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Processo nº 720/2018 Data: 31.01.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “desobediência”.
Crime de “reunião e manifestação ilegal”.
Acusação.
Ineptidão.
Alteração da qualificação jurídico-penal.
Princípio do contraditório.
Nulidade.



SUMÁRIO

1. A acusação deve conter todas as referências indicadas no art. 265°, n.° 3 do C.P.P.M..

2. A não observância do acima referido gera “nulidade” que por não constituir nenhuma das (taxativamente) elencadas no art. 106° do C.P.P.M. – como “nulidade insanável” – é dependente de arguição, devendo-se dar por sanada se, tempestivamente, não arguida.

3. O julgador tem liberdade de, nos limites da competência do Tribunal, qualificar juridicamente os factos da acusação ou da pronúncia de modo diverso da subsunção aí encontrada.
Na verdade, sendo a determinação do direito ou o enquadramento jurídico dos factos apurados, o cerne da função judicial, não pode a mesma estar sujeita a limitações decorrentes de um incorrecto enquadramento, sob pena de total desvirtuamento dessa função.
Porém:
- quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada, o juiz tem sempre de observar o contraditório;
- nas hipóteses de a alteração implicar a aplicação de penalidade igual ou inferior à que constava da acusação, em regra, será necessário proceder à comunicação da alteração ao arguido, visto que a estratégia de defesa estruturada para determinada configuração jurídica, não valerá para outra, mesmo que para infracção menos grave;
- não será de proceder à comunicação quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação, ou seja, de um modo geral, sempre que entre o crime da acusação ou da pronúncia e o da condenação há uma relação de especialidade ou de consunção e a convolação é efectuada para crime menos gravoso; (v.g., convolação de furto de valor elevado para furto simples; de roubo para furto; de homicídio ou de ofensas à integridade física cometidos dolosamente para os mesmos crimes por negligência; de violação para coacção sexual; de homicídio para homicídio privilegiado, etc.).
Tal entendimento – à falta de regulamentação expressa, já que o C.P.P.M. não trata da questão da alteração da qualificação jurídica, regulamentando, apenas, a matéria da alteração substancial ou não de factos descritos na acusação ou pronúncia, e, atento o disposto no art. 4º do C.P.P.M. – tem como fundamento jurídico, (por aplicação analógica), o disposto no art. 339º do citado código.

4. Constatando-se que efectuou o Tribunal uma (efectiva) “alteração da qualificação jurídico-penal” sem que ao arguido tenha sido dada a oportunidade de sobre ela exercer o contraditório, violado foi o art. 339°, n.° 1 do C.P.P.M., que origina a “nulidade” prevista no art. 360°, al. b) do mesmo código.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo



Processo nº 720/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por sentença do T.J.B. decidiu-se:
- condenar CHIANG MENG HIN (鄭明軒), (1°) arguido com os sinais dos autos, pela prática, como autor material, de 1 crime de “reunião e manifestação ilegal”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 2/93/M, alterada e republicada pela Lei n.° 16/2008, (“Direito de Reunião e Manifestação”), e art. 312°, n.° 2 do C.P.M., fixando-lhe o Tribunal a pena de 120 dias de multa, à taxa diária de MOP$230,00, perfazendo a multa global de MOP$27.600,00 ou 80 dias de prisão subsidiária; e,
- condenar SOU KA HOU (蘇嘉豪), (2°) arguido com os sinais dos autos, pela prática, como autor material, de 1 mesmo crime de “reunião e manifestação ilegal”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 2/93/M, alterada e republicada pela Lei n.° 16/2008, (“Direito de Reunião e Manifestação”), e art. 312°, n.° 2 do C.P.M., fixando-lhe o Tribunal a pena de 120 dias de multa, à taxa diária de MOP$340,00, perfazendo a multa global de MOP$40.800,00 ou 80 dias de prisão subsidiária; (cfr., fls. 522 a 554-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, após homologação da “desistência do recurso” por parte do (2°) arguido SOU KA HOU, a esta Instância subiu o recurso pelo dito (1°) arguido CHIANG MENG HIN interposto, onde, em sede das sua (extensa) motivação e conclusões, vem colocadas questões várias, pelo mesmo assim identificadas:

“I. Ineptidão da Acusação
II. Nulidade do Julgamento e da Sentença por Alteração da Qualificação Jurídica
III. Nulidade da Sentença e do Julgamento por Violação da Imunidade
IV. Direitos Fundamentais
V. Erro de Qualificação: Manifestação e Incentivo
VI. Falta de Autonomia do art. 14° como Tipo Penal
VII. Inconstitucionalidade do art. 14° como Tipo Penal Autónomo por Violação do Princípio da legalidade e Tipicidade
VIII. Violação do Dispositivo: Não Imputação da Prática de Qualquer Crime
IX. Falta de Fundamentação de Direito
• Inexistência de Violação da Lei 2/93/M
X. Aviso Prévio: Art. 5°
XI. Manifestações Espontâneas: Não Obrigatoriedade de Aviso Prévio
XII. Desvio de Percurso: Não Constitui Crime
XIII. Artigos 2°, 3°, 4°, 7° E 8° da Lei 2/93/M
XIII. Interrupção de Manifestação (Art. 11°) e Ilegitimidade da Ordem
XIV. Obediência à Ordem Policial
XV. Atirar Aviões de Papel não é Crime & Entregar Cartas não é Proibido
XVI. Violação do Dever de Entregar Cópia do Auto de Ocorrência
XVII. Erro sobre Proibições e Erro sobre a Ilicitude
XVIII. Princípios da Necessidade das Penas e da Intervenção Mínima do Direito Penal”; (cfr., fls. 672 a 746).

*

Após douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto no sentido da integral confirmação do decidido, (cfr., fls. 837 a 846-v), e merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

*

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 525 a 528, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o (1°) arguido CHIANG MENG HIN recorrer da sentença que o condenou como autor material da prática de 1 crime de “reunião e manifestação ilegal”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 2/93/M, alterada e republicada pela Lei n.° 16/2008, (“Direito de Reunião e Manifestação”), e art. 312°, n.° 2 do C.P.M., na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de MOP$230,00, perfazendo a multa global de MOP$27.600,00 ou 80 dias de prisão subsidiária.

–– Ponderando nas questões pelo ora recorrente colocadas, e tendo presente a sua “natureza” e o seu “efeito” em relação à “decisão recorrida”, mostra de se começar pela alegada “ineptidão da acusação”.

Pois bem, em relação a esta questão, diz – em síntese – o recorrente, que “A acusação descreve factos mas não quais os que constituem crime, em violação do princípio da segurança jurídica, do princípio do acusatório, do direito de defesa e, em concreto, do disposto no art. 264º/3-b) do CP. Tal constitui nulidade da acusação, por ineptidão, porquanto, nos termos em que foi deduzida, não permite a realização de um julgamento e condenação de qualquer cidadão”; (cfr., conclusão 3ª).

Pretendendo o recorrente referir-se – cremos nós – ao art. 265°, n.° 3, al. b) do C.P.P.M. – pois que, certamente, por lapso, se terá escrito “263°/3-b) do C.P.” – útil é aqui transcrever o seu teor:
Artigo 265.º
(Acusação pelo Ministério Público)
“1. Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra aquele.
2. Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
3. A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
d) A indicação de provas a produzir ou a requerer, nomeadamente o rol das testemunhas e dos peritos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
e) A data e assinatura.
4. Em caso de conexão de processos, é deduzida uma só acusação.
5. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 259.º e nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 100.º, prosseguindo o processo quando, depois de se terem utilizado as duas vias de notificação, elas se tenham revelado ineficazes”; (sub. nosso).

E, atento o assim estatuído no comando em questão – n.° 3, al. b) – temos para nós que não se pode reconhecer razão ao ora recorrente.

Em essência, pelos motivos seguintes.

Vejamos.

O ora recorrente foi notificado da “acusação” que pelo Ministério Público lhe foi deduzida em 16.03.2017, (cfr., fls. 129), e, logo aí, podia suscitar a (agora) colocada questão, arguindo a nulidade que considera existir.

Com efeito, e independentemente do demais, sabido é que perante uma acusação, pode o arguido “reagir” de variadas formas, nomeadamente, pedindo a abertura da instrução, (cfr., art. 269°, n.° 1, al. a) do C.P.P.M.), que como sabido é, constituiu uma fase processual que visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público de deduzir acusação…; (cfr., art. 268°, n.° 1 do mesmo C.P.P.M.).

Porém, in casu, assim não sucedeu.

Perante a dita acusação, optou o ora recorrente por apresentar a sua contestação, (cfr., fls. 171 a 176), e, tanto quanto resulta do teor desta, alcançou, na plenitude, (todo) o sentido da acusação que lhe foi deduzida.

Perante isto, cabe ponderar: poderá o ora recorrente, tão só agora, – após várias sessões de julgamento, em que esteve assistido pelo seu mandatário, (cfr., fls. 428, 507 e 518), e apenas depois de prolatada a decisão final – vir suscitar, em sede de recurso, uma “questão” em relação à qual (já) teve toda a oportunidade para tal, e que – por motivos que somente ao próprio dirão respeito – entendeu não o fazer?

Abreviando, (já que ociosas nos parecem mais elaboradas considerações), há que dizer que, mesmo a existir a imputada nulidade, (que não cremos), a mesma estaria (necessáriamente) sanada, da mesma não se podendo extrair qualquer efeito.

De facto, face ao “princípio da legalidade” em matéria de nulidades, (cfr., art. 105° do C.P.P.M.), e não constituindo a alegada “nulidade” nenhuma das que se encontram previstas como “insanáveis” e (taxativamente) elencadas no art. 106° do dito código, inevitável é ter a mesma como um “nulidade” dependente de (tempestiva) arguição, (cfr., art. 107°), e, como tal, passível de “sanação”, (cfr., art. 108°), o que, atento o período de tempo entretanto decorrido desde a data da referida notificação, e por falta de oportuna arguição, certamente já ocorreu; (sobre a questão, cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 05.05.93, Proc. n.° 42290 – citado por M. Leal-Henriques, in “Anot. e Com. ao C.P.P.M.”, Vol. II, pág. 400 – onde se considerou que “A nulidade por incumprimento do art.° 283.°, n.° 3 do CPP (para Macau, art.° 265.°, n.° 3) – falta de narração na acusação dos factos imputados – não é insanável e, por isso, tem de ser arguida até 5 – hoje, 10 – dias depois da notificação do despacho que recebeu a acusação, ou equivalente”).

Todavia, e ainda que assim não se entenda, (e, repita-se, o que não cremos), na mesma, ao ora recorrente não assiste razão.

Com efeito, a reclamada (necessidade de) “identificação dos factos que constituem o crime”, face à redacção do (pelo recorrente invocado) art. 265°, n.° 3, al. b) do C.P.P.M., (que – apenas – se refere à “narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena…”), não se apresenta, em nossa opinião, (legalmente) exigível.

Admite-se – como é óbvio – a sua “conveniência” num processo com uma “acusação longa”, constituída por várias dezenas ou centenas de artigos, em que se imputa a um grupo de arguidos a prática – individual e conjunta – de diversos crimes…

Aí, como se disse, (e cremos ser evidente), compreende-se a dita conveniência.

Contudo, tal “situação” não se verifica nos presentes autos.

A acusação pelo Ministério Público deduzida é composta por “23 artigos”, expostos em 6 páginas, e com a mesma é imputada a prática de 1 (só) crime; (cfr., fls. 120-v a 123-v).

Dest’arte, e em face do até aqui relatado, afigura-se-nos que clara fica a solução a dar à suscitada questão, mais não se mostrando de sobre a mesma consignar.

*

–– Continuando – e notando-se desde já que não se vislumbra nenhuma “nulidade por violação de imunidade“, pois que, independentemente do demais, ao recorrente não assiste tal “qualidade”, sendo nós de a considerar também “pessoal” e “intransmissível” – afigura-se de se passar para a questão da “alteração da qualificação jurídica”, em relação à qual afirma o ora recorrente que “O Ministério Púbico acusou os arguidos pela prática de um único crime, p.p. no art. 312° do CP aplicável conjugadamente com o art. 14º da Lei 2/93/M. Trata-se do crime de desobediência a ordem legítima de autoridade. Contudo, a Sentença esclarece que operou a alteração da qualificação jurídica que constava da acusação para uma outra que consta da sentença, sendo inequívoco que os arguidos foram acusados pela prática de um tipo de crime e condenados pela prática de outro tipo de crime”; (cfr., concl. 4ª).

Vejamos.

Tanto quanto resulta da já referida acusação pelo Ministério Público deduzida, ao arguido, ora recorrente, era imputada a prática de 1 crime de “desobediência (qualificada)”; (cfr., fls. 123, onde, na sua versão original, consta o que segue: “綜上所述,嫌犯鄭明軒及嫌犯蘇嘉豪作為直接正犯,他們的既遂行為各觸犯一項澳門《刑法典》第312條第2款結合經第16/2008號法律修改之第2/93/M號法律(《集會權及示威權》)第14條所規定及處罰之加重違令罪”).

E, como da sentença condenatória objecto do presente recurso consta, foi o ora recorrente condenado como autor da prática de 1 crime de “reunião e manifestação ilegal”; (cfr., fls. 553 a 553-v, onde, também na sua versão original, consta: “綜上所述,根據《刑事訴訟法典》第353條、第355條及第356條的規定,本法院現因控訴書內容已獲證實而裁定如下︰
a) 第一嫌犯鄭明軒 (CHIANG MENG HIN) 被指控以直接正犯及既遂方式觸犯的《刑法典》第312條第2款結合經第16/2008號法律修改的第2/93/M號法律第14條所規定及處罰的一項加重違令罪,改判為以直接共同正犯及既遂方式觸犯了經第16/2008號法律修改的第2/93/M號法律第14條第1款所規定,結合《刑法典》第312條第2款所處罰的一項非法集會及示威罪,判處一百二十日罰金,每日罰金額澳門幣230元,總共為澳門幣27,600元,若不繳納罰金或不以勞動代替,則須服八十日徒刑;”).

Admite-se o entendimento – que se respeita – que o que sucedeu foi apenas uma mera “alteração formal”, tão só quanto ao “nomen iuris” do “tipo de crime” em causa, até porque as disposições legais em que assentou a “acusação” deduzida – cfr., art. 265°, n.° 3, al. c) do C.P.P.M. – e, a final, a sentença agora recorrida, (e embora com outra sequência), são as mesmas.

E, a ser assim, seria uma “alteração irrelevante”.

Contudo, não nos parece que assim deva ser.

Tratando análoga questão à ora em apreciação, teve já este T.S.I. oportunidade de considerar que:

“O julgador tem liberdade de, nos limites da competência do Tribunal, qualificar juridicamente os factos da acusação ou da pronúncia de modo diverso da subsunção aí encontrada.
Na verdade, sendo a determinação do direito ou o enquadramento jurídico dos factos apurados, o cerne da função judicial, não pode a mesma estar sujeita a limitações decorrentes de um incorrecto enquadramento, sob pena de total desvirtuamento dessa função.
Porém:
- quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada, o juiz tem sempre de observar o contraditório;
- nas hipóteses de a alteração implicar a aplicação de penalidade igual ou inferior à que constava da acusação, em regra, será necessário proceder à comunicação da alteração ao arguido, visto que a estratégia de defesa estruturada para determinada configuração jurídica, não valerá para outra, mesmo que para infracção menos grave;
- não será de proceder à comunicação quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação, ou seja, de um modo geral, sempre que entre o crime da acusação ou da pronúncia e o da condenação há uma relação de especialidade ou de consunção e a convolação é efectuada para crime menos gravoso; (v.g., convolação de furto de valor elevado para furto simples; de roubo para furto; de homicídio ou de ofensas à integridade física cometidos dolosamente para os mesmos crimes por negligência; de violação para coacção sexual; de homicídio para homicídio privilegiado, etc.).
Tal entendimento – à falta de regulamentação expressa, já que o C.P.P.M. não trata da questão da alteração da qualificação jurídica, regulamentando, apenas, a matéria da alteração substancial ou não de factos descritos na acusação ou pronúncia, e, atento o disposto no art. 4º do C.P.P.M. – tem como fundamento jurídico, (por aplicação analógica), o disposto no art. 339º do citado código”; (cfr., o Ac. de 31.01.2002, Proc. n.° 131/2001, e, no mesmo sentido, o de 22.11.2012, Proc. n.° 707/2012, e de 05.05.2016, Proc. n.° 269/2016).

Motivos não havendo para se alterar o assim entendido, à vista está a solução, até mesmo porque na própria sentença recorrida se consignou, (expressamente), que a correcta qualificação jurídico-penal da factualidade dada como provada não era a que constava da acusação deduzida, e que o crime cometido não era o de “desobediência (agravada)”, mas sim o de “reunião e manifestação ilegal”, cabendo igualmente aqui notar que tal também se deveu à decisão de se dar como “não provada” uma parte da acusação, o que terá impedido a qualificação da facticidade dada provada como a prática de 1 crime de “desobediência”; (cfr., fls. 528).

Ora, nos termos do art. 339° do C.P.P.M.:

“1. Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos com relevo para a decisão da causa mas não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, e que não importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa”.

E, como se estatui no art. 360° do mesmo C.P.P.M.:

“1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 355.º; ou
b) Que condenar por factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 339.º e 340.º
2. As nulidades da sentença são arguidas ou conhecidas em recurso, podendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo 404.º”.

In casu, constatando-se a imputada “alteração da qualificação jurídico-penal” sem que ao recorrente tenha sido dada a oportunidade de sobre ela exercer o contraditório, requerendo o que por bem entendesse em sua defesa, violado foi o estatuído no transcrito art. 339°, n.° 1 do C.P.P.M. que, por sua vez, origina a “nulidade” prevista no art. 360°, al. b) do mesmo código.

Aqui chegados, e apresentando-se-nos que a dita nulidade irá implicar a (oportuna) observância do estatuído no art. 339°, n.° 1, prejudicadas se nos afiguram todas as restantes questões colocadas no âmbito do presente recurso.

*

Uma nota final.

Como se deixou relatado, com a “decisão do T.J.B., ora recorrida” foram dois os arguidos condenados.

E, embora assim não conste expressamente do dispositivo, a factualidade dada como provada apresenta a conduta dos referidos arguidos como uma “actuação conjunta” que, a se entender constituir uma “co-autoria”, implica a “aplicação do art. 392°, n.° 1 e 2 do C.P.P.M.”, estendendo-se o efeito da decisão agora proferida ao (2°) arguido não recorrente.

Porém, considerando que o mesmo desistiu do recurso que chegou a interpor, estando tal desistência homologada por decisão transitada em julgado, afigura-se-nos que afastada se deve considerar a “questão”.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso.

Sem custas.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 31 de Janeiro de 2019

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng (com a declaração de que a decisão de recurso, ora tomada no presente acórdão, que determina o cumprimento, em 2.ª via, do contraditório, por aplicação (analógica – no meu entender) do art.º 339.º, n.º 1, do CPP, não pode ser entendida como favorável ao outro arguido, pelo que, independentemente do demais, não seria aplicável a este a norma do art.º 392.º, n.º 2, alínea a), do CPP).


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