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Processo n.º 153/2018 Data do acórdão: 2019-6-20
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– reconhecimento de pessoa por fotografias
– reconhecimento de pessoas
– art.o 134.o do Código de Processo Penal
– depoimento directo
– depoimento indirecto
– art.o 116.o do Código de Processo Penal
– medida da pena
S U M Á R I O
  1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
  2. O reconhecimento de pessoa por fotografias, por não se tratar de reconhecimento de pessoas propriamente dito e regulado no art.o 134.o do Código de Processo Penal, naturalmente não pode ficar sujeito ao regime prescrito neste preceito.
  3. Se uma testemunha ouvida na audiência de julgamento pelo tribunal sentenciador tinha ouvido os pedidos verbais então feitos a ela por um dos dos arguidos do processo, é claro que ela pôde depor nessa audiência no sentido de que ela tinha recebido pedidos verbais desse arguido, depoimento do tipo deste que é autêntico depoimento directo, e não depoimento indirecto regulado no art.o 116.o do Código de Processo Penal.
  4. A medida da pena é feita aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do Código Penal.
 O relator,
 Chan Kuong Seng
 
Processo n.º 153/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.a arguida B




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 708 a 719 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-16-0487-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados o 1.o arguido A e a 2.a arguida B, aí já melhor identificados, como co-autores materiais de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do Código Penal (CP), igualmente em quatro anos e seis meses de prisão, com obrigação solidária de pagar três milhões dólares de Hong Kong de indemnização a favor do ofendido constituído assistente, com juros legais a contar desde a data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformados, vieram esses dois arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.o arguido, na sua motivação apresentada a fls. 734 a 749 dos presentes autos correspondentes, imputou, materialmente, à decisão condenatória recorrida:
– o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alegando, na sua essência, que a matéria fáctica provada, na parte unicamente a ele relacionada (ou seja, os factos provados 3 a 5 e 15), demonstra ser ele próprio um mero apresentador, e não um burlão, com a achega de que sem prova concreta de qual a astúcia empregue por ele, não se pode dar por verificado o crime de burla, sendo, pois, o facto provado 27 uma mera conclusão);
– o vício de erro notório na apreciação da prova (alegando, em essência, que o Tribunal recorrido não pode ter considerado o próprio recorrente como co-autor da 2.a arguida com base na relação de parentesco entre os dois, que não há elementos probatórios para se dar por provados os factos provados 5 e 15, e que não se pode basear nas declarações anteriores do 3.o arguido e nos depoimentos das duas primeiras testemunhas ouvidas na audiência de julgamento, incredíveis, por dúbias, para condenar o próprio recorrente), com simultânea violação do disposto no art.o 134.o do CPP (no respeitante à indagação de quem foi “C”);
– e, subsidiariamente, o excesso na medida da pena (por a sua pena de prisão ter sido fixada no aresto recorrido ao arrepio dos padrões dos art.os 40.o e 65.o do CP).
Pediu, pois, o 1.o arguido a sua absolvição directa penal e civil, ou, pelo menos, a redução da sua pena.
Enquanto a 2.a arguida alegou, na sua essência, o seguinte, na motivação apresentada a 753 a 770 dos autos:
– há erro notório na apreciação da prova, porquanto todos os elementos dos autos, conjugados, não permitem dar por provada a intervenção da própria arguida ora recorrente no cometimento do crime em questão;
– sendo certo que o depoimento da 2.a testemunha ouvida na audiência de julgamento tem teor resultante do ouvir dizer ao 3.o arguido, pelo que sem audição do 3.o arguido, o Tribunal recorrido não pode ter considerado o depoimento dessa testemunha para formar a livre convicção sobre os factos, sob pena de violação do art.o 116.o, n.o 1, do CPP, para além de não ser credível o depoimento dessa 2.a testemunha, dados os seus diversos antecedentes criminais;
– há, por outro lado, violação do art.o 134.o do CPP, no respeitante a quem tenha sido o indivíduo “C”;
– existe também, na decisão recorrida, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não haver elementos de prova a demonstrar a participação da própria arguida no crime dos autos;
– e subsidiariamente arguindo, há excesso na medida da sua pena de prisão.
Rogou, pois, essa arguida a sua absolvição directa penal, ou, pelo menos, a redução da sua pena, com sempre almejada suspensão da execução da pena, ou, então, o reenvio do processo para novo julgamento.
Aos dois recursos em causa, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 779 a 783 e a fls. 784 a 788 dos autos, no igual sentido de improcedência.
Respondeu o ofendido constituído assistente a fls. 795 a 806 ao recurso do 1.o arguido, e a fls. 808 a 819 ao recurso da 2.a arguida, preconizando o não provimento de ambos os recursos.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fls. 830 a 832v pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 708 a 719, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
Desde já, é de verificar que as razões invocadas pelo 1.o arguido para sustentar a verificação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não têm a ver propriamente com este vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), mas sim (na parte atinente à falta da prova de ser ele um burlão) com o âmbito do vício de erro notório na apreciação da prova da alínea c) do n.o 2 do mesmo artigo, ou (na parte relativa à alegada inverificação do crime de burla por alegada falta de astúcia) com a questão de qualificação jurídico-penal dos factos.
Outrossim, as razões concretamente expostas pela 2.a arguida na sua motivação (segundo as quais não há elementos de prova a demonstrar a sua participação no crime dos autos) para suportar a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada também não têm a ver com o âmbito deste vício, mas sim com o do vício referido na alínea c) do n.o 2 do dito art.o 400.o.
Como ambos os recursos têm por cerne o alegado vício de erro notório na apreciação da prova, passa-se a aquilatar disso agora.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que a livre convicção do Tribunal recorrido tenha sido formada com violação de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou de quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto. O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, nem viola o princípio de in dubio pro reo, pelo que improcede o vício de erro notório na apreciação da prova, levantado pelos dois recorrentes.
Sendo de frisar que:
– o “reconhecimento de pessoa por fotografias” a que alude inclusivamente o teor do facto provado 26, por não se tratar de “reconhecimento de pessoas” propriamente dito e regulado no art.o 134.o do CPP, naturalmente não pode ficar sujeito ao regime prescrito neste preceito, pelo que o teor de fl. 229 fica sujeito à regra da livre apreciação da prova (sendo certo que é lógica a livre convicção do Tribunal sentenciador acerca da questão de saber quem foi o “C”), plasmada no art.o 114.o do CPP, daí que improcede a questão, igualmente posta pelos dois recorrentes, de alegada violação, por esse Tribunal, do referido art.o 134.o;
– uma pessoa com antecedentes criminais também pode dizer verdade ou mentira, tal como uma pessoa sem qualquer antecedente criminal;
– o depoimento da 2.a testemunha ouvida na audiência de julgamento não é “depoimento indirecto” regulado no art.o 116.o do CPP, mas sim autêntico depoimento directo, visto que do teor do depoimento dessa testemunha, resumido na fundamentação probatória da decisão condenatória ora recorrida (concretamente, no último parágrafo da página 15 e no 2.o parágrafo da página 17, ambas do texto do acórdão recorrido, a fls. 715 e 716), resulta que esse indivíduo testemunha ouviu ele próprio os pedidos verbais que então lhe fez o 3.o arguido, pelo que é claro que esse indivíduo testemunha pode depor no sentido de ele ter recebido pedidos verbais do 3.o arguido, daí que não é de colher como boa a tese da 2.a arguida de alegada violação, pelo Tribunal sentenciador, do art.o 116.o, n.o 1, do CPP;
– não pode valer o argumento de que o Tribunal recorrido considerou o 1.o arguido como co-autor da 2.a arguida, porque o foi com base na relação de parentesco entre os dois: é que o próprio Tribunal sentenciador já explicou, na fundamentação probatória da decisão recorrida, o processo de formação da sua livre convicção sobre os factos, explicação essa que não se patenteia como desrazoável.
Sendo de deixar intocada a matéria de facto já dada por provada em primeira instância, devido à inverificação de qualquer erro notório na apreciação da prova, há que louvar, por legal e acertada, a decisão recorrida a nível de enquadramento jurídico-penal dos factos provados. Aliás, o processo de astúcia empregue pelos dois arguidos recorrentes já se encontrou descrito sobretudo nos factos provados 9 a 15, pelo que o facto provado 27 não é nada de meramente conclusivo: os dois arguidos recorrentes são efectivamente co-autores do crime por que vinham condenados no acórdão recorrido, pelo que decai a tese do 1.o arguido de ter ele agido como mero apresentador.
Sendo válida a decisão condenatória penal recorrida, é válida também, ao contrário do defendido pelo 1.o arguido recorrente, a decisão condenatória civil já tomada pela Primeira Instância.
Por fim, da subsidiariamente pretendida redução da pena de prisão: vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância, com pertinência à medida concreta da pena aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro da moldura penal aplicável ao crime de burla em valor consideravelmente elevado em causa, não se afigura que ante as prementes necessidades da prevenção desse delito penal, a pena de prisão concretamente achada no acórdão recorrido possa ser reduzida mais em favor dos dois recorrentes.
Sendo superior a três anos de prisão, a pena de prisão aplicada no aresto recorrido nunca pode ser objecto de suspensão da execução da pena (cfr. o art.o 48.o, n.o 1, do CP), pelo que improcede esse desejo da 2.a arguida recorrente.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em negar provimento aos recursos dos 1.o e 2.a arguidos.
Pagará o 1.o arguido as custas do seu recurso (com seis UC de taxa de justiça, e três mil patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa). E pagará a 2.a arguida as custas do seu recurso (com seis UC de taxa de justiça).
Macau, 20 de Junho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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