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Processo n.º 31/2018 Data do acórdão: 2019-7-11 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– ónus da prova
– existência da relação laboral
– incongruência das declarações prestadas pelo arguido em audiência
S U M Á R I O
1. No caso dos autos, como a defesa em processo penal não tem o ónus de provar a sua inocência, a eventual incongruência em alguns pontos das declarações prestadas pelo 2.o arguido na audiência de julgamento em primeira instância não tem a virtude de sanar a insuficiência da prova incriminatória arrolada pela acusação, daí que é compreensível o raciocínio do tribunal a quo na formação da sua livre convicção sobre os factos, segundo o qual: a prova oferecida pela acusação, por não ser bastante, não consegue fazer comprovar a (acusada) inexistência da relação laboral entre os dois arguidos, mas a falta de comprovação, por insuficiência da prova da acusação, da inexistência da relação laboral entre os dois arguidos não implica a comprovação da existência dessa relação laboral (porque no caso a defesa não conseguiu fazer comprovar a existência efectiva dessa relação).
2. Quer dizer, o Ministério Público acusador, a despeito dos meios de prova por si arrolados, não preencheu o ónus da prova, que sobre si recaía, da inexistência da relação laboral entre os dois arguidos.

O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 31/2018
Recorrente: Ministério Público
Recorridos (arguidos): A
B





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 502 a 507v do Processo Comum Colectivo então n.o CR3-16-0269-PCC do 3.o Juízo Criminal, presentemente n.o CR5-16-0208-PCC do 5.o Juízo Criminal, do Tribunal Judicial de Base, absolutório do 1.o arguido A e do 2.o arguido B, aí já melhor identificados, da acusada prática, em co-autoria material, de um crime consumado de falsificação de documento de especial valor, p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, e 245.o do Código Penal (CP), e de um crime consumado de burla em valor elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 3, do CP, veio o Digno Delegado do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir o reenvio do processo para novo julgamento, com fundamento na alegada verificação, nessa decisão absolutória, da contradição insanável da fundamentação como vício aludido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), quando afirmou o referido Tribunal no seu acórdão que o facto de não se conseguir dar por provada a inexistência da relação laboral entre os dois arguidos não representa que entre os dois arguidos exista relação laboral (cfr. em detalhes, o teor da sua motivação apresentada a fls. 514 a 518 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, responderam os arguidos B e A (respectivamente a fls. 525 a 530v e a fls. 535 a 539 dos presentes autos), no sentido igual de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer (a fls. 550 a 551 dos autos), opinando pela inexistência, na decisão recorrida, do vício de contradição insanável da fundamentação apontado na motivação do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão absolutório penal ora recorrido ficou proferido a fls. 502 a 507v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que o Digno Recorrente imputou à decisão absolutória penal recorrida o vício de contradição insanável da fundamentação, referido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Entretanto, após lida a fundamentação fáctica e probatória da decisão recorrida na sua globalidade, não se mostra patente este vício apontado.
É que o Tribunal recorrido chegou a explicar que as provas arroladas por parte da Entidade Acusadora não são suficientes para comprovar a inexistência da relação laboral entre o 1.o arguido (alegadamente trabalhador) e o 2.o arguido (alegadamente empregador), por um lado, e, que, por outro, as provas arroladas pela Defesa não são suficientes para comprovar a existência da relação de trabalho entre os dois arguidos, tendo especificado o mesmo Tribunal recorrido alguns pontos de desrazoabilidade humana das declarações prestadas pelo 2.o arguido na audiência de julgamento.
Foi por isso que o mesmo Tribunal julgou não provada, por insuficiência da prova, e por força do princípio de in dubio pro reo, a acusada inexistência da relação laboral entre os dois arguidos.
E isto tudo conforme o teor da fundamentação da decisão recorrida, escrito sobretudo no último parágrafo da página 9 e em quase toda a página 10, ambas do texto do acórdão recorrido, a fl. 506 a 506v.
Improcede, pois, o recurso, por ser de respeitar a decisão da matéria de facto feita pelo Tribunal recorrido, até porque no concernente à conexa temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
Em suma, no caso concreto dos autos, como a Defesa em processo penal não tem o ónus de provar a sua inocência, a eventual incongruência em alguns pontos das declarações prestadas pelo 2.o arguido na audiência de julgamento em primeira instância no presente processo não tem a virtude de “sanar” a insuficiência da prova incriminatória arrolada pela Entidade Acusadora, daí que é compreensível o raciocínio do Tribunal recorrido na formação da sua livre convicção sobre os factos, o que levou esse próprio Tribunal a afirmar o seguinte, em chinês, na fundamentação fáctica probatória da decisão recorrida: “o facto de não se conseguir dar por provada a inexistência da relação laboral entre os dois arguidos não representa que entre os dois arguidos exista relação laboral”, afirmação essa, tecida no segundo parágrafo da página 10 do texto decisório recorrido (a fl. 506v), que resumiu, aliás, o resultado do julgamento dos factos feito pelo Tribunal recorrido, segundo o qual a prova oferecida pela Entidade Acusadora, por não ser bastante, não consegue fazer comprovar a (acusada) inexistência da relação laboral entre os dois arguidos, mas a falta de comprovação, por insuficiência da prova da Acusação, da inexistência da relação laboral entre os dois arguidos não implica a comprovação da existência dessa relação laboral (porque no caso a Defesa não conseguiu fazer comprovar a existência efectiva dessa relação).
Quer dizer, e mais resumidamente falando agora, para o Tribunal recorrido, o Ministério Público acusador, a despeito dos meios de prova por si arrolados, não preencheu o ónus da prova, que sobre si recaía, da inexistência da relação laboral entre os dois arguidos.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar não provido o recurso.
Sem custas no presente recurso, dada a isenção subjectiva do Ministério Público.
Comunique a presente decisão (com cópia do acórdão recorrido) ao Fundo de Segurança Social.
Macau, 11 de Julho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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