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Processo nº 320/2019 Data: 18.07.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “abuso de confiança”.
Elementos típicos.
Pena.
Atenuação especial.



SUMÁRIO

1. Provado estando que o ofendido depositou dinheiro na conta pelo arguido detida na sala VIP do casino referenciado nos autos (para posteriormente o “levantar” e com ele fazer apostas no jogo), e que, o dito arguido, agindo livre e voluntariamente, “apoderou-se” do dito dinheiro, fazendo-o seu, (nem o devolvendo quando para tal solicitado), bem sabendo que proibida e punida era a sua conduta, “consumado” está o crime de “abuso de confiança” porque verificados todos os seus elementos típicos.

2. Tendo o arguido efectuado a devolução do dinheiro em momento anterior à audiência de julgamento, adequada é a atenuação especial da pena ao abrigo do art. 201° e 67° do C.P.M..

O relator,
______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 320/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), arguido com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado como autor da prática de 1 crime de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 4, al. b), 196°, al. b), 201°, n.° 1, 66°, n.° 3 e 2, al. c) e 67° do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos; (cfr., fls. 319 a 329 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “errada aplicação do direito”, pedindo a sua absolvição, e, subsidiáriamente, a redução da pena; (cfr., fls. 336 a 341-v).

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Em Resposta e douto Parecer admite o Ministério Público a redução da pena; (cfr., fls. 343 a 351-v e 360 a 360-v).

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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 321 a 322-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor da prática de 1 crime de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 4, al. b), 196°, al. b), 201°, n.° 1, 66°, n.° 3 e 2, al. c) e 67° do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos.

Assaca ao Acórdão recorrido o vício de “errada aplicação do direito” no que toca à “qualificação jurídico-penal” da sua conduta, pedindo a sua absolvição, e, subsidiariamente, a redução da pena.

–– Vejamos, começando, como é lógico, pela primeira questão.

Nos termos do art. 199° do C.P.M.:

“1. Quem se apropriar ilegitimamente de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O procedimento penal depende de queixa.
4. Se a coisa referida no n.º 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5. Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”.

Abordando idêntica questão à ora em apreciação teve já este T.S.I. oportunidade de consignar que “constituem elementos do crime de “abuso de confiança”:
- o recebimento de dinheiro ou outra coisa móvel por título que produza para aquele que recebe a obrigação de restituir a mesma coisa ou um valor equivalente, ou aplicá-la a um uso, trabalho ou emprego determinado;
- o descaminho (desvio ilícito do caminho devido, do fim prescrito) ou a dissipação (gasto ilícito daquilo que deve conservar-se) por parte do que recebe;
- o prejuízo (ou possibilidade de prejuízo) para o proprietário, possuidor ou detentor da coisa entregue; e, óbviamente,
- o dolo, no sentido de que o agente saiba que deve restituir, apresentar ou aplicar a certo fim a coisa que tem em seu poder, e que queira descaminhá-la ou dissipá-la, prevendo que deste descaminho ou dissipação resultará um prejuízo para o proprietário, possuidor ou detentor da coisa entregue”; (cfr., v.g., o Ac. de 06.06.2002, Proc. n.° 45/2002 e outras decisões aí citadas).

Como nota L. Henriques:

“A conduta materializa-se numa apropriação ilícita, que se consubstancia na inversão do título, entendido este como a fonte (qualquer que seja) de que deriva a obrigação de restituir ou de dar à “coisa” um certo destino: a “coisa” é entregue ao agente por título lícito, com uma determinada destinação e depois (ou ao mesmo tempo) esse mesmo agente “desvia” ilicitamente a coisa de tal destinação, conduzindo-a para a sua esfera patrimonial, com o propósito de com ela se locupletar.
Temos aqui, portanto, uma inversão do caminho que o proprietário da “coisa” traçou para ela, a qual, para o efeito, passa licitamente das mãos do dono para as mãos do agente, que, por acto ilícito seu, lhe dá outro rumo, encaminhando-a para o seu próprio domínio.
Ou seja: à licitude da entrega da “coisa” para uma determinada finalidade, no interesse do dono, segue-se a ilicitude do seu desvio para uma finalidade diferente, no interesse do desviante.
É nisto, dito em parcas palavras, que consiste a inversão do título de entrega, que alterou o destino da “coisa” contra a vontade do respectivo dono.
O que exige – e nisso a lei é meridianamente clara – é que, por via da “entrega” da “coisa”, o agente fique investido de um poder sobre ela que lhe dê a possibilidade de a desencaminhar ou dissipar, não se tornando, portanto, necessário um prévio acto material de entrega.
Ora, ao inverter tal destinação ou finalidade, praticando factos que inequivocamente demonstram que é seu propósito fazer com que a “coisa” passe para a sua esfera de domínio, o agente assume a condição de proprietário dela, isto é, apropria-se dela, nesse momento consumando o ilícito”; (cfr., in “Anot. e Com. ao C.P.M.”, Vol. IV, pág. 71 e 72).

Ou, como se considerou no recente Ac. da Rel. do Porto de 15.05.2019, (Proc. n.° 73/14):

“O elemento central da tipicidade do crime de abuso de confiança é a apropriação de «coisa móvel» que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade; o núcleo da acção típica situa-se, assim, na apropriação, ut domini, afectando a confiança com base na qual a «coisa móvel» havia sido entregue; a apropriação é a actuação que revela, externa e materialmente, a inversão do título de posse que constitui o momento essencialmente relevante para a integração dos elementos e para a consumação do crime, sendo a intenção que exista anteriormente à inversão do título de posse tipicamente irrelevante.
O crime de abuso de confiança pressupõe, pois, a quebra da «relação de fidúcia» que intercede entre o agente e o proprietário da coisa e entre o agente e a própria coisa (…). Elemento, pois, da essencialidade típica é a apropriação; o agente tem que fazer sua a coisa, passando a atuar uti domini, como se fosse o verdadeiro proprietário a que terá de acrescer o dolo, a intenção de não querer restituir. A apropriação tem que ser "para si"; mesmo que o agente dê a coisa gratuitamente a outra pessoa, tem que haver um momento, ao menos lógico, em que o agente se apropria da coisa (cfr., v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, de 24 de Março de 2004, proc. 2142/03, e de 10 de Março e 2004, proc.216/04).
Por isso, a prova da apropriação deve ser de tal modo que revele exteriormente a intenção de atuar uti domini, supondo, em caso de coisa de máxima fungibilidade como é o dinheiro e em situações de preexistência de relação contratualmente formatada, a exteriorização de comportamentos que se afastem manifestamente do domínio ainda próximo das disfunções de cumprimento e mora, e revelem, claramente, que a confundibilidade patrimonial e a utilização de quantias monetárias ocorram com a plena e determinada intenção de não restituir. (…)”.

No caso dos autos, cremos que evidente é que verificados estão todos os elementos típicos (objectivos e subjectivos) do crime pelo qual foi o arguido, ora recorrente, condenado.

Com efeito, provado está que o ofendido depositou dinheiro na conta pelo arguido detida na sala VIP do casino referenciado nos autos (para posteriormente o “levantar” e com ele fazer apostas no jogo), e que, o dito arguido, agindo livre e voluntariamente, “apoderou-se” do dito dinheiro, fazendo-o seu, (nem o devolvendo quando para tal solicitado), bem sabendo que proibida e punida era a sua conduta.

Assim, claro cremos que está que “consumado” foi o crime em questão e que censura não merece o decidido no que toca à qualificação jurídico-penal da conduta do arguido, ora recorrente.

–– Quanto à “pena”.

Tendo o arguido acabado por efectuar – posteriormente, mas antes da audiência – a “devolução” de todo o dinheiro ao ofendido, accionou – e bem – o T.J.B., o estatuído no art. 201° do C.P.M., atenuando-lhe especialmente a pena, e condenando-o, como se viu, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos.

Ponderando na factualidade dada como provada, (sendo o arguido primário), tendo presente o montante pecuniário em questão, (que ascende a 1 milhão), atentas as necessidades de prevenção criminal, e tendo presente a moldura penal aplicável, (pena de 1 mês a 5 anos e 4 meses de prisão), e os critérios do art. 40° e 65° do C.P.M., afigura-se-nos mais justa e adequada uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, mantendo-se, porém, o período de suspensão da execução da pena.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso.

Custas do decaimento pelo arguido, com a taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 18 de Julho de 2019

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong

(Segunda Juiz-Adjunta)
Fong Man Chong
Proc. 320/2019 Pág. 12

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