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Processo nº 6/2019 Data: 21.02.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas”.
Crime de “homicídio (tentado)”.
Concurso real de crimes.
Atenuação especial.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Sanação pelo Tribunal de recurso.



SUMÁRIO

1. Sendo – marcadamente – distintos os bens jurídicos protegidos nos ilícitos de “incêndio” e de “homicídio”, afastada está a possibilidade de se considerar que estão numa relação de “concurso aparente”.

2. A “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.
A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

3. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” ocorre quando o Tribunal não emite pronúncia sobre toda a “matéria objecto do processo”.
Tal vício implica o reenvio do processo para novo julgamento no Tribunal recorrido, a não ser que o Tribunal de recurso possa proceder à sua sanação.
Assim sucede se nos autos existirem documentos cuja qualidade permitam a decisão da matéria em falta.

O relator,

______________________



Processo nº 6/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em audiência colectiva no T.J.B. respondeu A, arguido com os restantes sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática como autor material e em concurso real de 1 crime de “homicídio”, na forma tentada, p. e p. pelo art. 128°, 21°, 22° e 67° do C.P.M., na pena de 8 anos de prisão, e 1 outro de “incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas”, p. e p. pelo art. 264°, n.° 1, al. a) do C.P.M., na pena de 6 anos de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 11 anos de prisão; (cfr., fls. 938 a 946 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu, imputando ao Acórdão recorrido os vícios de nulidade por “falta de fundamentação” no que toca à não atenuação especial da pena, “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”, pugnando pela sua condenação como autor material do crime de “homicídio” em concurso aparente com o de “incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas”, pedindo, também, a atenuação especial da pena; (cfr., fls. 954 a 974 e 985 a 990).

*

Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 991 a 993-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.954 a 974 dos autos, o recorrente assacou, ao Acórdão criticado o erro de direito traduzido em não aplicar a circunstância contemplada na alínea c) do n.º2 do art.66º do Cód. Penal, a nulidade prescrita na alínea a) do n.º1 do art.360º do CPP, a violação do preceito na alínea f) do n.º2 do art.129º do Cód. Penal, o erro notório na apreciação de prova para efeitos consignado na alínea c) do n.º2 do art.66º do CPP e, afinal, a excessiva severidade da pena aplicada pelo Tribunal a quo.
Quid juris?
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Repare-se que no Acórdão em escrutínio, o Tribunal a quo deu por provado que o recorrente/arguido tinha efectuado o pagamento da quantia de MOP$1,000,000.00 a título de indemnização (嫌犯在宣判前已向被害人支付了澳門幣100萬元的賠償), quantia que corresponde exactamente ao valor referido na Declaração prestada pela ofendida (cfr. fls.934 dos autos).
Sucede, na realidade, que em 14/09/2018 data anterior a este pagamento, o recorrente pagara já a quantia de MOP$1,300,000.00 também a título de indemnização. A declaração de fls.928 dos autos equivale a uma confissão prestada pela ofendida ao Tribunal a quo.
Salvo devido respeito, afigura-se-nos que na medida em que se trata duma confissão judicial escrita, tal declaração de fls.928 faz prova plena do facto de a ofendida ter recebido essa quantia MOP$1,300,000.00 paga pelo ora recorrente na qualidade de arguido (art.351º, n.º1, do Código Civil).
E na nossa óptica, é dotada igualmente da força probatória plena a Declaração de fls.934 dos autos, em que a ofendida confessou peremptoriamente que o arguido liquidara integralmente a indemnização acordada por ambos, portanto ela já não teve nenhum prejuízo patrimonial.
Na medida em que antes da prolação do Acórdão em questão, os MMºs. Juízes do tribunal colectivo não tomaram conhecimento do facto provado pela Declaração de fls.928 dos autos (vide. douto esclarecimento de fls.978 dos autos), e que tal Declaração da própria ofendida tinha sido submetida ao Tribunal a quo em 18/09/2018 (cfr. fls.927 dos autos), inclinamos a entender que se verifica, no caso sub judice, o erro de julgamento por se considerar provado apenas “嫌犯在宣判前已向被害人支付了澳門幣100萬元的賠償”.
Salvo elevado respeito pelo entendimento diferente, afigura-se-nos que o pagamento voluntário e integral pelo recorrente da indemnização acordada constitui arrependimento sincero consagrado na alínea c) do n.º2 do art.66º do CPM, como circunstância de atenuação especial.
A atenciosa leitura do Acórdão em escrutínio deixa-nos a impressão de que ao graduar as penas parcelares e a única, o douto Tribunal a quo não valorou o sobredito arrependimento sincero, por isso não procedeu à atenuação especial das penas abstractamente aplicáveis ao recorrente. O que implica o Acórdão recorrido infringe o disposto na alínea c) do n.º2 do art.66º do CPM, assim procede a conclusão 25 da Motivação.
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Nas conclusões 26 e 27 da Motivação, o recorrente arguiu ainda a nulidade prevista na alínea a) do n.º1 do art.360 do CPP, alegadamente em virtude de o veredicto recorrido não fundamentar a não aplicação da alínea c) do n.º2 do art.66º do CPM e, desta forma, enfermar da absoluta falta da matéria jurídica quanto à atenuação especial da pena.
Ora, o próprio Acórdão em questão constata inequivocamente que contém em si a enunciação concisa e coerente dos fundamentos de facto e de direito; de outro lado, a falta, na sentença condenatória, dos elementos previstos na primeira parte do artigo 356.º, n.º1 do CPP (fundamentos que presidiram à escolha e à medida da pena), constitui mera irregularidade, sujeita ao regime do artigo 361.º, n.ºs 1 alínea b) e 2 deste Código (cfr. Acórdãos do TUI nos Processos n.º25/2009 e 58/2011), portanto, as mencionadas conclusões 26 e 27 não podem germinar a nulidade pretendida pelo recorrente.
Repare-se que a não aplicação do disposto na alínea c) do n.º2 do art.66º do CPM ao caso sub judice gera erro de direito, nesta medida e em boa verdade, a falta da fundamentação da não aplicação da alínea c) constitui mera consequência acessória, por isso, tal falta da fundamentação não dá luz à omissão de pronúncia prevista na d) do n.º1 do art.571º do CPC, nem sequer fecunda a irregularidade prescrita no art.110º do CPP, degradando-se numa deficiência inócua sem autonomia.
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Em relação à arguição da violação do preceito na alínea f) do n.º2 do art.129º do CPM e do erro notório na apreciação da prova consagrado na alínea c) do n.º2 do art.400º do CPP, subscrevemos as judiciosas explanações da ilustre colega na Resposta (cfr. fls.991 a 993 verso dos autos).
Com efeito, são essencial e manifestamente diferentes os bens jurídicos que correspondem respectivamente ao crime de homicídio p.p. pelo art.128º do CPM e ao crime de incêndio, explorações e outras condutas especialmente perigosas p.p. pela alínea a) do n.º1 do art.264º do mesmo diploma legal. De outra banda, importa realçar que os factos provados 6) e 7) tornam inquestionável que o incêndio dolosamente criado pelo recorrente provocou não só sério perigo para a vida da ofendida, mas também consideráveis danos efectivos aos bens patrimoniais desta.
Nestes termos, o referido incêndio cometido pelo recorrente não pode ser enquadrado em mero instrumento para prática do homicídio, nem absorvido pelo crime de homicídio. Daí decorre que o Acórdão em crise não ofende a disposto na alínea f) do n.º2 do art.129º do CPM.
Quanto ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.º2 do art.400º do CPP, é consolidada no actual ordenamento jurídico de Macau a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, arestos do Venerando TUI nos Processos n.º17/2000, n.º16/2003, n.º46/2008, n.º22/2009, n.º52/2010, n.º29/2013 e n.º4/2014): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Em esteira, colhemos que a valoração pelo Tribunal a quo da facturas de fls.602 a 604 dos autos para abonar o facto provado 7) respeitante ao valor do dado patrimonial não padecem do erro notório na apreciação de prova, e são inconsistentes as conclusões 36) a 41) da Motivação.
Por todo o expendido acima, propendemos pela verificação da assacada violação do disposto na alínea c) do n.º2 do art.66º do CPM”; (cfr., fls. 1017 a 1019).

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Nada obstando, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 940 a 941-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou pela prática como autor material e em concurso real de 1 crime de “homicídio”, na forma tentada, p. e p. pelo art. 128°, 21°, 22° e 67° do C.P.M., na pena de 8 anos de prisão, e 1 outro de “incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas”, p. e p. pelo art. 264°, n.° 1, al. a) do C.P.M., na pena de 6 anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 11 anos de prisão.

E, como se deixou relatado, em síntese, é de opinião que incorreu o Tribunal a quo nos vícios de nulidade por “falta de fundamentação” no que toca à não atenuação especial da pena, “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”, pugnando pela sua condenação como autor material do crime de “homicídio” em concurso aparente com o de “incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas”, pedindo, também, a atenuação especial da pena.

Identificadas que estão as “questões” trazidas à apreciação deste T.S.I., e da reflexão que sobre elas nos foi possível efectuar, eis o que se nos oferece dizer.

–– Começando, como parece lógico, pelos “vícios da decisão da matéria de facto”, vejamos.

Repetidamente tem este Tribunal entendido que o vício de “erro notório na apreciação da prova” apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018, de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 04.04.2018, Proc. n.° 151/2018, de 07.06.2018, Proc. n.° 376/2018 e de 11.10.2018, Proc. n.° 772/2018).

Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).

E como se consignou no Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.

Motivos não havendo para se alterar o assim entendido quanto ao sentido e alcance do vício em questão, cabe desde já dizer que nenhum “erro” existe por o Colectivo a quo ter dado como provado que o “prejuízo patrimonial” no estabelecimento da ofendida com o incêndio pelo arguido causado se calculava em MOP$339.718,00, pois que, independentemente do demais, tal montante corresponde ao teor de elementos probatórios, (documentos), juntos aos autos, certo sendo também que para o afastar, não basta alegar, (em recurso), que os “documentos em questão não são recibos”.

Como é óbvio, e como meros “documentos particulares” que são, não constituem “prova plena” em relação aos quais estivesse o Tribunal vinculado a decidir em sua conformidade.

Porém, tal não impede que se tenha decidido nos termos em que se decidiu, já que analisados os autos, e tendo presente os elementos probatórios existentes e que serviram para formar a convicção do Tribunal, não se vislumbra nenhuma violação a qualquer regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, apresentando-se, pelo contrário, (e como se disse), que se decidiu em total sintonia com as ditas regras de experiência.

Na opinião do arguido, provado devia estar também que “confessou os factos” e que “reparou o dano que causou”, tendo pago à ofendida um total de MOP$2.500.000,00.

Ora, aqui, cremos que, em parte, se terá de reconhecer razão ao recorrente.

Com efeito, se no que toca à dita “confissão”, motivos não existem para qualquer censura, (até porque o ora recorrente apenas confirmou “parte dos factos” acusados), não se pode olvidar que, (como o próprio Tribunal reconhece), não foram objecto de apreciação “factos” pelo arguido alegados quanto à dita “reparação”.

Vejamos.

Deu o Tribunal como provado que o arguido pagou, a título de indemnização, MOP$1.000.000,00 à ofendida.

Porém, (e como o reconheceu), houve documentos pelo arguido juntos aos autos com os quais alegava e pretendia provar que outra foi a quantia paga à ofendida e que não foram objecto de apreciação e objecto de ponderação, pelo que inegável se nos apresenta que se incorreu aqui em “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, já que, (e independentemente dos motivos de tal “omissão”), não emitiu pronúncia sobre matéria tempestivamente invocada, e que constituía “objecto do processo”.

E, perante o assinalado “vício”, que dizer?

Como sabido é, o vício de “insuficiência”, (como qualquer dos outros da decisão da matéria de facto), apenas dá lugar ao “reenvio do processo para novo julgamento” se o Tribunal de recurso não o puder sanar; (cfr., art. 418° do C.P.P.M.).

No caso dos autos, cremos que em face ao que dos autos consta – cfr., “acta de julgamento”, a fls. 891-v, assim como os documentos (“confissões extra-judiciais”) a fls. 928 e 934 – viável é dar-se desde já como assente que o ora recorrente já pagou MOP$2.500.000,00 à ofendida.

Aqui chegados, cremos que importa decidir a questão da “qualificação jurídico-penal” de conduta do arguido que pretende afastar a sua condenação, em concurso real, pelos crimes de “homicídio (tentado)” e de “incêndio”.

Mostra-se-nos de dizer que adequada foi a sua condenação por tais crimes nos termos decididos, ou seja, em “concurso real”.

Com efeito, sendo – marcadamente – distintos os bens jurídicos protegidos nos ilícitos de “incêndio” e de “homicídio”, afastada está qualquer possibilidade de se considerar que estão numa relação de “concurso aparente”; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 01.06.1998, Proc. n.° 98P1146, e o Ac. deste T.S.I. de 09.02.2006, Proc. n.° 321/2005).

Aqui chegados, resolvidas as “questões” relativas à “decisão da matéria de facto” e confirmada a “qualificação jurídico-penal” da conduta do arguido recorrente, passemos para as questões que o mesmo coloca em relação à pena.

Pois bem, antes de mais, há que dizer que a alegada “falta de fundamentação” no que toca à atenuação especial da pena não origina o vício pelo recorrente assacado.

Com efeito, não sendo a dita “omissão” causa de nulidade prevista no art. 360° do C.P.P.M., visto está que integra uma mera irregularidade, que porque não tempestivamente arguida se terá de ter por sanada; (cfr., art. 110° do C.P.P.M.).

Porém, certo sendo que com o presente recurso reclama o recorrente a atenuação especial da pena, sem demoras, se passa a decidir.

Vejamos.

Nos termos do art. 66° do C.P.M.:

“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.

Tratando desta “matéria” tem-se entendido que a figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.

Como repetidamente temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 10.05.2018, Proc. n.° 265/2018, de 14.06.2018, Proc. n.° 397/2018 e de 10.01.2019, Proc. n.° 1032/2018).

No caso, atento o que se deixou exposto em relação à questão em apreciação, ponderando nos “tipos de crime” cometidos e suas (graves) consequências, entende-se que motivos não há para se accionar o estatuído no art. 66° do C.P.M. para efeitos de “atenuação especial da pena” do arguido, ora recorrente.

De facto, in casu, e tendo presente a factualidade dada como provada e o que se deixou consignado, somos de opinião que não se verifica uma “acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou de necessidade de pena”.

Porém, atenta a dita factualidade provada, (do qual ressalta o agora admitido pagamento de MOP$2.500.000,00 à ofendida), ponderando nas molduras penais aplicáveis aos crimes – de “homicídio tentado” e “incêndio” – pelo recorrente cometidos, e atento os citérios dos art°s 40° e 65° do C.P.M., cremos que mais adequada se nos apresenta a pena parcelar de 7 anos de prisão para o crime de “homicídio” (tentado), e a de 5 anos de prisão para o de “incêndio”.

E, perante estas penas parcelares, atento o estatuído no art. 71° do C.P.M., tem-se como justa a pena única de 9 anos de prisão.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, ficando o arguido condenado na pena única de 9 anos de prisão.

Pelo seu decaimento, pagará o arguido a taxa de justiça individual de 3 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 21 de Fevereiro de 2019
_________________________
José Maria Dias Azedo
[Ponderando nos “motivos” que levaram o arguido à prática dos crimes cometidos, na sua conduta processual, especialmente, efectuando o pagamento de MOP$2.500.000,00 à ofendida como forma de a compensar e – tentar – “reparar o mal que causou”, e tendo também presente a postura da própria ofendida, admitia uma atenuação especial da pena ou uma mais acentuada redução das penas aplicadas].
_________________________
Chan Kuong Seng
_________________________
Tam Hio Wa

Proc. 6/2019 Pág. 28

Proc. 6/2019 Pág. 29