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Processo nº 963/2019 Data: 10.10.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Liberdade condicional.
Pressupostos.



SUMÁRIO

1. A liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.

2. É de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social.

3. A compatibilidade da libertação condicional com a defesa da ordem e da paz social não se reconduz à previsível ausência de expressões públicas de inconformismo, mas antes, (e mais latamente), à compatibilidade da libertação condicional com a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes, não sendo de se olvidar também que nos termos do art. 43°, n.° 2 do C.P.M.: “A execução da pena de prisão serve igualmente a defesa da sociedade, prevenindo o cometimento de crimes”.

O relator,

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Processo nº 963/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os restantes sinais dos autos e ora preso no Estabelecimento Prisional de Coloane (E.P.C.), vem recorrer da decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, motivando para, a final, concluir, imputando à decisão recorrida o vício de violação do disposto no art. 56° do C.P.M.; (cfr., fls. 366 a 370 que como as que adiante se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os legais efeitos).

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Em resposta, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 372 a 373).

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Inconformado com o despacho de 2 de Agosto de 2019, que lhe recusou a liberdade condicional com o fundamento de que não estavam verificados os requisitos para o efeito exigidos pelo artigo 56.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal, dele recorre o recluso A.
Sustenta, na sua motivação de recurso, que todos os requisitos necessários para a concessão da liberdade condicional estavam preenchidos, pelo que, ao denegar-lhe a pretendida libertação condicional, a decisão recorrida teria violado o regime jurídico da liberdade condicional, nomeadamente o artigo 56.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
Na contraminuta de recurso apresentada pelo Ministério Público preconiza-se a improcedência do recurso e a manutenção do julgado, explicando-se com clareza e precisão as razões de tal posição.
Também nos parece que a decisão recorrida não merece reparo que a possa pôr em xeque.
Estão em discussão os requisitos materiais exigidos pelo artigo 56.° do Código Penal.
É sabido que a liberdade condicional é de aplicação casuística, dependendo a sua concessão do juízo de prognose indiciador de que o recluso vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em consonância com as regras de convivência, bem como da ponderação da compatibilidade entre a libertação antecipada e a defesa da ordem jurídica e da paz social. Trata-se, no fundo, de verificar se estão satisfeitas as exigências de prevenção especial e de prevenção geral preconizadas no artigo 56.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
No caso em apreço, tal como a decisão recorrida ponderou, não obstante a evolução favorável que é possível vislumbrar no trajecto penitenciário recente do recorrente, persistem dúvidas sobre a sua preparação para, no imediato, conduzir a sua vida de modo socialmente responsável. O recorrente adoptou comportamento prisional adequado nos últimos tempos, o que é normal e é aquilo que se espera de um recluso, mas havia registado, em tempos mais afastados, sérios problemas de indisciplina e criminalidade em contexto prisional, além de que também se alheou das responsabilidades inerentes à reparação dos encargos a que a sua conduta deu causa (custas). Estas circunstâncias não podem deixar de ser analisadas e ponderadas enquanto indicadores da falta de arrependimento sincero que deve nortear a expiação da pena e da correspectiva impreparação da personalidade do recluso para, no exterior, conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem praticar crimes. Digamos que, neste contexto, não é possível arriscar um juízo de prognose favorável sobre a sua reinserção na sociedade em conformidade com as regras de convivência, como acabou por concluir o despacho recorrido.
Por outro lado, e também importante, subsiste a questão da prevenção geral. Prevenção geral positiva ou de integração, enquanto exigência de tutela do ordenamento jurídico, que se manifesta primordialmente no momento chave da aplicação da pena, mas que não pode menosprezar-se na avaliação das condições de concessão da liberdade condicional – cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, parágrafos 283 e 852.
Também deste ponto de vista é possível acompanhar as considerações aduzidas no despacho recorrido para julgar não satisfeito o requisito da prevenção geral. Face à gravidade e impacto social de alguns dos variados crimes por que foi condenado, que são objecto de uma acentuada reprovação ético-jurídica da comunidade, particularmente quando estão em causa estrangeiros que se deslocam para a RAEM para aqui delinquirem, como sucedeu no caso vertente, a libertação do recorrente pode geras desconfiança quanto à efectiva vigência e eficácia das normas violadas e colocar em causa as finalidades de prevenção positiva que não podem deixar de ser salvaguardadas na concessão da liberdade condicional, as quais em Macau são particularmente prementes.
Somos, assim, a concluir que a decisão recorrida efectuou uma correcta ponderação dos aspectos a considerar na concessão da liberdade condicional, em consonância com os comandos do artigo 56.° do Código Penal, pelo que, na improcedência da argumentação do recorrente, deverá ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 414 a 415-v).

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Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, vieram os autos à conferência.

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Flui dos autos a factualidade seguinte (com relevo para a decisão a proferir):

– A, ora recorrente, deu entrada no E.P.C. em 06.10.2003, para cumprimento de uma pena única de 17 anos de prisão, resultado do cúmulo jurídico das penas que lhe foram aplicadas no âmbito dos Procs. n°s CR2-03-0024-PCC e CR4-10-0036-PCC, nos quais foi condenado pela prática dos crimes de “roubo”, “ofensa à integridade física”, “arma proibida”, “sequestro”, “violação” e “ofensa grave à integridade física (originando a morte da vítima)”;
– em 04.08.2017, cumpriu dois terços de tal pena, expiando-a em 04.10.2020;
– durante a sua reclusão foi 2 vezes disciplinarmente punido: em 10.09.2008 e em 23.07.2010;
– se lhe vier a ser concedida a liberdade condicional, irá viver com os seus pais na Tailândia, de onde é natural.

Do direito

3. Insurge-se o ora recorrente contra a decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, afirmando, em síntese, que se devia considerar que reunidos estão todos os pressupostos do art. 56° do C.P.M. para que tal libertação antecipada lhe fosse concedida.

Vejamos.

— Preceitua o citado art. 56° do C.P.M. (que regula os “Pressupostos e duração” da liberdade condicional) que:

“1. O tribunal coloca o condenado a pena de prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
2. A liberdade condicional tem duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, mas nunca superior a 5 anos.
3. A aplicação da liberdade condicional depende do consentimento do condenado”; (sub. nosso).

Constituem, assim, “pressupostos objectivos” ou “formais”, a condenação em pena de prisão superior a seis (6) meses e o cumprimento de dois terços da pena, num mínimo de (também) seis (6) meses; (cfr. n.° 1).

“In casu”, atenta a pena única que ao recorrente foi fixada, e visto que se encontra ininterruptamente preso desde 06.10.2003, expiados estão já dois terços de tal pena, pelo que preenchidos estão os ditos pressupostos formais.

Todavia, e como é sabido, tal “circunstancialismo” não basta, já que não sendo a liberdade condicional uma medida de concessão automática, impõe-se para a sua concessão, a verificação cumulativa de outros pressupostos de natureza “material”: os previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do referido art. 56°.

Com efeito, importa ter em conta que a liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão; (cfr., v.g., J. L. Morais Rocha e A. C. Sá Gomes in “Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários”, Vol. I, em concreto, “Algumas notas sobre o direito penitenciário”, IV cap., pág. 41 e segs.).

Trata-se de um incidente de execução da pena de prisão a que preside uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização, e que assenta na formulação de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro e em liberdade, do condenado que já cumpriu parte considerável da pena; (cfr., Figueiredo Dias in, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 528).

Na esteira do repetidamente decidido nesta Instância, a liberdade condicional “é de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir óbviamente matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 11.07.2019, Proc. n.° 694/2019, de 25.07.2019, Proc. n.° 759/2019 e de 05.09.2019, Proc. n.° 891/2019, podendo-se também sobre o tema ver o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 540/16).

Assim, detenhamo-nos na apreciação de tais pressupostos de natureza material.

Ponderando na factualidade atrás retratada, poder-se-á dizer que é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, mostrando-se a pretendida liberdade condicional compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social?

Cremos que de sentido negativo terá de ser a resposta.

De facto, (e independentemente do demais), face aos tipos e circunstâncias dos crimes pelo ora recorrente cometidos, ponderando também no seu “impacto” na sociedade local, e que causam fortes preocupações e repulsa social, crê-se que não se pode postergar as exigências de tutela do ordenamento jurídico, (cfr., F. Dias in “Dto Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 528 e segs.), havendo pois que salvaguardar a confiança e as expectativas da comunidade no que toca à validade das normas violadas, impondo-se, também por isso, uma reafirmação social mais intensa da validade das ditas normas jurídicas violadas; (cfr., F. Dias in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 106 e o Ac. da Rel. do Porto de 10.01.2018, Proc. n.° 417/15).

Como no recente Ac. do T.R. de Évora de 05.02.2019, (Proc. n.° 669/16), se considerou, importa ter em conta que “a compatibilidade da libertação condicional com a defesa da ordem e da paz social não se reconduz, restritivamente, à previsível ausência de expressões públicas de inconformismo, mas antes, mais latamente, à compatibilidade da libertação condicional com a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes”, não sendo de se olvidar também que nos termos do art. 43°, n.° 2 do C.P.M.: “A execução da pena de prisão serve igualmente a defesa da sociedade, prevenindo o cometimento de crimes”.

Assim, em face das expostas considerações, impõe-se decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 10 de Outubro de 2019
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa

Proc. 963/2019 Pág. 16

Proc. 963/2019 Pág. 15