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Processo n.º 30/2019. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Secretário para a Segurança.
Assunto: Erro da Administração na notificação de acto administrativo relativamente à recorribilidade contenciosa. N.º 6 do artigo 111.º do Código de Processo Civil. Rectificação de actuação em face de erro da Administração. Recurso hierárquico necessário.
Data da Sessão: 4 de Abril de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – O disposto no n.º 6 do artigo 111.º do Código de Processo Civil constitui um princípio geral aplicável não só às secretarias judiciais, mas também aos serviços administrativos encarregados das notificações de actos administrativos susceptíveis de impugnação.
II - É pressuposto da norma do n.º 6 do artigo 111.º do Código de Processo Civil e do princípio que se funda neste, que o interessado foi lesado num direito.
III – Cabendo legalmente à Administração, que notifica um particular de um acto administrativo, indicar se o acto é impugnável, perante que órgão e em que prazo, nos termos do artigo 70.º do Código do Procedimento Administrativo, se aquela fornece indicações erradas quanto à recorribilidade contenciosa do acto, que levam o particular a actuar erradamente, recorrendo contenciosamente e não hierarquicamente, como devia, há que conceder a possibilidade de o interessado rectificar a sua impugnação.
IV – Estando o acto administrativo sujeito a recurso hierárquico necessário (e não a recurso contencioso, como o particular fora notificado pela Administração), pode o particular interpor o recurso hierárquico necessário no prazo legal de interposição destas impugnações, a contar da decisão definitiva no sentido da necessidade de tal impugnação necessária.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho de 20 de Junho de 2016, do Secretário para a Segurança, que negou provimento ao recurso hierárquico interposto da decisão do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que indeferiu a concessão de licença de uso e porte de arma de defesa.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 16 de Junho de 2016, absolveu da instância a entidade recorrida, por irrecorribilidade do acto recorrido.
Inconformado, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal e Última Instância (TUI), sustentando a tempestividade da interposição do recurso contencioso, pois que:
- As disposições do artigo 70.º do Código de Procedimento Administrativo visam permitir ao interessado saber se o acto administrativo é ou não definitivo, do qual cabe ou não recurso contencioso e para onde deve ser apresentado o recurso contencioso.
- Apesar de o recurso hierárquico necessário ser apresentado ao Secretário para a Segurança em 18 de Março de 2016, uma vez que o exercício do direito do recorrente rege-se pelos artigos 291.º, 324.º e 319.º, n.º 3 do Código Civil, ainda não decorreu o prazo para o exercício do direito, assim, o recurso hierárquico necessário do recorrente foi interposto no prazo legal.
- Pelo exposto, o recurso hierárquico necessário apresentado ao Secretário para a Segurança em 18 de Março de 2016 contra a decisão do Comandante do CPSP não é extemporâneo, é tempestivo.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos (omitem-se os irrelevantes para a decisão da única questão deste recurso jurisdicional):
1 - O recorrente apresentou ao CPSP, em 20 de Maio de 2013, um pedido de concessão de licença de uso e porte de arma de defesa.
2 - Foi então proferido o despacho do Comandante da PSP, em 24 de Setembro de 2013, que indeferiu o requerimento.
3 - O recorrente foi notificado desta decisão nos seguintes moldes:
Governo da Região Administrativa Especial de Macau
Corpo de Policia de Segurança Pública
Ao Exm.º Senhor A
[Endereço (1)]
Sua ref.ª Sua comunicação Nossa ref.ª
Ofício XXX/XXXX/2013P, de 4/10/2013
Assunto: Notificação/Remessa de despacho
Por despacho proferido em 24 de Setembro de 2013 pelo presente CPSP, foi determinado o cancelamento da licença de V. Ex.ª relativa ao uso e porte de arma de defesa, para o devido efeito, junto se envia a cópia autenticada do respectivo despacho.
Nos termos do art.º 31.º do D.L n.º77/99/M (Regulamento de Armas e Munições), o presente Corpo já cancelou a licença de uso e porte de arma de defesa registada e detida por V. Ex.ª junto do Sector de Armas e Munições deste Corpo, bem como procedeu à devida disposição, ao abrigo do art.º 32.º, n.ºs 2 e 3, art.º 34.º, n.º 4, do mesmo decreto-lei.
Nos termos dos art.ºs 154.º, n.º1 e 155.º, n.º2 do Código do Procedimento Administrativo de Macau, pode V. Ex.ª, no prazo de 30 dias, contado a partir de tomar conhecimento do respectivo despacho, interpor recurso contencioso para o Tribunal Administrativo.
Com os melhores cumprimentos.
Pel´O Comandante do CPSP,
B.
Ass. Int. C
4 - O recorrente apresentou recurso contencioso no Tribunal Administrativo, que foi rejeitado por sentença de 31 de Outubro de 2014 (Proc. nº 1049/13-ADM), por o acto não ser definitivo, por dele caber recurso hierárquico obrigatório, decisão que foi confirmada pelo TSI, por acórdão de 03/03/2016 (Proc. nº 171/2015).
5 - O recorrente interpôs recurso hierárquico em 18/03/2016.
6 - Em 20/6/2016, o Secretário para a Segurança indeferiu o recurso hierárquico, mantendo o despacho do Comandante do CPSP.
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
1. Questões a apreciar
Importa apreciar o que vem suscitado pelo recorrente, que defende a recorribilidade do acto recorrido.

2. Consequências da interposição de recurso contencioso de acto não definitivo em virtude da notificação da Administração que indicava a recorribilidade contenciosa do acto notificando
Os factos essenciais são estes:
Foi indeferido requerimento do recorrente, apresentado em 20 de Maio de 2013, pelo Comandante do CPSP.
O CPSP notificou o recorrente, em 4 de Outubro de 2013, que do acto administrativo cabia recurso contencioso para o Tribunal Administrativo.
O recorrente interpôs recurso contencioso para o Tribunal Administrativo em tempo.
Em recurso de decisão do Tribunal Administrativo, o TSI decidiu, em 3 de Março de 2016, com trânsito em julgado, que o CPSP se havia equivocado e que do acto cabia recurso hierárquico necessário e não recurso contencioso, pelo que rejeitou o recurso contencioso.
O recorrente interpôs recurso hierárquico necessário para o Secretário para a Segurança, em 18 de Março de 2016 e, indeferido o seu recurso, interpôs recurso contencioso deste acto para o TSI.
Ou seja, o recorrente errou ao interpor recurso contencioso para o Tribunal Administrativo. Fê-lo porque foi induzido em erro pela notificação da Administração, que lhe disse que do acto, de que o notificava, cabia recurso contencioso.
Quanto ao conteúdo da notificação de actos administrativos, dispõe o artigo 70.º do Código do Procedimento Administrativo:
“Artigo 70.º
(Conteúdo da notificação)
Da notificação devem constar:
a) O texto integral do acto administrativo;
b) A identificação do procedimento administrativo, incluindo a indicação do autor do acto e a data deste;
c) O órgão competente para apreciar a impugnação do acto e o prazo para esse efeito;
d) A indicação de o acto ser ou não susceptível de recurso contencioso”.

A Administração deu erradas indicações, que era obrigada a comunicar, isto é, disse que do acto cabia recurso contencioso, quando não cabia. O que devia ter dito era que do acto cabia impugnação administrativa necessária, para quem e em que prazo.
Quid juris?
Dispõe o n.º 6 do artigo 111.º do Código de Processo Civil:
“Os erros e omissões praticados pela secretaria não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes”.
A propósito desta norma pronunciaram-se CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA1:
«No Código anterior já existiam algumas normas onde aflorava este princípio, por exemplo no art. 198.º, n.º 3 (actual art. 144.º, n.º 3) e no art. 448.º (actual art. 378.º). O problema é que se dizia que tais normas, designadamente a primeira, eram excepcionais, pelo que delas não cabia aplicação analógica2.
Face à inovadora norma do n.º 6 do artigo em anotação, parece não poder continuar a sustentar-se esta última doutrina. De qualquer modo, afigura-se-nos que a norma deve ser interpretada no sentido de que os erros e omissões praticados pela secretaria só relevam para desculpar falhas das partes e seus mandatários, se a secretaria tiver obrigação legal de praticar o acto que se revelou erróneo. Assim, se uma parte foi notificada para praticar um acto processual (por exemplo, alegações de recurso) por notificação postal dirigida ao seu advogado e este, por comodismo ou outra razão, se dirige à secretaria judicial, pedindo informação sobre o dia do termo do prazo, e se vem a verificar que o advogado pratica o acto após o respectivo termo em virtude do referido erro do funcionário, não temos quaisquer dúvidas que não tem aplicação o disposto no n.º 6. É que o funcionário não tinha qualquer dever jurídico de informar o advogado. Este é que tinha obrigação de fazer a contagem do prazo. Se recorreu ao funcionário da secção de processos fê-lo por sua conta e risco. É o que também resulta do disposto no n.º 2 do art. 478.º do CC.
Supomos que é, também, o que defende C. LOPES DO REGO3 ao referir-se à aplicação de norma semelhante do Código português à situação em que a parte tenha “confiado em indicação dada de modo processualmente relevante e documentada nos autos por algum funcionário da secretaria”».
Afigura-se-nos que a mencionada norma do Código de Processo Civil constitui um princípio geral aplicável não só às secretarias judiciais, mas também aos serviços administrativos encarregados das notificações de actos administrativos susceptíveis de impugnação.
Na verdade, cabendo legalmente à Administração, que notifica um particular de um acto administrativo, indicar se o acto é impugnável, perante que órgão e em que prazo, se lhe fornece indicações erradas que o levam a actuar erradamente, há que conceder a possibilidade de o particular rectificar a sua impugnação, dado que os erros e omissões praticados pelos serviços da Administração não podem, em qualquer caso, prejudicar os interessados.
Nem se diga, como faz o acórdão recorrido, invocando o disposto no artigo 5.º do Código Civil, que a ignorância da lei não aproveita a ninguém, dizendo que o recorrente tinha obrigação de conhecer a lei e eventualmente, recorrendo contenciosamente e hierarquicamente, à cautela.
Vejamos.
O CPSP notificou o recorrente, em 4 de Outubro de 2013, que do acto administrativo de indeferimento do Comandante, cabia recurso contencioso para o Tribunal Administrativo.
Este entendimento do CPSP estava de acordo com a jurisprudência do TSI que, por Acórdão de 31 de Outubro de 2013, no Processo n.º 853/2012, decidiu que o acto do Comandante do CPSP, que nega licença de uso e porte de arma de defesa é definitivo e que dele cabe recurso contencioso para o Tribunal Administrativo4.
E já anteriormente, o TSI tinha decidido que quando a lei atribui uma competência a um órgão subalterno da Administração Pública para a prática de um determinado acto administrativo (como era o caso desta competência do Comandante do CPSP para conceder licenças de uso e porte de arma de defesa), desse acto não cabe recurso hierárquico necessário, salvo quando especialmente previsto na lei (acórdão de 9 de Maio de 2013, Processo n.º 32/2012).
Ou seja, os Serviços do CPSP seguiram a jurisprudência do TSI (voluntária ou involuntariamente) e notificaram o interessado que deveria interpor recurso contencioso. Este interpôs tal recurso, que se vem a verificar, por decisão judicial posterior, que não era devido.
Como é que se pode imputar ao recorrente ignorância da lei, se este segue o que lhe dizem os serviços da Administração, que estavam respaldados na sua interpretação por decisões de um tribunal superior?
Por outro lado, não se trata de admitir um recurso contencioso quando a lei não o admite. Trata-se de permitir que um interessado, que recorreu contenciosamente, por indicação errada e obrigatória da Administração, possa ainda recorrer hierarquicamente, no prazo legal do recurso hierárquico necessário, a contar do trânsito em julgado da pronúncia judicial definitiva, que decidiu que o recurso contencioso não era admissível por o acto administrativo não ser definitivo.
Quer dizer, é pressuposto da norma do n.º 6 do artigo 111.º do Código de Processo Civil e do princípio que se funda neste, que o interessado foi lesado num direito. Se, por exemplo, erradamente, o órgão administrativo notifica alguém de que pode exercer um direito e este o exerce, e se vem a verificar que o particular não tinha tal faculdade ou direito, é óbvio que o erro administrativo não faz nascer um direito ao interessado.
No acórdão de 10 de Junho de 2005, no Processo n.º 26/2004, decidiu este TUI que, se a notificação da Administração Pública induzir o particular, que não agiu com culpa indesculpável, no erro de que do acto ainda não cabia recurso contencioso, deve permitir a contagem do novo prazo para a sua interposição com fundamento na anulabilidade do acto, a contar do trânsito em julgado da pronúncia judicial definitiva, que decide que o acto era já contenciosamente recorrível.
O prazo para a interposição do recurso hierárquico necessário é de 30 dias (n.º 1 do artigo 155.º do Código do Procedimento Administrativo).
O TSI decidiu, com trânsito em julgado, que o CPSP se havia equivocado e que do acto cabia recurso hierárquico necessário e não recurso contencioso, pelo que rejeitou o recurso contencioso. 15 dias após a data desta decisão judicial o recorrente interpôs recurso hierárquico necessário para o Secretário para a Segurança e indeferido o seu recurso interpôs recurso contencioso deste acto para o TSI, no prazo legal.
O recurso hierárquico foi tempestivo, pelo que o acto recorrido é recorrível.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso jurisdicional, revogam o acórdão recorrido, para que conheça do mérito do recurso contencioso, se a ele nada obstar.
Sem custas.
Macau, 4 de Abril de 2019.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
     1 CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA, Código de Processo Civil Anotado e Comentado, Macau, Volume I, 2006, p. 327.
     2 Acórdão do STJ de 29.05.80, BMJ 297-287 e, de certa forma, o assento do STJ de 11.11.92, DR, I, A, 24.12.92 e BMJ 421-19.
     3 C. LOPES DO REGO, Comentários..., vol. I, p. 173.
     4 Este acórdão do TSI viria a ser revogado por Acórdão do TUI, de 9 de Julho de 2014, no Processo n.º 10/2014.
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