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Processo n.º 846/2019 Data do acórdão: 2019-10-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– crime de auxílio qualificado à imigração clandestina
– art.o 14.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004
– momento de obtenção do benefício da prática do crime
– restituição do preço de imigração clandestina
– consumação do crime
– desistência do crime
S U M Á R I O

1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. Para a verificação cabal do crime de auxílio qualificado, o art.o 14.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004 não exige que o momento da obtenção da vantagem patrimonial ou benefício material tenha que ser antes da conclusão do acto de transportação para Macau da pessoa imigrante clandestina.
3. O facto de restituição, pelo arguido, do preço de imigração clandestina à pessoa pagadora do mesmo no decorrer da perseguição pelo pessoal alfandegário de Macau não implica que ele só praticou o crime de auxílio qualificado na forma tentada, e não consumada. É que independentemente da indagação do demais, o preço de imigração clandestina em causa, no caso, foi pago voluntariamente a ele, pelo que no momento em que ele recebeu também voluntariamente esse preço, o mesmo preço já entrou no domínio efectivo dele. Praticou, pois, ele, de forma consumada, o crime de auxílio qualificado em relação àquela pessoa pagadora, o que preclude a sua tese da desistência já desse crime.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 846/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.o arguido B





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 272 a 280v do Processo Comum Colectivo n.° CR4-19-0090-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 1.o arguido A e o 2.o arguido B, aí já melhor identificados, ficaram condenados como co-autores materiais de três crimes consumados de auxílio (simples), p. e p. pelo art.º 14.º, n.o 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, e de um crime de auxílio qualificado, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 2, da mesma Lei, tendo o 1.o arguido sido condenado em três anos de prisão por cada um dos três crimes de auxílio (simples) e em cinco anos e seis meses de prisão pelo crime de auxílio qualificado, e finalmente, após feito o cúmulo jurídico dessas penas, em seis anos de prisão única, e, por outro lado, o 2.o arguido sido condenado em três anos e três meses de prisão por cada um dos três crimes de auxílio (simples) e em cinco anos e nove meses de prisão pelo crime de auxílio qualificado, e finalmente, em sede de cúmulo jurídico dessas penas, em seis anos e quatro meses de prisão única.
Inconformados, vieram os dois arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.o arguido alegou, em essência, o seguinte na motivação apresentada a fls. 295 a 301 dos presentes autos correspondentes:
– na audiência de julgamento, ele confessou a transportação dos quatro indivíduos para estes entrarem clandestinamente em Macau;
– no decurso de toda a audiência, não houve qualquer prova susceptível de provar que ele tinha sabido da existência de preço de transportação ou que ele tinha recebido ou ia receber vantagens por causa da sua conduta de transportação;
– e mesmo que houvesse a entrega de algum preço ao 2.o arguido, o próprio recorrente já teria consumado antes o acto de transportação;
– daí que deve ser convolado o crime de auxílio qualificado por que o recorrente vinha condenado em primeira instância para o crime de auxílio (simples), com consequente aplicação a este crime da igual pena de três anos de prisão, e depois com feitura de novo cúmulo jurídico das penas.
Enquanto o 2.o arguido invocou, no essencial, o seguinte na sua motivação de fls. 304 a 316 dos autos:
– como o preço de imigração clandestina, depois de ter sido entregue por um dos indivíduos imigrantes em causa ao próprio recorrente, foi, em algum instante depois, restituído pelo recorrente ao respectivo indivíduo pagador no decurso da perseguição levada a cabo pelo pessoal alfandegário contra o recorrente, o mesmo preço não deve ser considerado como já entrado na esfera do domínio estável do recorrente, pelo que não se deve considerar que o recorrente já tenha recebido o dito preço de imigração clandestina para efeitos incriminatórios do n.o 2 do art.o 14.o da Lei n.o 6/2004, devendo, pois, convolado o seu crime consumado de auxílio qualificado para um crime tentado de auxílio qualificado (em relação àquele indivíduo em causa), com todas as consequências legais daí advenientes em sede da medida da pena, ou ser configurada a verificação cabal da desistência, pelo recorrente, do referido crime de auxílio qualificado, nos termos previstos no art.o 23.o, n.o 1, do CP;
– e fosse como fosse, deveria ser reduzida a pena única de prisão do recorrente, atentas as circunstâncias do seu caso.
Aos recursos dos 1.o e 2.o arguidos, respondeu a Digna Delegada do Procurador respectivamente a fls. 319 a 321 e a fls. 322 a 324, no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 338 a 339v, pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 272 a 280v dos autos, cuja fundamentação fáctica, probatória e jurídica se dá por aqui integralmente reproduzida.
Segundo a factualidade aí dada por provada:
– em data não apurada, os dois arguidos e outros indivíduos de identidade desconhecida chegaram ao acordo, no sentido de caber ao 1.o arguido conduzir embarcação e de caber ao 2.o arguido ajudar a guiar a transportação, para transportar pessoas imigrantes clandestinas de Zhuhai para Macau, com preços de imigração clandestina a obterem a serem partilhados por todos;
– em 20 de Novembro de 2018 (desde cerca das duas horas da madrugada), quatro pessoas sem documentos legais que lhes permitissem entrar em Macau foram transportadas numa sampana conduzida pelo 1.o arguido, com destino a Macau;
– no decorrer dessa transportação, uma dessas pessoas, a pedido do 2.o arguido, pagou a este, na mesma sampana, doze mil renminbis como preço de imigração clandestina;
– cerca das três horas e seis minutos da mesma madrugada, o pessoal alfandegário de Macau descobriu a referida sampana e procedeu de imediato à perseguição da mesma;
– no decorrer dessa perseguição, o 2.o arguido, para evitar que fosse descoberta a sua conduta criminal, restituiu tal preço àquela pessoa pagadora;
– cerca das três horas e quinze minutos dessa madrugada, o pessoal alfandegário de Macau acabou por interceptar a referida sampana e conseguir deter assim os dois arguidos e as quatro pessoas imigrantes clandestinas em causa;
– os dois arguidos agiram em conjugação de esforços com outrem, de comum acordo e com divisão de tarefas, sabendo qua a conduta deles, praticada por eles de modo livre, voluntário e consciente, era proibida e como tal punida por lei de Macau.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Começou o 1.o arguido por questionar a livre convicção do Tribunal sentenciador, defendendo que não houve prova susceptível de provar que ele tenha sabido da existência de preço de transportação ou que ele tinha recebido ou ia receber vantagens por causa da sua conduta de transportação.
Por isso, desde já, é de conhecer do vício de erro notório na apreciação da prova, materialmente levantado pelo 1.o arguido.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto. Aliás, esse Tribunal já explicou congruentemente as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos.
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel. Por isso, improcede o vício de erro notório na apreciação da prova.
Há, pois, que decidir a presente causa recursória em sintonia com a factualidade já dada por provada em primeira instância.
Por outro lado, improcede também a tese do 1.o arguido segundo a qual a haver entrega de algum preço de transportação ao 2.o arguido, o próprio 1.o arguido já terá consumado, antes, o acto de transportação.
É que, a montante, a factualidade provada em primeira instância é nítida no sentido de que o preço de transportação pago por uma das pessoas imigrantes clandestinas em causa ao 2.o arguido foi pago no decorrer ainda da transportação através da sampana conduzida pelo 1.o arguido com destino a Macau, e a jusante, para a verificação cabal do crime de auxílio qualificado, o art.o 14.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004 não exige que o momento da obtenção da vantagem patrimonial ou benefício material tenha que ser antes da conclusão do acto de transportação para Macau da pessoa imigrante clandestina.
Portanto, naufraga o recurso do 1.o arguido, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
E agora do recurso do 2.o arguido: este começa por preconizar a sua tese de a restituição do preço de imigração clandestina à pessoa pagadora no decorrer da perseguição pelo pessoal alfandegário de Macau implicar que ele só praticou o crime de auxílio qualificado na forma apenas tentada.
Não assiste razão ao 2.o arguido, visto que independentemente da indagação do demais, o preço de imigração clandestina em causa referido na matéria de facto provada em primeira instância foi pago voluntariamente a ele, pelo que no momento em que ele recebeu também voluntariamente esse preço, o mesmo preço já entrou no domínio efectivo dele. Praticou, pois, ele, de forma consumada, o crime de auxílio qualificado em relação àquela pessoa pagadora, o que preclude a sua tese da desistência já do mesmo crime.
Por fim, consideradas todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância aos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o, n.os 1 e 2, e 71.o, n.os 1 e 2, do CP, não se vislumbra qualquer injustiça notória na fixação, no acórdão recorrido, da pena única do 2.o arguido, pelo que é de respeitar o juízo de valor do Tribunal recorrido.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não providos os recursos.
Pagará o 1.o arguido as custas do seu recurso, com três UC de taxa de justiça e três mil patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso. E pagará o 2.o arguido as custas do seu recurso, com três UC de taxa de justiça e três mil patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Macau, 10 de Outubro de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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