto de que a vítima veio a falecer no dia seguinte ao da ocorrência do acidente, os pais não podiam ficar juntos e acompanhar a filha em fase final da vida, por viverem no Interior da China, o sofrimento dos pais foi muito mais intenso.
Pelo que, improcede o recurso quanto a esta parte.
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Da condenação do Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo no pagamento das despesas do funeral e transportes
Entende o recorrente FGAM que, conforme decorre do n.º 2 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, sobre o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo apenas impende a obrigação de satisfazer indemnizações “por morte ou lesões corporais” decorrentes de acidentes causados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, quando o responsável não beneficie de seguro válido ou eficaz, não devendo, na sua perspectiva, abranger o pagamento das despesas do funeral e transportes.
Preceitua o n.º 2 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M que “Ao FGA compete satisfazer as indemnizações por morte ou lesões corporais consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, quando: a) O responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz; b) For declarada a falência da seguradora.” – sublinhado nosso
Decidiu o Acórdão deste TSI, proferido no âmbito do Processo n.º 285/2012: “…posto que as percas salariais do lesado demandante, dadas por provadas no texto da decisão final da Primeira Instância, foram causadas necessária e adequadamente por lesões corporais sofridas pelo mesmo no acidente de viação dos autos, pelo que a obrigação de indemnização a cargo do FGAM e como tal referida no proémio do n.º 2 do art.º 23.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M comporta naturalmente a indemnização dessas percas salariais.”
Salvo o devido respeito por opinião contrária, trata-se, a nosso ver, da melhor interpretação jurídica do n.º 2 do artigo 23.º, pelo que não vemos razão para não seguir a posição perfilhada naquele douto aresto.
Em boa verdade, seguindo a mesma linha de raciocínio, tendo as despesas do funeral e transportes sido causadas necessária e adequadamente pela morte da vítima no acidente de viação, o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo tem a obrigação de garantir o pagamento das respectivas despesas.
Improcede, pois, esta parte do recurso.
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Da alegada falta de condenação da condutora e do proprietário do veículo automóvel
Alega o FGAM, ora recorrente, que esta instituição mais não seja do que um garante e, uma vez cumprida a obrigação de pagamento da indemnização decorrente de acidente causado por veículo sujeito ao seguro obrigatório mas não beneficiando o responsável de seguro válido e eficaz, aquele Fundo fica sub-rogado, ope legis, nos direitos do lesado. Na medida em que pode exigir do responsável civil e do obrigado ao seguro aquilo que pagou ao lesado, entende que os mesmos terão que ser condenados solidariamente com o recorrente no pagamento dos valores indemnizatórios.
Seguindo de perto o Acórdão deste TSI, no âmbito do Processo n.º 749/2013, decidiu-se que, se o pedido do autor lesado se contiver dentro dos limites do seguro obrigatório, a acção será intentada apenas contra o Fundo, que, por sua vez, poderá fazer intervir na acção o obrigado ao seguro e o responsável civil, nos termos previstos nos artigos 25.º, n.º 3 e 45.º, nº 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 57/94/M.
Indo mais além, se o valor peticionado for superior ao limite mínimo do seguro obrigatório, a acção poderá ser intentada também contra o obrigado ao seguro e o responsável civil, para além do FGAM. Mas uma coisa é certa, o FGAM apenas garante o pagamento da indemnização pelos danos até ao limite mínimo do seguro obrigatório, e no caso concreto, MOP1.000.000,00, enquanto o restante valor será da responsabilidade do obrigado ao seguro e do responsável civil.
Tal como se referiu no citado Acórdão do TSI: “Sendo a posição jurídica do Fundo de mero garante do pagamento da indemnização pelos danos, a sub-rogação legal em que fica investido, assumindo os correspondentes poderes do credor, depende do cumprimento dessa obrigação “legal” (cfr. art.º 586.º, do CC). Significa que só um efectivo pagamento lhe confere esse direito de sub-rogação (art.º 25.º, n.º 1, do DL n.º 57/94/M), o que bem revela a necessidade de uma prévia condenação. Se também fosse possível a condenação na acção do obrigado ao seguro, estaríamos perante um regime de solidariedade (em que qualquer um pode ser exigida a totalidade do débito), que permitiria um direito de regresso. Mas tal não acontece na hipótese sub judice. Do que se trata é de sub-rogação, isto é, de substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível por um terceiro que cumpre em lugar do devedor. No âmbito do diploma em causa, só se pode falar em direito de regresso entre o obrigado ao seguro e outros responsáveis civis, se o houver, os termos do n.º 4 do art.º 25.º do citado diploma.”
Alinhamos pelo entendimento expresso nesse douto Acórdão, não vendo razão para não seguir a tal posição.
Dito de outra forma, enquanto garante da obrigação de indemnização, só fica sub-rogado nos direitos do lesado após o cumprimento da sua obrigação, daí que o obrigado ao seguro e o responsável civil não são solidariamente responsáveis pelo pagamento daquele valor indemnizatório.
Tudo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo.
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Vemos agora o recurso subordinado interposto pela interveniente X Insurance (Hong Kong) Limited.
Do direito de sub-rogação da inteveniente
Esta pede que o FGAM, ora 1º Réu, seja condenado a pagar-lhe MOP582.362,00, ao abrigo do n.º 1 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, onde se estipula que a companhia seguradora do acidente de trabalho fica sub-rogada nos direitos do sinistrado em relação à seguradora do veículo causador do acidente de viação.
Ora bem, sem pretender entrar no mérito da questão, somos a entender que o Tribunal recorrido não está em condições de apreciar a questão.
De facto, corre termos sob o n.º CV3-12-0050-CAO uma acção intentada pela interveniente, na qualidade de seguradora do acidente de trabalho, contra o FGAM pretendendo fazer valer os direitos em que se sub-rogou.
Como se decidiu na primeira instância, as duas acções, a presente e a outra tramitada no âmbito do processo CV3-12-0050-CAO, assentam em causas de pedir diferentes.
Apesar de a interveniente ter sido citada para intervir nos presentes autos, a verdade é que a acção em que se discutia o eventual direito de sub-rogação legal da seguradora do acidente de trabalho está ainda pendente noutro Juízo e cuja apensação aos presentes autos foi indeferida por decisão transitada em julgado.
Nestes termos, salvo o devido respeito por melhor opinião, somos a entender que não pode o Tribunal recorrido substituir-se a outro tribunal, o qual é competente para julgar aquela outra acção, até decisão judicial em contrário.
Improcede, assim, esta parte do recurso.
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Da repartição da culpa
Aquela recorrente entende ainda que como a vítima tentou atravessar as faixas de rodagem o mais rapidamente possível, dirigindo-se para o único porto onde poderia transitar em segurança, o acidente teria sido ocasionado por culpa exclusiva da condutora do veículo automóvel.
Salvo o devido respeito, entendemos não lhe assistir razão.
Refere-se na sentença recorrida o seguinte:
“E atravessa uma via num local onde não há sequer passeio ou outro local onde possam circular peões, o que faz de forma rápida e apressada sem tomar atenção aos veículos que circulam no sentido de marcha que tem de atravessar, atravessando três hemifaixas de rodagem, sendo que a primeira o faz atrás de um autocarro, saindo da traseira deste para atravessar as outras duas faixas de rodagem, sendo colhida pelo veículo automóvel na última hemifaixa de rodagem que tem de transpor.
E não só atravessou num local onde não havia qualquer espaço destinado à circulação de peões, como também, o faz sem respeitar as elementares regras de segurança a que estava obrigada pondo em perigo a sua segurança e a de terceiros.
(…)
Contudo, tendo-se apurado que o acidente ocorreu por culpa da 2ª Ré e de E em partes iguais, devem os responsáveis pelo pagamento da indemnização ser condenados a pagar apenas 50% dos valores supra fixados.”
Sem embargo de melhor opinião, entendemos que a decisão recorrida está correcta.
Segundo se dispõe o n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Trânsito Rodoviário, “ao pretenderem atravessar a faixa de rodagem, os peões devem assegurar-se de que o podem fazer sem perigo, tendo em conta a distância e a velocidade dos veículos que se aproximam, e efectuar o atravessamento rapidamente”.
De facto, é bom de ver que o atravessamento da Avenida da Amizade pela vítima, no local onde ocorreu o acidente, é, em si mesmo, um acto muito perigoso, na medida em que não havia qualquer passeio ou espaço destinado à circulação de peões.
Não obstante só existir uma passagem superior para peões a cerca de 200 metros do local do embate, a verdade é que, tendo a vítima decidido não usar aquela passagem superior e escolhido atravessar a Avenida com trânsito intenso, teria que prestar maior atenção e cautela.
Aliás, não podemos esquecer que a vítima saiu da parte de trás de um autocarro, tencionando atravessar três hemifaixas de rodagem, sendo assim a mesma deveria ainda prestar maior atenção e cuidado especial ao atravessar a tal Avenida.
Não o tendo assim feito, não deixa de ter culpa na produção do acidente, sendo razoável atribuir a responsabilidade em 50%.
Nestes termos, improcedem as razões do recurso subordinado.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos, principal e subordinado, interpostos pelo Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo (FGAM) e X Insurance (Hong Kong) Limited, respectivamente.
Custas pelos recorrentes nos respectivos recursos.
Registe e notifique.
***
RAEM, 13 de Dezembro de 2018
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fong Man Chong



Recurso Cível 292/2017 Página 36