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Processo n.º 104/2018. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Secretário para a Segurança.
Assunto: Processo disciplinar. Produção de prova no recurso contencioso. Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau. Interrupção da prescrição do procedimento disciplinar.
Data do Acórdão: 16 de Janeiro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Os artigos 42.º, n.º 1, alíneas g) e h) e 64.º do Código de Processo Administrativo Contencioso devem ser interpretados restritivamente, no sentido de que não é possível fazer prova no recurso contencioso tendente a infirmar a prova produzida no processo disciplinar.
II – A audição do arguido e a inquirição de testemunha em processo disciplinar, são actos instrutórios com efectiva incidência na marcha do processo, que interrompem a prescrição do procedimento disciplinar, nos termos do n.º 4 do artigo 205.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM).
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, Guarda de Primeira do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP), interpôs recurso contencioso de anulação do despacho de 8 de Agosto de 2016, do Secretário para a Segurança, que indeferiu recurso hierárquico, mantendo o despacho de Comandante do CPSP, lhe aplicou a pena de suspensão de funções pelo período de 90 dias.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 5 de Julho de 2018, negou provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI) A, tendo concluído que o acórdão recorrido incorreu nas seguintes violações legais, ao não ter considerado que o acto recorrido enferma dos seguintes vícios:
- Prescrição do procedimento disciplinar;
- Falta de fundamentação, por não ter especificado se estava em causa negligência grave ou acentuado desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais, por não ter justificado a pena aplicada apesar da redução da quantidade de infracções;
- Erro na comprovação dos factos;
- Errónea aplicação do direito;
- Total desrazoabilidade ou erro manifesto no exercício de poderes discricionários.
Imputou, ainda, ao acórdão recorrido, directamente, as seguintes violações:
- Do princípio do contraditório, já que a entidade recorrida foi notificada para se pronunciar sobre o parecer do Ministério Público (MP) - de não se deferir as diligências instrutórias requeridas pelo recorrente - e este não foi notificado para se pronunciar;
- Do princípio do inquisitório, por não se inquirirem testemunhas arroladas pelo recorrente no recurso contencioso.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.


II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
1 – Na sequência de comunicação feita pelo MP ao CPSP, contra o recorrente A, guarda de primeira do CPSP, foi instaurado em Julho de 2014, procedimento disciplinar, no qual em 13/06/2016 foi deduzida a seguinte acusação:
CORPO DE POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
Gabinete de Justiça e Disciplina
Processo disciplinar/de averiguações n.º XXX/2014
-Acusação-
1
--- Nos termos do artigo 274.º, n.º 2 do EMFSM, aprovado pelo DL n.º 66/94/M de 30 de Dezembro, deduz-se a seguinte acusação contra o suspeito A, guarda de primeira n.º XXXXXX, concedendo-se-lhe o prazo de 10 dias para apresentar a defesa.
2
--- O presente processo foi aberto com base no ofício n.º XXXX/2013 NIC-(P) e os documentos anexos que o MP da RAEM remeteu ao CPSP em 28 de Julho de 2014, segundo os quais A terá sido envolvido no facto relativo ao crime de branqueamento de capitais p. e p. pelo artigo 3.º da Lei n.º 2/2006 no processo n.º XXXX/2011 do Grupo de Investigação Criminal Especial do MP, processo que foi ulteriormente arquivado pela falta de prova suficiente de o suspeito A ter praticado o branqueamento de capitais. No entanto, no período compreendido entre 2005 e 2012, o guarda de primeira n.º XXXXXX A entrava várias vezes nos estabelecimentos de jogos de Macau, onde deixava registos de jogo e de compra de fichas mortas de valor consideravelmente elevado; acresce que, durante 2008 e 2011, a sua conta de bate-fichas aberta na B, pertencente ao Clube de VIP internacional, registou rendimentos totais de HKD$11.929.690 a título de comissão de ficha.
3
--- Realizada a investigação, verificou-se que o suspeito abriu uma conta em 2005 na B, pertencente ao Clube de VIP internacional, conta essa que foi registada em nome dele e funcionava até Setembro de 2010 (não houve registo de transacção depois). Em 28 de Julho de 2014, o MP da RAEM remeteu ao CPSP o ofício n.º XXXX/2013 NIC-(P), juntamente com os documentos anexos. Ao abrigo do disposto no artigo 205.º (“Prescrição”), n.º 1 do EMFSM, no período compreendido entre Setembro de 2009 e Setembro de 2010, registou-se, na referida conta do suspeito, transacções de valor consideravelmente elevado. Com efeito, tal conta foi registada em nome do suspeito, que por seu lado não devia ter permitido que outrem usasse a conta para exercer actividades de jogo, independentemente de o suspeito próprio ter participado ou não nas actividades de jogo ou de compra de fichas mortas. Logo, o suspeito pode ser punido.
4
--- Como se sabe, os estabelecimentos de jogo em Macau são lugares onde os crimes, tais como os de sequestro, de rapto e de usura frequentemente têm lugar. Os agentes da autoridade (do CPSP, da PJ, da DICJ ou de outros serviços) têm sempre inspeccionado estreitamente os problemas lá ocorridos. Pois, o suspeito A, sendo agente policial activo do CPSP, não devia ter participado, de forma directa ou indirecta, em qualquer actividade relacionada com os jogos. A sua conduta violou a ética, a deontologia funcional e o brio ou decoro das FSM.
5
--- O suspeito A, guarda de primeira n.º XXXXXX, violou o disposto no artigo 12.º (Dever de aprumo), n.º 2, al. f) do EMFSM.
6
--- Ao suspeito milita a circunstância atenuante da responsabilidade disciplinar prevista no artigo 200.º, n.º 2, al. b) do EMFSM.
--- Ao mesmo não milita qualquer circunstância agravante da responsabilidade disciplinar prevista no artigo 201.º do EMFSM.
7
--- A conduta do suspeito violou o dever acima referido e deve ser punida com pena de suspensão ao abrigo do disposto no artigo 236.º do EMFSM.
- Instrutor -
(Ass. vide o original)
D, Chefe
Aos 13 de Junho de 2016
2 – No dia 15/09/2014 o recorrente foi ouvido no âmbito do referido procedimento e em 23/01/2015 teve lugar a inquirição de C, conforme fls. 89 e verso.
3 – No procedimento viria a ser proferida a seguinte decisão, de 29/06/2016:
CORPO DE POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
Despacho
Conteúdo: Processo disciplinar/de averiguações n.º XXX/2014
Suspeito: guarda de primeira n.º XXXXXX, A
1. Em 25 de Julho de 2014, o MP comunicou, através de ofício, ao CPSP que, no período compreendido entre 2005 e 2012, o recorrente entrava várias vezes nos estabelecimentos de jogos de Macau, onde deixava registos de jogo e de compra de fichas mortas de valor consideravelmente elevado; e que, durante 2008 e 2011, a sua conta de bate-fichas aberta na B, pertencente ao Clube de VIP internacional, registou rendimentos totais de HKD$11.929.690 a título de comissão de ficha.
2. Segundo o suspeito, a respectiva conta foi aberta para o amigo, aquele nunca entrou nos estabelecimentos de jogo em situações legalmente proibidas, e a referida receita pertenceu apenas ao seu amigo, não tendo o suspeito participado em qualquer funcionamento da conta. O suspeito também apresentou junto do CPSP o referido amigo como testemunha.
3. O suspeito defende que abriu a referida conta apenas para ter acesso, com o cartão VIP, aos restaurantes dos estabelecimentos de jogo ou às outras instalações complementares; também alega que é uma situação muito comum em que os funcionários públicos de Macau, quando entrarem nos estabelecimentos de jogo ou salas VIP para jogarem no período legalmente permitido, também abrem contas para solicitar cartões VIP a fim de receber descontos nos restaurantes.
4. Quanto à escusa do suspeito, há de facto algumas pessoas (incluindo funcionários públicos) que solicitam cartões VIP nos estabelecimentos de jogo para ter descontos no consumo ou outros benefícios. No entanto, a conta aberta pelo suspeito não foi uma conta VIP geral, mas sim uma “conta de bate-fichas”, onde se registou rendimentos totais de HKD$11.929.690 a título de comissão de ficha proveniente das transacções realizadas na conta. Apesar de o suspeito ter alegado que a conta foi aberta para o uso do amigo, não pode negar que nela existiram transacções relativas ao jogo e à compra de fichas mortas.
5. O suspeito, sendo agente policial, bem sabia da existência na conta em causa de transacções relativas ao jogo e à compra de fichas mortas e de rendimentos de valor consideravelmente elevado na conta de bate-fichas, ainda abriu a referida conta. Mesmo que os rendimentos pertencessem totalmente ao seu amigo e que o suspeito, após ter aberto a conta, conferisse ao amigo plenos poderes relativos ao funcionamento da conta, existiria o facto de o suspeito ter auxiliado outrem na obtenção de benefício de valor consideravelmente elevado através do funcionamento de conta de bate-fichas.
6. O suspeito, como agente policial, auxiliou outrem na obtenção de benefício de valor consideravelmente elevado através do funcionamento de conta de bate-fichas, violando manifestamente a deontologia funcional e o decoro da polícia. Logo, a sua conduta constitui violação do dever consagrado no artigo 12.º, n.º 2, al. f) do EMFSM.
7. Na determinação da medida da pena aplicável, atende-se à gravidade das infracções, bem como às circunstâncias atenuantes, agravantes, dirimentes e exclusivas da responsabilidade disciplinar que militem ao suspeito.
8. Venho agora, de acordo com a competência delegada pelo artigo 211.º do EMFSM e nos termos do artigo 236.º do mesmo Estatuto, aplicar ao guarda de primeira n.º XXXXXX, A, a pena disciplinar de “suspensão de 90 dias”.
Aos 29 de Junho de 2016, no CPSP de Macau
Comandante
(Ass. vide o original)
Leong Man Cheong
Superintendente Geral 
4 – O recorrente apresentou recurso hierárquico contra essa decisão disciplinar, na sequência do que viria a ser proferido o despacho nº XX/SS/2016 (a.a.), com o seguinte teor:
Despacho n.º XX/SS/2016 do Secretário para a Segurança
Assunto: Recurso hierárquico
Recorrente: A
Processo disciplinar n.º XXX/2014
Acto recorrido: O despacho do Comandante do CPSP que aplicou ao recorrente a pena de suspensão de funções pelo período de 90 dias
  O recorrente A, guarda de primeira do CPSP, n.º XXXXXX, suspeito nos autos do processo disciplinar em causa, vem agora interpor recurso hierárquico do despacho de 29 de Junho de 2016 do Comandante do CPSP que lhe aplicou a pena de suspensão de funções pelo período de 90 dias.
  Nas alegações o recorrente principalmente invoca os erros respeitantes à prescrição do procedimento disciplinar, à comprovação dos factos e à aplicação do direito nos quais o despacho recorrido incorreu.
  Apreciados os dados constantes dos autos, há suficiente prova de o recorrente ter praticado os factos de infracção descritos na acusação (vide fls. 183 e v dos autos), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. Todavia, as infracções ocorridas antes de Setembro de 2009 devem ser afastadas devido a prescrição.
  De acordo com os factos imputados, de Setembro de 2009 a Setembro de 2010, o recorrente abriu uma conta destinada a bate-fichas na B, pertencente ao Clube de VIP internacional, na verdade, a conta foi registada em nome do recorrente e registaram-se nela transacções de quantia elevada no período entre Setembro de 2009 e Setembro de 2010. O recorrente é agente policial activo, não deve permitir a outrem usar a sua conta para praticar actividades de jogo, e também não deve participar, de forma directa ou indirecta, em qualquer actividade relacionada com o jogo. 
  A conduta supra referida do recorrente violou o dever de aprumo previsto no art.º 12.º, n.º 2, al. f) do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M de 30 de Dezembro. 
  Atendendo à gravidade das referidas infracções, e às circunstâncias agravantes e atenuantes da responsabilidade disciplinar, não se revela excessiva ou desproporcionada a pena de suspensão de funções por 90 dias aplicada ao recorrente nos termos do art.º 236.º do EMFSM. 
  Mantenho a decisão punitiva recorrida, afastando, porém, as infracções mencionadas no despacho recorrido que ocorreram antes de Setembro de 2009.
  Nestes termos, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 6/1999 e pela Ordem Executiva n.º 111/2014, rejeito o presente recurso hierárquico no exercício das competências me delegadas pela Ordem Executiva n.º 111/2014 e à luz do artigo 292.º, n.º 3 do EMFSM, aprovado pelo DL n.º 66/94/M de 30 de Dezembro, e do artigo n.º 161.º, n.º 1 do CPA aprovado pelo DL n.º 57/99/M de 11 de Outubro.
  Ordeno a notificação deste despacho ao recorrente e ao seu advogado nos termos dos artigos 70.º a 72.º do CPA.
No Gabinete do Secretário para a Segurança da RAEM, aos 8 de Agosto de 2016.
Secretário para a Segurança
(Ass. vide o original)
Wong Sio Chak

III – O Direito
1. A questão a resolver
As questões a resolver são as suscitadas pelo arguido atrás enunciadas.

2. Produção de prova no recurso contencioso relativamente a acto administrativo punitivo
Imputou o recorrente ao acórdão recorrido, directamente, os seguintes violações:
- Do princípio do contraditório, já que a entidade recorrida foi notificada para se pronunciar sobre o parecer do Ministério Público (MP) - de não se deferir as diligências instrutórias requeridas pelo recorrente - e este não foi notificado para se pronunciar;
- Do princípio do inquisitório, por não se inquirirem testemunhas arroladas pelo recorrente no recurso contencioso.
Relativamente à segunda questão dissemos no nosso acórdão de 31 de Julho de 2013, no Processo n.º 39/2013, que está vedado, ao que interpõe recurso contencioso de acto disciplinar punitivo, pedir a produção de meios de prova para provar factos ou fazer contraprova de factos da acusação ou da defesa, quando, tendo tido a oportunidade de o fazer no processo disciplinar, omitiu tal pretensão.
Já no acórdão de 2 de Junho de 2004, no Processo n.º 17/2003, referimos:
«Está em causa a decisão punitiva proferida no processo disciplinar desenvolvido segundo o prescrito no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) aprovado pelo Decreto-Lei n.° 87/89/M.
O processo disciplinar nele previsto está estruturado de forma contraditória com amplas possibilidades de defesa, manifestação do princípio da presunção da inocência, de processo equitativo, etc.
No recurso contencioso, os tribunais administrativos não apreciam a prova produzida sobre uma determinada infracção como os tribunais criminais perante as acusações que têm de apreciar, mas sim aprecia a existência de vício que contamine o acto administrativo, neste caso, o acto punitivo.1 Relacionado com o processo disciplinar, a jurisdição administrativa contenciosa tem outra natureza.
De facto, segundo o art.° 334.°, n.° 2 do ETAPM, após a acusação, o arguido pode apresentar defesa escrita em que expõe os factos e as razões da sua defesa, bem como juntar documentos, indicar o rol de testemunhas e requerer outras diligências de prova. Na realidade, o recorrente foi notificado para apresentar defesa escrita e apresentou efectivamente, indicando o rol de testemunhas que posteriormente foram todas ouvidas, conforme as fls. 239, 250 e seguintes do processo administrativo apensado.
Perante os trâmites totalmente contraditórios do processo disciplinar em que o arguido tem ampla possibilidade de defesa, não faria sentido que o recurso contencioso fosse uma repetição do processo disciplinar, com uma segunda oportunidade de produção de prova, até com as mesmas testemunhas que podem contradizer do que depuseram, tendo por objecto a matéria da acusação disciplinar. A admitir a nova produção de prova sobre esses factos, retiraria o carácter definitivo, no domínio do procedimento administrativo, da decisão punitiva da Administração Pública, deslocando o centro da formação da vontade punitiva administrativa daquela para o Tribunal, subverteria o princípio da separação das funções administrativas e judiciais.
O que se pode fazer no recurso contencioso da decisão punitiva disciplinar é discutir se essa decisão é correcta ao considerar provados determinados factos, arguindo o vício de erro nos pressupostos de facto. Mas não pode vir pretender produzir nova prova quando o pôde fazer oportunamente.
Até porque, se porventura verificar circunstâncias ou meios de provas novos susceptíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a punição, o arguido pode lançar meio de revisão do processo disciplinar tendo por objectivo a revogação ou alteração da decisão (art.° 343.°, n.°s 1 e 2 do ETAPM).
Assim, os art.°s 42.°, n.° 1, al.s g) e h) e 64.° do CPAC devem ser interpretados restritivamente, no sentido de que não é possível fazer prova no recurso contencioso tendente a infirmar a prova produzida no processo disciplinar».

3. Violação do princípio do contraditório
Alega o recorrente que o acórdão recorrido violou o princípio do contraditório, já que a entidade recorrida foi notificada para se pronunciar sobre o parecer do Ministério Público (MP) - de não se deferir as diligências instrutórias requeridas pelo recorrente - e este não foi notificado para se pronunciar.
Não é verdade o que alega o recorrente. Como diz o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, a fls. 95, “não é exacto que a entidade recorrida tenha sido ouvida sobre o assunto.
A entidade recorrida foi instada a esclarecer a dúvida exposta no parecer do Ministério Público – dúvida que evidentemente não respeitava à prova e sua admissibilidade, mas sim à existência de várias peças de acusação e relatórios finais no processo disciplinar”.
Improcede a questão suscitada.

4. Prescrição do procedimento disciplinar
Entende o recorrente que ocorreu prescrição do procedimento disciplinar.
Não é assim.
O prazo de prescrição do procedimento disciplinar era no caso de 5 anos (artigo 205.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM).
Como refere o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, “O recorrente afirma que foi punido indevidamente, porquanto o procedimento disciplinar já se encontrava prescrito, atento o decurso do seu prazo normal de 5 anos, nos termos do artigo 205.° do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM). Para tanto, invoca a circunstância de os factos considerados disciplinarmente relevantes terem cessado em Setembro de 2010, o procedimento disciplinar ter sido aberto em Julho de 2014 e apenas haver sido acusado em 13 de Junho de 2016, quando iam, portanto, transcorridos mais de 5 anos sobre os factos.
A entidade recorrida admite que já decorreram, na verdade, mais de 5 anos sobre o último dos movimentos financeiros que levaram à instauração do procedimento disciplinar. Mas contrapõe que, em 12 de Dezembro de 2014, com a notificação da acusação ao recorrente, foi interrompida a prescrição, nos termos do artigo 205.°, n.º 4, do EMFSM. Constata-se, no entanto, que a invocada acusação de Dezembro de 2014 acabou por ser dada sem efeito, tal como uma outra notificada ao arguido em 31 de Agosto de 2015, vindo apenas a vingar, em termos de libelo acusatório disciplinar, a peça de acusação de 13 de Junho de 2016, conforme o recorrente salientou.
Só que o decurso da prescrição registara entretanto outras interrupções, nos termos do referido artigo 205.º n.º 4, através da prática de actos instrutórios com efectiva incidência na marcha do processo, de que são exemplos, entre vários outros, a audição do arguido em auto, ocorrida em 15 de Setembro de 2014, constante a fls. 34 a 35 do processo disciplinar, bem como a inquirição de C, levada a cabo em 23 de Janeiro de 2015, conforme auto de fls. 89 e verso.
Estes actos, porque têm repercussão no processo e na sua marcha, fizeram interromper o prazo da prescrição, de acordo com o comando do aludido artigo 205.º, n.º 4. Cada interrupção originou o começo de contagem de um novo prazo, por inteiro, sendo assim seguro que, na ocasião em que foi proferido o acto recorrido, 8 de Agosto de 2016, não se encontrava extinto, por prescrição, o procedimento disciplinar”.
Improcede o vício suscitado.

5. Falta de fundamentação
Alega o recorrente falta de fundamentação do acto recorrido, por não ter especificado se estava em causa negligência grave ou acentuado desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais, por não ter justificado a pena aplicada apesar da redução da quantidade de infracções.
Vejamos.
De acordo com o artigo 236.º do EMFSM a pena de suspensão de 26 a 120 dias é aplicável em caso de negligência grave ou de acentuado desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais.
O acto punitivo depois de descrever os factos imputados ao arguido, que se provaram, concluiu que o “suspeito, como agente policial, auxiliou outrem na obtenção de benefício de valor consideravelmente elevado através do funcionamento de conta de bate-fichas, violando manifestamente a deontologia funcional e o decoro da polícia. Logo, a sua conduta constitui violação do dever consagrado no artigo 12.º, n.º 2, al. f) do EMFSM”.
Donde decorre que se imputa ao recorrente uma conduta dolosa violadora da deontologia profissional, o que só pode significar que lhe imputa acentuado desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais.
Improcede a questão suscitada.

6. Erro na comprovação dos factos
Alega o recorrente falta de investigação para compreender o modo como os factos ocorreram. E que não existe lei a proibir funcionários públicos de abrir conta nos casinos ou nas salas VIP, que não é crime.
Mas como diz o Ex.mo Magistrado do Ministério Público “O recorrente joga aqui com dúvidas sobre a designação e pertença da companhia onde abriu uma conta de bate-fichas, através da qual foram registadas transacções de verbas relativas a jogo que chegaram a proporcionar comissões de HKD$11.929.690, até Setembro de 2010. Estas dúvidas apresentam-se irrelevantes pela razão, simples, de que o recorrente, enquanto arguido do processo disciplinar, confessou tal facto, o que aliás também resulta de outros elementos fornecidos pelo processo disciplinar, embora tenha acrescentado que a conta era para ser usada pelo amigo contabilista C. Por outro lado, a alegação de não ser crime abrir uma conta no casino também nada releva no caso, pois não é isso o que está em causa. O recorrente respondeu disciplinarmente pela violação do dever de aprumo”.
Improcede o vício suscitado.

7. Errónea aplicação do direito
Entende o recorrente que houve errónea aplicação do direito, por não estar preenchido o disposto na alínea f) do n.º 2 do artigo 12.º do EMFSM.
Dispõe tal artigo:
“Artigo 12.º
(Dever de aprumo)
 1. O dever de aprumo consiste em assumir atitudes e comportamentos que exprimam, reflictam e reforcem a dignidade da função e o prestígio das FSM.
 2. No cumprimento do dever de aprumo, o militarizado deve, designadamente:
 a) Cuidar em todas as circunstâncias da sua boa apresentação pessoal e apresentar-se devidamente uniformizado e equipado, segundo as normas estabelecidas;
 b) Manter em formatura uma atitude firme e correcta, não lhe sendo permitido conversar nem fazer observações ou comentários;
 c) Tratar da limpeza e conservação dos artigos de fardamento, armamento, equipamento ou qualquer outro material que lhe tenha sido distribuído ou esteja a seu cargo;
 d) Não actuar, quando uniformizado, em quaisquer espectáculos públicos sem autorização superior, nem assistir a eles sempre que isso possa afectar a sua dignidade pessoal ou funcional;
 e) Não criar situações de dependência incompatíveis com a liberdade, imparcialidade, isenção e objectividade do desempenho do cargo, nomeadamente através da contracção de dívidas ou da assunção de compromissos que não possa normalmente satisfazer;
 f) Não praticar acções contrárias à ética, à deontologia funcional, ao brio ou ao decoro das FSM;
 g) Evitar actos ou comportamentos que possam prejudicar o vigor e a aptidão física ou intelectual, nomeadamente o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, bem como o consumo de quaisquer outras substâncias nocivas à saúde;
 h) Cultivar a boa convivência, a solidariedade e a camaradagem entre os elementos das FSM;
 i) Não frequentar casas de jogo de fortuna e azar ou estabelecimentos congéneres, excepto quando autorizado ou no exercício das suas funções;
 j) Não frequentar locais ou estabelecimentos que pela sua natureza estejam sujeitos a especial ou permanente vigilância das FSM ou de outras autoridades policiais, a não ser em acto de serviço ou trajando civilmente;
 l) Não conviver, acompanhar ou travar relações de familiaridade ou amizade com indivíduos que, pelos antecedentes policiais ou criminais, estejam sujeitos a vigilância policial;
 m) Não alterar o plano de uniformes e não usar distintivos que não pertençam à sua graduação, nem insígnias ou condecorações não superiormente autorizadas;
 n) Não utilizar a sua condição de agente da autoridade para quaisquer fins publicitários de natureza privada;
 o) Não praticar qualquer acção ou omissão que possa constituir ilícito criminal ou contravencional”.
Não merece censura o acto recorrido ao imputar ao recorrente violação do dever de aprumo por:
  De acordo com os factos imputados, de Setembro de 2009 a Setembro de 2010, o recorrente abriu uma conta destinada a bate-fichas na B, pertencente ao Clube de VIP internacional, na verdade, a conta foi registada em nome do recorrente e registaram-se nela transacções de quantia elevada no período entre Setembro de 2009 e Setembro de 2010. O recorrente é agente policial activo, não deve permitir a outrem usar a sua conta para praticar actividades de jogo, e também não deve participar, de forma directa ou indirecta, em qualquer actividade relacionada com o jogo. 
A actividade do recorrente, actuando como bate-ficha de casino, pôs em causa a dignidade da função e o prestígio das FSM, sendo pouco relevante que não actuasse directamente, mas sendo a conta utilizada por um amigo. Certamente que se fosse o recorrente a actuar como bate-ficha a pena aplicada, provavelmente, não seria a mera suspensão de funções por 90 dias.
Improcede o vício suscitado.

8. Total desrazoabilidade ou erro manifesto no exercício de poderes discricionários
Considera o recorrente que a pena é excessiva, havendo total desrazoabilidade ou erro manifesto no exercício de poderes discricionários.
Como vimos, acordo com o artigo 236.º do EMFSM, a pena de suspensão de 26 a 120 dias é aplicável em caso de negligência grave ou de acentuado desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais.
A aplicação de 90 dias de suspensão à conduta do recorrente não se nos afigura incorrer em total desrazoabilidade ou erro manifesto no exercício de poderes discricionários.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 12 UC.
Macau, 16 de Janeiro de 2019.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa

     1 Cfr. Alberto Augusto Oliveira e Alberto Esteves Remédio, Sobre o Direito Disciplinar da Função Pública, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. II, Coimbra Editora, 2001, p. 641.
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