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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Man Tou e Jason Chao Teng Hei avisaram o Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP), em 12 de Setembro de 2019, que pretenderam realizar reuniões em 18 de Setembro, em 27 de Setembro e em 4 de Outubro de 2019, nas Praças do Tap Seac e da Amizade, respectivamente.
Em 15 de Setembro de 2019, o Senhor Comandante do CPSP tomou decisão no sentido de não permitir a realização das actividades acima referidas.
Dessa decisão, vieram Man Tou e Jason Chao Teng Hei (adiante designados por recorrentes), ao abrigo do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M, interpor recurso para o Tribunal de Última Instância, apenas na parte em que aquela não permitiu a realização das reuniões de 27 de Setembro e de 4 de Outubro de 2019, e não na parte referente à reunião de 18 de Setembro.
Posteriormente, os recorrentes modificaram o objecto do recurso, afirmando expressamente que o mesmo incide apenas sobre a parte do despacho recorrido que não permitiu a realização da reunião de 4 de Outubro.
Devidamente citada, respondeu a entidade recorrida, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do despacho recorrido.

2. Factos
Conforme os elementos constantes dos autos, são considerados provados os seguintes factos:
- Os recorrentes avisaram o Senhor Comandante do CPSP, em 12 de Setembro de 2019, que pretenderam realizar reuniões em 18 de Setembro, em 27 de Setembro e em 4 de Outubro de 2019, nas Praças do Tap Seac e da Amizade, respectivamente.
- O objecto das reuniões é: “Exortar que os órgãos policiais das diversas regiões (sobretudo os de Hong Kong) se observam rigorosamente a Convenção contra a Tortura, e que não utilizem forças que constituam “tortura” proibida no artigo 1.º e “tratamentos … cruéis, desumanos…….” proibidos no artigo 16.º da Convenção, contra os manifestantes pacíficos e os indivíduos que estiverem privado da liberdade.”
- O Senhor Comandante do CPSP proferiu, em 15 de Setembro de 2019, o seguinte despacho, no sentido de não permitir a realização das actividades acima referidas:
Corpo de Polícia de Segurança Pública
Despacho n.º 059/DOC/2019

O aviso prévio das reuniões e manifestações apresentado pelos cidadãos de Macau, Man Tou e Jason Chao Teng Hei, a esta Corporação em 12 de Setembro de 2019 (recibo n.º 11560/2019/CZN) consta o seguinte teor:

Tema das reuniões: Exortar que os órgãos policiais das diversas regiões (sobretudo os de Hong Kong) se observam rigorosamente a Convenção contra a Tortura, e que não utilizem forças que constituam “tortura” proibida no artigo 1.º e “tratamentos … cruéis, desumanos…” proibidos no artigo 16.º da Convenção, contra os manifestantes pacíficos e os indivíduos que estiverem privados da liberdade

(1) Local: Praça do Tap Seac
Data: 18 de Setembro de 2019
Hora: 18H30 – 18H50
N.º de participantes: 15
Materiais ou objectos a serem utilizados: cartazes (segurado à mão)
(2) Local: Praça da Amizade
Data: 27 de Setembro e 4 de Outubro
Hora: 18H30 – 18H50
N.º de participantes: 15
Materiais ou objectos a serem utilizados: cartazes (segurado à mão)

Face ao mencionado aviso prévio, esta Corporação vem por este meio responder aos promotores o seguinte:

I – Análise do conteúdo constante no aviso prévio:
1. A fim de melhor compreender o objectivo e o pedido, bem como a intenção dos promotores, foi convidado um dos promotores, Jason Chao Teng Hei, para deslocar a esta Corporação em 13 de Setembro de 2019 pelas 17H15 para prestar o respectivo esclarecimento. Finalmente, o promotor considerou que não havia necessidade de alterar o respectivo tema.
2. Alguns dos indivíduos de Hong Kong opuseram o assunto de alteração da Lei de Extradição, desde a manifestação de grande envergadura organizada no dia 9 de Junho até hoje, houve pelo menos várias actividades de grande volume foram realizadas em consequência do referido assunto, em que alguns manifestantes radicais cometeram uma série de violação graves, incluindo pintar o emblema nacional, insultar a bandeira nacional, destruir a Assembleia Legislativa e as instalações do MTR, cercar e destruir os Postos Policiais e o Comando da Polícia, atacar os agentes policiais em serviço, sequestrar e atacar alguns cidadãos, praticar actos de fogo posto, destruir propriedades públicas, paralisar o tráfego rodoviário, organizar manifestações ilegais, possuir armas ofensivas, destruir os lares, escritórios dos deputados e lojas, etc.; conforme denunciado pelos orgãos de comunicação social, até presente, mais de 1000 pessoas foram detidas e suspeitas em cometer actos ilegais e mais de 700 pessoas feridas. Este grande número de factos ilegais não só impactam gravemente o estado de direito em Hong Kong, e actos estes desconsideram a segurança da vida e da propriedade de outros, resultando uma destruição da sociedade e causando a impossibilidade do funcionamento efectivo da sociedade, afectando gravemente o estado de direito e a vida da população.
3. Partes dos manifestantes radicais pintaram o emblema regional de Hong Kong, rasgaram e queimaram a Lei Básica, cercaram o edifício do Gabinete de Ligação do Governo Popular da Central na RAEHK, pintaram o emblema nacional, escreveram palavras que insultam o País e a Nação e deitaram a bandeira da RPC para o mar, alguns deles ainda por cima usaram os slogans de “Restaurar Hong Kong” e “Era da Revolução”; os respectivos actos violam gravemente a Lei da Bandeira Nacional da RPC e os Regulamentos sobre a Bandeira e o Emblema Nacional da RAEHK, bem como ofendem a dignidade do País e da Nação, desafiando a Lei Básica, o princípio de “Um País, dois Sistemas”, tudo com natureza bastante grave e impacto muito ruim.
4. Durante o mencionado caso sobre a oposição à alteração da Lei de Extradição, os incidentes ilegais se ocorreram frequentemente, e durante as recuperações repetidas à ordem pública prestadas por parte da Polícia de Hong Kong, partes dos manifestantes radicais utilizaram ferramentas ou armas de grande letalidade, como arcos e flechas, bombas de gasolina, atiro de bolas de aço, líquidos corrosivos, pó tóxico, galhos de ferro, tijolos, etc. para atacar os agentes policiais, destruir os veículos policiais e várias instalações policiais, bem como o Comando. Até presente, já houve no total cerca de 200 agentes policiais feridos durante estas manifestações, incluindo fracturas, dedos quebrados e ossos faciais fracturados, ainda houve cerca de 15 agentes policiais necessitam de tratamento hospitalar de lesões oculares causados por “laser” de alta potência. Os actos ilegais dos manifestantes desafiaram o estado de direito, desafiaram a Polícia e afectaram gravemente os normais serviços prestados pela Polícia à população, bem como o combate contra os demais actos criminosos.
5. Ao mesmo tempo, durante o assunto contra à alteração da Lei de Extradição foram organizado várias vezes campanhas não-cooperativas, incluindo o bloqueio de edifícios fiscais para impedir o público no tratamento das formalidades fiscais, o bloqueio do MTR durante o horário de pico para impedir os cidadãos no deslocamento ao serviço, as reuniões/manifestações ilegais no aeroporto que provocaram um numeroso cancelamento de vôo, etc., conduzindo assim a emissão da ordem de restrição provisória pelo Tribunal para proibir que alguém se obstrua ou se interfere ilegalmente e intencionalmente o normal funcionamento do Aeroporto Internacional de Hong Kong; e partes dos manifestantes indicaram claramente que o objectivo dessas acções é derrubar a economia de Hong Kong, a fim de forçar o Governo em responder as suas demandas. Actos estes não só causaram prejuízos económicos significativos para Hong Kong, mas também dificultaram gravemente a vida normal da população e privaram os direitos fundamentais dos cidadãos, influenciando gravemente a base da estabilidade da sociedade.
6. Os manifestantes perturbaram várias vezes o funcionamento do aeroporto, destruíram as instalações do MTR, provocando assim a interrupção do funcionamento dos importantes transportes colectivos, como o aeroporto e o MTR; os manifestantes até lançaram objectos nas pistas, colocando assim um grande perigo para os passageiros, e que poderá causar grande número de feridos e de mortes.
7. Os promotores pretendem organizar as reuniões com o tema “Exortar que os órgãos policiais das diversas regiões (sobretudo os de Hong Kong) se observam rigorosamente a Convenção contra a Tortura, e que não utilizem forças que constituam “tortura” proibida no artigo 1.º e “tratamentos … cruéis, desumanos….” proibidos no artigo 16.º da Convenção, contra os manifestantes pacíficos e os indivíduos que estiverem privado da liberdade” no dia 18 de Setembro de 2019 na Praça do Tap Seac e nos dias 27 de Setembro e 4 de Outubro na Praça da Amizade, cujo o assunto envolve objectivamente a ideia em que a Polícia de Hong Kong provavelmente ter usado ou preparado para usar a tortura e tratamentos cruéis e desumanos contra os manifestantes, todavia, até hoje, a força usada pela Polícia de Hong Kong não foi provada ou confirmada pelas quaisquer das autoridades, órgãos competentes de supervisão da Região Administrativa Especial de Hong Kong a ser uma força excessiva, muito menos relacionada com a tortura e tratamentos cruéis e desumanos referidos pelos promotores. Por outro lado, o Tribunal de Hong Kong tomou decisões judiciais claras sobre alguns dos manifestantes suspeitos de crimes e dos detidos, tais como recusar fiança, manter em prisão enquanto aguarda o julgamento, e emitiu ordem de restrição provisória para proibir a realização de reuniões/manifestações em determinadas zonas do aeroporto, etc..
8. Isto quer dizer que, a implicação objectiva deste tema refere que as autoridades policiais de Hong Kong provavelmente ter usado ou preparado para usar a tortura e tratamentos cruéis e desumanos contra as pessoas, é uma alegação injustificada e não fundamentada às autoridades policiais, porque não há nenhuma base factual para que os promotores apresentarem o tal assunto proposto. Além disso, esta ideia objectivamente implícita, que é enganosa e perturbadora para as pessoas se acreditem que a Polícia de Hong Kong ou de Macau terem usado ou estavam preparado para usar a tortura contra os cidadãos, mas só que não existe nenhum facto para provar a mencionada alegação.
9. As reuniões e manifestações em causa são susceptíveis de provocar contramanifestações, constituem uma grave ameaça para a segurança pública, põem-se em perigo a ordem pública e o bem-estar social, e também um grande impacto para a política, a economia e a vida da população de Macau.
10. Embora o Sr. Jason Chao Teng Hei prestou o respectivo esclarecimento sobre o tema e o objectivo das reuniões/manifestações pretendidas a organizar, mas ainda não foi capaz de esclarecer a mencionada análise feita. O tema das referidas reuniões é claramente uma violação ao princípio da boa-fé e é um abuso de direito à manifestação conferido pela Lei, não é realmente o uso do direito à crítica, sendo assim, as referidas reuniões pretendidas pertencem a reuniões e manifestações não permitidas, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação) de 17 de Maio alterado pela Lei n. º 11/2018.

II – Decisão desta Corporação:
1. Face ao exposto, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação) de 17 de Maio alterado pela Lei n. º 11/2018, esta Corporação tomou decisão de não permitir a realização das reuniões/manifestações requeridas;
2. Aqueles que violam o presente despacho em organizar reuniões ou manifestações, vão ser punido provavelmente com o crime de desobediência qualificada, nos termos do artigo 14.º da Lei n.º 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação) de 17 de Maio alterado pela Lei n.º 11/2018.

III – As organizações promotoras/os promotores podem interpor recurso para o Tribunal de Última Instância, nos termos do artigo 12.º da Lei do Direito de Reunião e de Manifestação.

O Comandante,
Leong Man Cheong
Superintendente-Geral
15 de Setembro de 2019

3. Direito
Entendem os recorrentes que o despacho recorrido enferma dos vícios da ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental, da violação da lei e da falta de fundamentação.
É de notar, desde logo, que tem sido entendimento uniforme deste tribunal que o recurso previsto no art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M é um meio processual de plena jurisdição, e não um recurso de mera anulação.

Comecemos pela questão de verificação, ou não, da falta de fundamentação no despacho recorrido.
Nos termos do art.º 6.º, n.º 1 da Lei n.º 2/93/M, “Se, por força do artigo 2.º, a reunião ou manifestação não for permitida, o comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública assim o comunicará por escrito, com expressa invocação das respectivas razões justificativas”.
Dispõe o art.º 2.º da Lei n.º 2/93/M que, “Sem prejuízo do direito à crítica, não são permitidas as reuniões ou manifestações para fins contrários à lei”.
Como se sabe, a entidade administrativa deve sempre fundamentar a sua decisão nos termos da lei.
Nos termos dos art.º 114.º e 115.º do Código do Procedimento Administrativo, deve a entidade administrativa fundamentar os seus actos administrativos, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão. Equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
A fundamentação do acto administrativo deve permitir a um destinatário normal reconstituir o iter cognoscitivo e valorativo do autor do mesmo acto.
No caso ora em apreciação, cremos que o acto impugnado está devidamente fundamentado, permitindo completamente aos destinatários perceber a sua racionalidade.
Os recorrentes alegaram expressamente na sua motivação: “O despacho recorrido não permitiu a realização das reuniões pretendidas pelos recorrentes, com base nos seguintes fundamentos: (1) Não há nenhum órgão de poder ou de supervisão da RAEHK que confirme ou reconheça o emprego da força excessiva pela Polícia de HK; (2) Não há base factual que sustente o sentido do tema invocado pelos promotores, sendo este um tema enganoso; (3) As reuniões podem causar contra-manifestação, ameaçando a segurança pública; (4) O tema das reuniões viola o princípio da boa fé, bem como se apresenta um abuso do direito de reunião e não um exercício do direito à crítica.” Daí decorre que os recorrentes sabem perfeitamente os motivos por que a entidade recorrida não permitiu a realização das reuniões.
Além disso, o Senhor Comandante do CPSP indicou expressamente no despacho que “as referidas reuniões pretendidas pertencem a reuniões e manifestações não permitidas, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação) de 17 de Maio alterado pela Lei n.º 11/2018”, e analisando as circunstâncias do caso, tomou a decisão de não permitir a realização das reuniões/manifestações, ao abrigo do referido art.º 2.º.
Como o Senhor Comandante do CPSP fundamentou, no despacho recorrido e nos termos da lei, a sua decisão de não permissão das reuniões e manifestações, não se vislumbra o vício da falta de fundamentação invocado pelos recorrentes.
Se alguém não se conformar com os fundamentos da decisão, já não está em causa o vício de falta de fundamentação, mas sim a questão que toca ao mérito do recurso.

Alegam ainda os recorrentes que o despacho recorrido ofendeu o conteúdo essencial do direito fundamental e violou a lei.
Nos termos do art.º 4.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, “A Região Administrativa Especial de Macau assegura, nos termos da lei, os direitos e liberdades dos residentes da Região Administrativa Especial de Macau e de outras pessoas na Região”.
E o art.º 27.º estipula expressamente que os residentes de Macau gozam da liberdade de reunião, de desfile e de manifestação.
A Lei n.º 2/93/M regula especialmente o exercício dos direitos de reunião e de manifestação.
É inquestionável que os direitos de reunião, de desfile e de manifestação são direitos fundamentais conferidos aos residentes de Macau pela Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, sendo também garantidos pela Lei n.º 2/93/M.
Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau “não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei” (art.º 40.º, n.º 2 da Lei Básica), e o exercício dos direitos de reunião e de manifestação “apenas pode ser restringido, limitado ou condicionado nos casos previstos na lei” (art.º 1.º, n.º 3 da Lei n.º 2/93/M).
A restrição ou limitação legal do exercício dos direitos de reunião e de manifestação inclui a não permissão da reunião e manifestação para fins contrários à lei (art.º 2 da Lei n.º 2/93/M).
Por outras palavras, mesmo que se trate de um direito fundamental de que gozam os residentes de Macau, o seu exercício não é absoluto nem de todo em todo ilimitado. O legislador atribui às autoridades competentes o poder de restringir, nos casos previstos na lei, os direitos de reunião e de manifestação.
É claro que, tal como os recorrentes afirmaram nas suas alegações invocando o parecer da Assembleia Legislativa, ao aplicar a Lei n.º 2/93/M, “se deverá realizar uma ponderação cuidada, razoável e equilibrada entre a relevância dos interesses que se encontram em jogo em cada caso concreto, atendendo à necessidade de se respeitar fielmente o princípio da proporcionalidade, sempre que esteja em causa a limitação do exercício de um direito fundamental, como acontece no direito de reunião ou de manifestação. As restrições aos direitos fundamentais dos particulares apenas são válidas quando tenham a menor amplitude possível e se reduzam ao estritamente necessário para a tutela doutros interesses jurídicos de suficiente relevo.” (cfr. Parecer n.º 2/III/2008 apresentado pela 3.ª Comissão Permanente na apreciação da Proposta da Lei n.º 16/2008, que introduziu alterações à Lei n.º 2/93/M).
Pronunciando-se sobre a necessidade de limitar o exercício de certos direitos fundamentais no caso de conflito entre diferentes direitos ou valores fundamentais tutelados pela Constituição, entende o Professor Vieira de Andrade que o exercício de direitos fundamentais só pode ser limitado quando se pretende salvaguardar outro valor ou interesse igualmente tutelado pela Constituição.1
No presente caso, o objecto das reuniões em causa é: “Exortar que os órgãos policiais das diversas regiões (especialmente os de Hong Kong) se observam rigorosamente a Convenção contra a Tortura, e que não utilizem forças que constituam “tortura” proibida no artigo 1.º e “tratamentos…cruéis, desumanos…” proibidos no artigo 16.º da Convenção, contra os manifestantes pacíficos e os indivíduos que estiverem privados da liberdade.”
Entende o despacho recorrido que as reuniões em causa são reuniões e manifestações não permitidas previstas no art.º 2.º da Lei n.º 2/93/M, na medida em que o seu tema “é claramente uma violação ao princípio da boa-fé e é um abuso de direito à manifestação conferido pela Lei, não é realmente o uso do direito à crítica”.
Constata-se do despacho recorrido que a entidade recorrida partiu da conjuntura política e social actual para proceder à análise do aviso prévio de reunião apresentado pelos recorrentes (cfr. os pontos 2 a 9 da “Análise do conteúdo constante no aviso prévio”) e acabou por decidir não permitir a realização das reuniões.
Foram testemunhadas por todos, as cenas sucessivamente ocorridas em Hong Kong ao longo dos últimos meses, referidas no despacho recorrido para onde remetemos, incluindo as diversas reuniões e manifestações realizadas desde a revisão à Lei de Extradição e as diversas actividades ilegais e criminosas que ameaçaram seriamente o estado de direito em Hong Kong, afectaram gravemente a vida da população e prejudicaram a segurança pública, havendo manifestantes radicais que até pintaram e mancharam os emblemas da República Popular da China e da Região Administrativa Especial de Hong Kong, insultaram a bandeira nacional, rasgaram e queimaram a Lei Básica, etc., actos esses que constituem desafio grave à linha de base do princípio "um país, dois sistemas" e à Lei Básica, e insulto flagrante à dignidade nacional.
Nestes contextos, é claro que a Polícia de Hong Kong deve, de acordo com a lei, tomar medidas necessárias, assegurar a segurança pública e restaurar a ordem pública.
Tal como indicou a entidade recorrida no seu despacho, até hoje, não há ainda qualquer das autoridades ou órgãos de supervisão competentes da Região Administrativa Especial de Hong Kong a considerar provado ou confirmar que a Polícia de Hong Kong tenha usado força excessiva, muito menos tenha tratado os manifestantes com a tortura ou com forma cruel e desumana.
Na verdade, o que os recorrentes pretendem, no fundo, é, sob o pretexto de exortar que os órgãos policiais das diversas regiões se observam rigorosamente a Convenção contra a Tortura e que não utilizem forças que configura tortura ou tratamentos cruéis, desumanos, acusar e condenar a Polícia de Hong Kong de ter usado, de forma generalizada, a tortura e tratamentos cruéis, desumanos contra os manifestantes.
O objecto das reuniões apresentado pelos recorrentes consiste, no fundo, em acusar publicamente o órgão policial da RAEHK de ter usado força que configura “tortura” e “outros tratamentos … cruéis, desumanos …”, proibidos pela respectiva Convenção, contra manifestantes pacíficos e indivíduos privados de liberdade, visto que, não obstante a expressão utilizada no aviso prévio para reunião - “exortar que os órgãos policiais de diversas regiões (sobretudo os de Hong Kong)”, com intenção de encobrir sob a expressão “os órgãos policiais de diversas regiões” aquele sujeito específico e único que estavam a referir, isto é, a polícia da RAEHK, sempre se apercebe do verdadeiro objecto dessa manifestação, tendo em conta a referência explícita e enfática “sobretudo os de Hong Kong” utilizada pelos recorrentes, a documentação relativa à notícia redigida em português intitulada “Hong Kong: reveladas detenções arbitrárias, espancamentos brutais e tortura em detenção policial” que os recorrentes apresentaram especialmente a este Tribunal no dia 23 de Setembro de 2019, e o facto de todos saberem dos diferentes protestos violentos ocorridos na RAEHK ao longo dos últimos meses. A isso acresce que, apesar de os recorrentes terem mencionado expressamente nos artigos 72, 74 e 75 da página 13 da petição do recurso 16 países ou regiões referidos pelos média, Amnistia Internacional e agências independentes dos Estados Unidos, onde se suspeita ter havido violência policial, nomeadamente o Canadá, a França, a Alemanha, os Estados Unidos e Portugal, além de terem indicado, em especial, que “nos Estados Unidos, foi ainda criada, por alguma entidade independente, uma base de dados sobre os casos de mortes decorrentes de intervenções policiais e as acções judiciais intentadas em resultado de intervenções indevidas”, só que estes países ou regiões não foram colocados entre os parênteses (sobretudo ...), onde apenas se encontra a Polícia de Hong Kong. Assim, quer a intenção dos recorrentes, quer o conteúdo dos documentos juntos aos autos, quer ainda o conhecimento que a população tem sobre o assunto, tudo revela, sem margem para dúvidas, que o que os recorrentes pretendem, através da reunião ou manifestação que projectam realizar, é acusar, de forma pública, a Polícia de Hong Kong de ter usado, de forma genérica e contra os manifestantes, força que configura “tortura” e “tratamentos cruéis, desumanos”, que são proibidos pela respectiva Convenção.
É de reiterar que, até ao presente momento, nenhum órgão de poder público legalmente estabelecido de Hong Kong qualificou alguma das acções da Polícia desta Região como as imputadas pelos recorrentes. Pelo contrário, segundo os dados divulgados pela Polícia de Hong Kong, até recentemente, foram detidos mais de mil manifestantes, e dezenas foram acusadas pela prática do crime de tumultos.
Se a Polícia de Macau permitisse a realização da reunião, seria muito provável que a sua decisão fosse interpretada no sentido de que ela concordou com a imputação feita pelos recorrentes em relação à Polícia de Hong Kong, entendendo que a Polícia de Hong Kong usou, de forma generalidade, tortura e tratamentos cruéis e desumanos contra os manifestantes. Ademais, haveria ainda o risco de dar a entender que ela interferiu, de forma dissimulada, na qualificação das actuações e reacções do órgão policial da RAEHK às manifestações violentas, tarefa essa que compete na realidade aos órgãos judiciais e de supervisão policial da RAEHK.
E o mais importante é que a RAEM não pode violar o princípio fundamental constitucional da Região Administrativa Especial, nem interferir nos assuntos internos da RAEHK.
Como se sabe, a criação das Regiões Administrativas Especiais de Macau e de Hong Kong e os seus regimes foram com base nas respectivas disposições da Constituição da República Popular da China, que estipula no seu art.º 31.º o seguinte: “O Estado pode criar regiões administrativas especiais sempre que necessário. Os regimes a instituir nas regiões administrativas especiais deverão ser definidos por lei a decretar pelo Congresso Nacional Popular à luz das condições específicas existentes”, e consagra no seu art.º 62.º: “O Congresso Nacional Popular exerce as seguintes funções e poderes:…13.º Deliberar sobre a criação de regiões administrativas especiais e dos respectivos sistemas de organização.” Ao abrigo destas normas, o Congresso Nacional Popular elaborou e aprovou, respectivamente, a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (31 de Março de 1993) e a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Hong Kong (4 de Abril de 1990).
Nos termos das duas Leis Básicas, as Regiões Administrativas Especiais de Macau e de Hong Kong ficam directamente subordinadas ao Governo Popular Central, exercem um alto grau de autonomia e gozam de poderes de gestão administrativa, legislativo, judicial independente e de julgamento em última instância (art.ºs 1.º, 2.º e 12.º da Lei Básica de Macau, art.ºs 1.º, 2.º e 12.º da Lei Básica de Hong Kong); os órgãos executivos e os órgãos legislativos das Regiões Administrativas Especiais são compostos por residentes permanentes das respectivas Regiões (art.º 3.º da Lei Básica de Macau, art.º 3.º da Lei Básica de Hong Kong); nas Regiões Administrativas Especiais não se aplicam o sistema e as políticas socialistas, mantendo-se inalterados durantes 50 anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes (art.º 5.º da Lei Básica de Macau, art.º 5.º da Lei Básica de Hong Kong); nenhuma repartição do Governo Popular Central, província, região autónoma ou cidade directamente subordinada ao Governo Popular Central pode interferir nos assuntos que as Regiões Administrativas Especiais administram, por si própria, nos termos da Lei Básica (art.º 22.º da Lei Básica de Macau, art.º 22.º da Lei Básica de Hong Kong). As disposições acima mencionadas e as demais disposições das duas Leis Básicas consagram, respectivamente, uma séria de princípios fundamentais constitucionais atinentes à Região Administrativa Especial de Macau e à Região Administrativa Especial de Hong Kong, assegurando desta forma que as duas Regiões Administrativas Especiais administram, por si próprios, os seus assuntos internos, dando implementação a “um país dois sistemas”, “Macau governada pelas suas agentes”, “Hong Kong governada pelas suas agentes” e alto grau de autonomia. É inquestionável que estes princípios fundamentais constitucionais, por estarem radicados na Constituição da República Popular da China e nas duas Leis Básicas das Regiões Administrativas Especiais – leis nacionais que foram elaboradas, aprovadas e promulgadas pelo Congresso Popular Nacional, têm eficácia em toda a República Popular da China. Um dos princípios fundamentais constitucionais consiste em que os órgãos de poderes executivo, legislativo e judicial, bem como os demais organismos do poder político das duas Regiões Administrativas Especiais de Macau e de Hong Kong não podem interferir mutuamente nos assuntos que a outra administra, por si própria e nos termos da respectiva Lei Básica; não podem estas interferir nos assuntos que as províncias, regiões autónomas ou cidades directamente subordinadas ao Governo Popular Central administram, por si própria, nos termos da Constituição e vice-versa; não podem, muito menos, violar todos os poderes de que o Governo Central goza sobre as duas Regiões Administrativas Especiais nos termos da Constituição e das Leis Básicas. Os órgãos executivos, legislativos e judiciais da RAEM, ao exercerem as suas funções nos termos da lei, não podem violar o mencionado princípio fundamental constitucional das Regiões Administrativas Especiais.
Tal como se referiu, ao limitar o exercício dos direitos fundamentais, tais como os direitos de reunião e de manifestação, deverá a entidade competente realizar uma ponderação cuidada, razoável e equilibrada sobre a relevância dos interesses que se encontram em jogo em cada caso concreto.
Em comparação com os direitos de reunião e de manifestação dos residentes de Macau, a salvaguarda do mencionado princípio fundamental constitucional da RAEM é sem dúvida um interesse jurídico de maior importância. As autoridades competentes de Macau, ao exercerem a competência atribuída pela Lei n.º 2/93/M, não podem, em violação a este princípio fundamental constitucional, permitir ou criar plataforma para permitir que qualquer organismo ou entidade ou grupo intervenha nos poderes da RAEHK de administrar, por si própria, os seus assuntos internos.
Para salvaguardar o princípio fundamental constitucional acima mencionado, podem as autoridades competentes de Macau, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 2/93/M, não permitir a realização de reunião e manifestação, com fundamento em que o fim da respectiva actividade é contrário à lei.
Por fim, é de salientar que, a realização da reunião pretendida pelos recorrentes não configura um mero exercício do direito à crítica. A crítica tem que basear-se em factos objectivos, isto é, tem que dirigir-se a factos efectivamente ocorridos, fazendo-se comentários e críticas sobre os mesmos. No entanto, tal como se referiu, até ao presente momento, nenhum órgão de poder ou de supervisão da RAEHK qualificou as acções da polícia de Hong Kong como uso excessivo da força, ou até como submissão dos manifestantes à tortura e tratamentos cruéis, desumanos. Com a realização da reunião, os recorrentes pretendem condenar publicamente a actuação da polícia de Hong Kong, o que excede largamente os limites da mera crítica.
Conclusão: Atendendo a que, o objecto da reunião que os recorrentes pretendem realizar, independentemente do título que lhe foi dado, é, no fundo, acusar e condenar publicamente os órgãos policiais de Hong Kong de ter usado, de forma generalizada e contra os manifestantes pacíficos e os indivíduos privados da liberdade, força que configura “tortura” e “outros tratamentos … cruéis, desumanos ...” proibidos pela respectiva Convenção, enquanto na realidade as autoridade competentes da RAEHK não só nunca qualificaram as actuações da Polícia como tal, como ainda apreenderam e acusaram os manifestantes violentos; nestas circunstâncias, se o CPSP da RAEM tivesse permitido a realização da reunião com o fim acima mencionado, estaria a permitir, de maneira pública, a criação de uma plataforma para interferir nos assuntos internos que a Região Administrativa Especial de Hong Kong administra por si própria, violando assim o princípio fundamental constitucional da Região Administrativa Especial acima referenciado.
Este fundamento, por si só, já é suficiente para suportar a decisão de não permissão da reunião pretendida, sem necessidade de entrar na análise dos outros fundamentos invocados no despacho recorrido.
Assim sendo, dada a ilegalidade do fim da reunião que se pretende realizar, não merece censura a decisão tomada pelo Comandante do CPSP ao abrigo do artigo 2.º da Lei n.º 2/93/M, no sentido de não permitir a realização da reunião.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça fixada em 2UC.

                Macau, 27 de Setembro de 2019
                
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima (vencido conforme declaração junta)

Declaração de voto
  
  Vencido. Mesmo que se entenda que a manifestação teria por finalidade a crítica à actuação recente das autoridades policiais de Hong Kong, afigura-se-me não constituir tal objecto fim contrário à lei, para efeitos do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 2/93/M, de 17 de Maio.
Macau, 27 de Setembro de 2019
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª edição, 2009, pag. 265 e seguintes.
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1
Processo n.º 94/2019