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Processo n.º 587/2019
(Autos de recurso em matéria cível)

Relator: Fong Man Chong
Data : 24 de Outubro de 2019

ASSUNTOS:

- Negócios simulados e elementos probatórios

SUMÁRIO:

I – Em sede de impugnação de matéria de facto no recurso, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. É em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
II - Verificando-se todos os pressupostos da simulação (artigo 232º do CC) – provou-se que as compras e vendas a que se reportam estes autos, realizadas entre os 1º e 2º Réus e os 3º e 5º Réus tiveram apenas como propósito retirar os respectivos bens do património do 1º Réu de modo a que em acção executiva os credores do 1º Réu, nomeadamente a Autora, não pudessem obter a cobrança coerciva dos seus créditos. Quanto às compras e vendas a que se reportam os autos nunca houve por banda de vendedores e compradores a vontade de comprar e vender nem o preço foi pago, sendo manifesta a intenção dos Réus de prejudicar a Autora, havendo divergência de vontade entre a vontade real dos declarantes – aqui Réus – e a declaração, com a intenção de enganar e prejudicar terceiros - , não resta outra solução senão a de declarar nulos os negócios em causa.


O Relator,

________________
Fong Man Chong



Processo nº 587/2019
(Autos de recurso em matéria cível)

Data : 24 de Outubro de 2019

Recorrentes : - A (2ª Ré)
- B (3º Réu)
- C (4ª Ré)
- D (5º Réu)
- E (6ª Ré)

Recorrida : - F Limitada (F有限公司) (Autora)

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   Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I - RELATÓRIO
    A, B, C, D e E, Recorrentes, devidamente identificados nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 21/12/2018, dela vieram, em 12/03/2019, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 487 a 493, tendo formulado as seguintes conclusões:
     1. O presente recurso ordinário é interposto da sentença proferida em 21/12/2018, que julgando parcialmente procedente a acção intentada, declarou nulas as vendas dos imóveis objecto da presente lide.
     2. Não podem os recorrentes aceitar por boa a decisão recorrida e bem assim os os fundamentos que nela subjazem, sendo certo que, em sua óptica, a prova carreada nos autos impunha uma solução diametralmente oposta àquela plasmada na sentença recorrida.
     3. Contrariamente ao dito na sentença recorrida, às vendas "sub judice" são genuínas, e houve efectivo de provado pagamento dos respectivos preços.
     4. Constam dos autos variada prova documental consubstanciada em cadernetas bancárias juntas e talões de depósitos bancários que atestam ao pagamento dos preços das aquisições.
     5. Relativamente à aquisição de 2/784 da fracção autónoma para fins de parque de estacionamento o pagamento do preço foi integralmente efectuado, através de depósitos bancários nas contas abertas pelos 1° e 2° réus nos Banco da China e no Banco ICBC de Macau. Constam dos autos a respectiva prova documental. Os pormenores do pagamento constam do ponto 45 da contestação apresentada que aqui se dá por reproduzida.
     6. Relativamente à aquisição da fracção autónoma denominada de 24° andar "P" e o respectivo parque de estacionamento 1 / 58 o pagamento do preço foi integralmente efectuado, através de depósitos bancários nas contas abertas pelos 1° e 2° réus no Banco ICBC. Constam dos autos a respectiva prova documental. Os pormenores do pagamento constam do ponto 48 da contestação apresentada que aqui se dá por reproduzida.
     7. Quase a totalidade dos documentos bancários foram submetidos e juntos aos presentes autos em 11/10/2018.
     8. Em face da prova documental oferecida e constante dos autos, e, em face da ausência de qualquer outra prova de igual valor que possa abalar, refutar ou derrubá-las, tinha o Tribunal Colectivo "a quo" que julgar provados os factos alegados com base neles.
     9. Decidindo diversamente, fez eivar a sentença recorrida no vício de violação de lei, das normas legais constante do artigo 232° n.º 1 e 2 do Código Civil de Macau, tornando a sentença recorrida nula.

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    A Recorrida, F Limitada (F有限公司), veio, 29/04/2019, a apresentar as suas contra-alegações constantes de fls. 497 a 499, tendo formulado as seguintes conclusões:
     1. 各上訴人僅重覆其在答辯狀所陳述的事實版本,並指出各名上訴人已提交銀行文件予以證明銀行轉賬之實際存在,故認為應裁定其提出的事實版本得以證實,但原告對此絕不同意。
     2. 首先,銀行轉賬紀錄並不是具有完全證明力的公文書,故其證明力得由法院自由評價,再者,即使存有該等銀行紀錄,亦不能因此證明該等款項就是第三至第六名被告支付的買賣價金。
     3. 另一方面,上述銀行轉賬紀錄中的金額與買賣價金完全不一樣,且按照卷宗資料,各名被告聲稱的買賣是以澳門幣作為價金,而非銀行紀錄中的港幣,而且該等款項在存入後已立即被提取,顯然,各被告將這些拼湊而成的數項銀行不知名存款紀錄說成是買賣價金的支付,這說法顯然難以令人信服。
     4. 而且,各被告亦聲稱部分價金用現金交收,然而,卻從來沒有任何證據顯示該等款項的存在或來源。
     5. 可見,各名被告所述的事實版本完全沒有客觀證據支持,顯然站不住腳。
     6. 另一方面,各名被告又指第一被告及第二被告將買賣價金所得用以償還其他貴賓廳的債務,但正如原審法院的質疑,當中涉及約七、八百萬元的如此大額款項,但卻沒有任何證明該債務的文件或已還款的證據存在,甚至沒有該等款項來源的資料,故各被告在這方面所陳述的事實根本難以令人信服。
     7. 可見,由於各名被告所提交的書證並不具完全證明力,原審法院在聽取各名證人證言後,作出了合理及邏輯性的分析,得出不予採信各名被告所提出的事實版本的決定,並已說明理由,並未存在任何瑕疵。
     8. 而綜合所有上述的資料,以及各名被告間的親屬關係,確實難以令人信服各名被告間有買賣該等不動產的意思或有支付價金,故相關買賣的目的僅是為了使該等不動產不再存在於第一及第二被告之名下,以便原告不能強制執行該等不動產以滿足其債權。
     9. 故原審法院按照相關法律規定宣告本案涉及的三項買賣行為無效,並命令註銷相關登記的決定完全合法合理。
     10. 綜上所述,陳述人認為,上訴人的所有上訴理由不成立,應予以駁回,並維持原審法院所作的判決。

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    Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
    Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
    O processo é o próprio e não há nulidades.
    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
    Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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  III – FACTOS ASSENTES:
    A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
     a) A Autora é uma sociedade por quotas estabelecida em Macau e exerce actividades de promoção de jogos de fortuna ou azar ou outras formas de jogo em casino; (alínea a) dos factos assentes)
     b) O 1º Réu não procedeu, dentro no prazo, à devolução do empréstimo para a Autora e esta apresentou junto do Tribunal, no dia 15 de Dezembro de 2015, acção executiva para pagamento de quantia certa em forma de processo ordinário no intuito de satisfação do crédito; (alínea b) dos factos assentes)
     c) No dia 31 de Agosto de 2015, 1º Réu e a 2ª Ré alienaram ao 3º Réu, B e a sua cônjuge, ou seja, a 4ª Ré, C, a 2/784 da quota-parte da fracção autónoma para fins de parque de estacionamento, sita na Taipa, Rua Cinco dos Jardins do Oceano, nºs 65 a 161, Edf. Carnation e Edf. Dahlia dos Jardins do Oceano, AR/C (descrita a nº 22824 e doravante designada por “2/784 da fracção AR/C”); (alínea c) dos factos assentes)
     d) No dia 4 Setembro de 2015, o 1º Réu e a 2ª Ré alienaram ao 5º Réu, D, a fracção autónoma habitacional, sita em Macau, Praceta da Serenidade, nº 98, Edf. Jardim Wan Keng, Bloco I e Bloco II, 24º andar P (descrita a nº 22076, doravante designada por “fracção P24”) e a 1/58 da quota-parte da fracção autónoma para fins de parque de estacionamento, sito em Macau, Rua da Serenidade, nº 131, Edf. Jardim Wan Keng, Bloco I e Bloco II, rés-do-chão AR/C (descrita a nº 22076, doravante designada por “1/58 da fracção AR/C”); (alínea d) dos factos assentes)
     e) O 3º Réu, B e a sua cônjuge, ou seja, a 4ª Ré, C, compraram a 2/784 da fracção AR/C pelo preço de um milhão e seiscentas mil patacas (MOP1.600.000,00); (alínea e) dos factos assentes)
     f) O 5º Réu comprou a fracção P24 e a 1/58 da fracção AR/C, respectivamente, pelos preços de quatro milhões e setecentas mil patacas (MOP4.700.000,00) e de um milhão e setecentas mil patacas (MOP1.700.000,00); (alínea f) dos factos assentes)
     g) Para além da 2/784 da fracção AR/C, da fracção P24 e da 1/58 da fracção AR/C, o 1º Réu não possui mais activos susceptíveis de compensar o crédito; (alínea g) dos factos assentes)
     h) O 1º Réu, G, e a 2ª Ré, A, contraíram matrimónio em Macau no dia 27 de Junho de 1990, cuja constância se manteve até à presente data; (alínea h) dos factos assentes)
     i) A 2ª Ré, A, e o 5º Réu, D, são irmaõs germanos; (alínea i) dos factos assentes)
     j) A 2ª Ré, A, e o 3º Réu, B, têm relação de família; (alínea i-1) dos factos assentes)
     k) O 5º Réu, D, e a 6ª Ré, E, contraíram casamento no dia 25 de Novembro de 2005 em regime da comunhão de adquiridos; (alínea j) dos factos assentes)
     l) Em Junho de 2011 foi celebrado um contrato de promoção de jogos entre a Autora e a H, S.A. (em chinês designada por “H股份有限公司”); (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória)
     m) Para além disso, foi ainda celebrado um “termo de autorização da concessão de crédito” entre a Autora e a H, S.A.; (resposta ao quesito nº 2 da base instrutória)
     n) O contrato e o “termo de autorização” acima mencionados permitiram à Autora o exercício contínuo, desde 2011 até à presente data, da actividade de concessão de crédito para jogos, ou para determinada(s) variedade(s) de jogo, de fortuna ou azar no Clube de VIP F da Sands Cotai Central da H, S.A.; (resposta ao quesito nº 3 da base instrutória)
     o) Em 2014, a Autora, titular da licença de promotor de jogos nº XXX, foi autorizada para exercer a actividade de promoção de jogo de fortuna ou azar na concessionária H, S.A.; (resposta ao quesito nº 4 da base instrutória)
     p) No dia 8 de 0utubro de 2014, no Clube de VIP F, o 1º Réu pediu empréstimo de um milhão e quinhentos mil dólares de Hong Kong (HKD1.500.000,00) à Autora, a qual concordou e concedeu-lhe o crédito em forma de fichas de jogo em casino (fichas mortas); (resposta ao quesito nº 5 da base instrutória)
     q) O 1º Réu recebeu integralmente da Autora as fichas de jogo em casino (fichas mortas), correspondentes a um milhão e quinhentos dólares de Hong Kong (HKD1.500.000,00), e assinou o “título oficial de empréstimo do Clube de VIP F” nº F000621; (resposta ao quesito nº 6 da base instrutória)
     r) No dia 17 de 0utubro de 2014, no Clube de VIP F, o 1º Réu pediu outro empréstimo, no valor de um milhão de dólares de Hong Kong (HKD1.000.000,00), à Autora, a qual concordou e concedeu-lhe o crédito em forma de fichas de jogo em casino (fichas mortas); (resposta ao quesito nº 7 da base instrutória)
     s) O 1º Réu recebeu integralmente da Autora as fichas de jogo em casino (fichas mortas), correspondentes a um milhão de dólares de Hong Kong (HKD1.000.000,00), e assinou o “título oficial de empréstimo do Clube de VIP F” nº J001640; (resposta ao quesito nº 8 da base instrutória)
     t) No dia 18 de 0utubro de 2014, no Clube de VIP F, o 1º Réu pediu, mais uma vez, um empréstimo no valor de um milhão de dólares de Hong Kong (HKD1.000.000,00) à Autora, a qual concordou e concedeu ao Executado o crédito em forma de fichas de jogo em casino (fichas mortas); (resposta ao quesito nº 9 da base instrutória)
     u) O 1º Réu recebeu integralmente da Autora as fichas de jogo em casino (fichas mortas), correspondentes ao valor de um milhão de dólares de Hong Kong (HKD1.000.000,00), e assinou o “título oficial de empréstimo do Clube de VIP F” nº F000641; (resposta ao quesito nº 10 da base instrutória)
     v) Em relação aos empréstimos descritos nas alíneas p) a u) (antes artigos 5º a 10º), o 1º Réu declarou ter recebido integralmente as respectivas fichas de jogo e comprometeu-se a devolver integralmente essas três dívidas para a Autora, no Clube de VIP F, dentro do prazo de 15 dias; (resposta ao quesito nº 11 da base instrutória)
     w) O 1º Réu não devolveu à Autora, conforme comprometido, os três empréstimos dos valores de, respectivamente, HKD1.500.000,00, HKD1.000.000,00 e HKD1.000.000,00, no prazo de 15 dias depois da assinatura dos supracitados “títulos oficiais de empréstimo do Clube de VIP F” nºs F000621, J001640 e F000641; (resposta ao quesito nº 12 da base instrutória)
     x) Posteriormente, a Autora realizou várias interpelações ao 1º Réu para que sejam devolvidos esses três empréstimos dos valores de, respectivamente, HKD1.500.000,00, HKD1.000.000,00 e HKD1.0000.000,00, ou seja, no total de HKD3.500.000,00, bem como os respectivos juros de mora; (resposta ao quesito nº 13 da base instrutória)
     y) Até o dia 12 de Fevereiro de 2015, o 1º Réu apenas pagou uma quantia de HKD200.000,00 quanto ao “título oficial de empréstimo do Clube de empréstimo do Clube de VIP F” nº J001640, liquidando parcialmente a dívida de HKD1.000.000,00; (resposta ao quesito nº 14 da base instrutória)
     z) A partir daí, o 1º Réu1 jamais procedeu à Autora qualquer devolução respeitante aos empréstimos vencidos; (resposta ao quesito nº 15 da base instrutória)
     aa) Após Setembro de 2015 o 1º Réu deixou de atender os telefonemas da Autora; (resposta ao quesito nº 17 da base instrutória)
     bb) Em 31.03.2016 foi registada a favor de I, familiar do 1º Réu a viatura que antes estava registada a favor deste; (resposta ao quesito nº 18 da base instrutória)
     cc) O 3º Réu e a 4ª Ré não efectuaram pagamento de qualquer preço ao 1º Réu e à 2ª Ré; (resposta ao quesito nº 19 da base instrutória)
     dd) O 3º Réu e a 4ª Ré não tinham a vontade efectiva de comprar a 2/784 da fracção AR/C; (resposta ao quesito nº 20 da base instrutória)
     ee) O 5º Réu e a 6ª Ré não efectuaram pagamento de qualquer preço ao 1º Réu e à 2ª Ré; (resposta ao quesito nº 21 da base instrutória)
     ff) O 5º Réu e a 6ª Ré não haviam a vontade efectiva de comprar a fracção P24 e a 1/58 da fracção AR/C; (resposta ao quesito nº 22 da base instrutória)
     gg) O 1º Réu e a 2ª Ré não haviam a vontade efectiva de vender a 2/784 da fracção AR/C, a fracção P24 e a 1/58 da fracção AR/C; (resposta ao quesito nº 23 da base instrutória)
     hh) De vontade falsa, o 1º Réu e a 2ª Ré transmitiram à sua família, o 3º Réu, a 4ª Ré e o 5º Réu, a 2/784 da fracção AR/C, a fracção P24 e a 1/58 da fracção AR/C, no intuito de enganarem à credora do 1º Réu e impossibilitarem a execução dos três bens que pertenciam a ele, quando for exigido o cumprimento das dívidas; (resposta ao quesito nº 24 da base instrutória)
     ii) De vontade falsa, o 1º Réu e a 2ª Ré transmitiram à sua família, o 3º Réu, a 4ª Ré e o 5º Réu com o intuito de prejudicarem os interesses da Autora na qualidade de credora; (resposta ao quesito nº 25 da base instrutória)2
     jj) O 1º Réu e a 2ª Ré procederam à compra e venda da 2/784 da fracção AR/C, da fracção P24 e da 1/58 da fracção AR/C, sabendo claramente que as alienações iriam diminuir a garantia patrimonial do crédito da Autora; (resposta ao quesito nº 26 da base instrutória)
     kk) O 3º Réu e a 4ª Ré sabiam claramente que a alienação da 2/784 da fracção AR/C pelo 1º Réu e 2ª Ré iria diminuir a garantia patrimonial do crédito da Autora e, mesmo assim, praticaram o acto de compra e venda indicado na alínea c); (resposta ao quesito nº 27 da base instrutória)
     ll) O 5º Réu sabia claramente que a alienação da fracção autónoma P24 e da 1/58 da fracção AR/C pelo 1º Réu e 2ª Ré iria diminuir a garantia patrimonial do crédito da Autora e, mesmo assim, praticou o acto de compra e venda indicado na alínea d). (resposta ao quesito nº 28 da base instrutória).

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IV – FUNDAMENTAÇÃO
    A primeira questão que se suscita neste recurso: os Recorrentes vieram a impugnar a matéria de facto ou não?
    Uma das conclusões que os Recorrentes formularam é a seguinte:
     Quase a totalidade dos documentos bancários foram submetidos e juntos aos presentes autos em 11/10/2018.
     8. Em face da prova documental oferecida e constante dos autos, e, em face da ausência de qualquer outra prova de igual valor que possa abalar, refutar ou derrubá-las, tinha o Tribunal Colectivo "a quo" que julgar provados os factos alegados com base neles.
     9. Decidindo diversamente, fez eivar a sentença recorrida no vício de violação de lei, das normas legais constante do artigo 232° n.º 1 e 2 do Código Civil de Macau, tornando a sentença recorrida nula.
    A propósito da impugnação da matéria de facto, o legislador fixa um regime especial, constante do artigo 599º (Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto) do CPC, que tem o seguinte teor:
     1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
     a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
     b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
     2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
     3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
     4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º

    Ora, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
    É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
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    No que respeita aos critérios da valoração probatória, nunca é demais sublinhar que se trata de um raciocínio problemático, argumentativamente fundado no húmus da razão prática, a desenvolver mediante análise crítica dos dados de facto veiculados pela actividade instrutória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência colhidas da normalidade social, que não pelo mero convencimento íntimo do julgador, não podendo a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade persuasiva e susceptível de objectivação, o que não exclui, de todo, a interferência de factores de índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis. Ponto é que a motivação se norteie pelo princípio da completude racional, de forma a esconjurar o arbítrio3.
    É, pois, nessa linha que se deve aferir a razoabilidade dos juízos de prova especificamente impugnados, mediante a análise crítica do material probatório constante dos autos, incluindo as gravações ou transcrições dos depoimentos, tendo em conta o respectivo teor, o seu nicho contextual histórico-narrativo, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção do julgador na apreciação da prova livre, em conformidade com o disposto, designadamente no artigo 390º do CCM, em conjugação com o artigo 558º do CPC, com vista a obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima.
    Não cumprido este ónus, há-de ser rejeitado esta parte do recurso.
*
    Prosseguindo, passemos a ver o mérito da acção.
    Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
     F Limitada, registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o nº XXX SO, com sede em Macau na XXX,
     vem instaurar a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
     G, do sexo masculino, casado com A no regime da comunhão de adquiridos, titular do BIRM nº XXX e residente em Macau na XXX;
     A, do sexo feminino, casada com G no regime da comunhão de adquiridos, titular do BIRM nº XXX e residente em Macau na XXX;
     B, do sexo masculino, casado com C no regime da comunhão de adquiridos, titular do BIRM nº XXX e residente em Macau na XXX;
     C, do sexo feminino, casada com B no regime da comunhão de adquiridos, titular do BIRM nº XXX e residente em Macau na XXX;
     D, do sexo masculino, casado com E no regime da comunhão de adquiridos, titular do BIRM nº XXX e residente em Macau na XXX;
     E, do sexo feminino, casada com D no regime da comunhão de adquiridos e residente em Macau na XXX.
     Alega a Autora ser uma sociedade que explora as actividades de promoção de jogos de fortuna e azar, tendo celebrado um contrato com a H S.A. de acordo com o qual está autorizada a conceder crédito para jogo.
     Nos dias 08.10.2014, 17.10.2014 e 18.10.2014 a Autora concedeu um empréstimo ao 1º Réu em fichas de jogo no valor de HKD1.500.000,00, HKD1.000.000,00 e HKD1.000.000,00 respectivamente, os quais nas datas dos respectivos vencimentos o Réu não pagou, vindo posteriormente a pagar apenas HKD200.000,00, nada mais tendo pago apesar de interpelado pela Autora para o efeito.
     Instaurando acção executiva para cobrança dos seus créditos veio a Autora a saber que o 1º Réu e a sua esposa aqui 2ª Ré em data anterior mas depois das concessões dos créditos haviam vendido os imóveis de que eram proprietários aos aqui 3º a 6º Réus, sendo certo que estes são irmãos e cunhados da 2ª Ré, nunca tendo havido qualquer intenção de vender nem de comprar os bens em causa nem os respectivos preços foram pagos, tendo os actos de venda sido realizados apenas com o intuito de enganar o credor do 1º Réu no momento em que exigisse o cumprimento das obrigações que este assumiu.
     Concluindo pede que:
     a) Se declare a nulidade do acto de compra e venda com simulação absoluta da quota-parte 2/784 na fracção autónoma para o uso de estacionamento no r/c do Bloco Dahlia, do Bloco Carnation do Edifício Jardins do Oceano, Rua Cinco dos Jardins do Oceano, nº 65-161, Taipa efectuado pelo 1º Reu, a 2ª Ré, o 3º Réu e a 4ª Ré no dia 31 de Agosto de 2015;
     b) Se declare a nulidade do acto de compra e venda com simulação absoluta da fracção autónoma 24P para o uso de habitação do Edifício Jardim Wan Keng (Bloco 1, Bloco 2) Praceta da Serenidade, nº 98 efectuado pelo 1º Réu, a 2ª Ré, o 5º Réu e a 6ª Ré no dia 4 de Setembro de 2015;
     c) Se declare a nulidade do acto de compra e venda com simulação absoluta da quota-parte 1/58 na fracção autónoma para o uso de estacionamento do Edifício Jardim Wan Keng (Bloco 1, Bloco 2) Praceta da Serenidade, Rua da Tranquilidade, nº 131 efectuado pelo 1º Réu, a 2ª Ré, o 5º Réu e a 6ª Ré no dia 4 de Setembro de 2015;
     d) Se efectue o cancelamento do registo predial dos 3 bens imóveis acima referidos;
     Em caso de improcedência das pretensões anteriores pede que:
     e) Se declare a ineficácia da compra e venda efectuada pelo 1º Réu, a 2ª Ré, o 3º Réu e a 4ª Ré à Autora da quota parte 2/784 na fracção autónoma para o uso de estacionamento no r/c do Bloco Dahlia, do Bloco Carnation do Edifício Jardins do Oceano, Rua Cinco dos Jardins do Oceano, nº 65-161, Taipa, a Autora tem o direito de realizar a execução do bem acima referido e de solicitar a restituição do bem na medida do seu limite, podendo executar o bem supracitado do 3º Réu e da 4ª Ré;
     f) Se declare a ineficácia da compra e venda efectuado pelo 1º Réu, a 2 Ré, o 5º Réu e a 6ª Ré à Autora da fracção autónoma 24P para o uso de habitação do Edifício Jardim Wan Keng (Bloco 1, Bloco 2) Praceta da Serenidade, nº 98, a Autora tem o direito de realizar a execução do bem acima referido e de solicitar a restituição do bem na medida do seu limite, podendo executar o bem supracitado do 5º Réu e da 6ª Ré;
     g) Se declare a ineficácia da compra e venda efectuado pelo 1º Réu, a 2 Ré, o 5º Réu e a 6ª Ré à Autora da quota-parte 1/58 na fracção autónoma para o uso de estacionamento do Edifício Jardim Wan Keng (Bloco 1, Bloco 2) Praceta da Serenidade, Rua da Tranquilidade, nº 131, a Autora tem o direito de realizar a execução do bem acima referido e de solicitar a restituição do bem na medida do seu limite, podendo executar o bem supracitado do 5º Réu e da 6ª Ré;
     Mais pede em qualquer dos casos a condenação dos Réus a pagar as despesas de advocacia da Autora.
     Citados os Réus para querendo contestarem, vieram os 2º a 6º Réus fazê-lo defendendo-se por impugnação e também por aquilo que qualificaram de excepção, concluindo pela improcedência da acção.
     A Autora replicou respondendo àquilo que o Réus contestantes chamaram de excepção.
     Foi proferido despacho saneador, sendo seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
     Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal mantendo-se a validade da instância.
     
     As questões a decidir nesta sede processual consistem em apreciar da alegada simulação dos negócios impugnados ou da impugnação pauliana dos mesmos.
     Do pedido de condenação no pagamento das despesas de acção executiva e de advocacia da Autora.

     Da instrução e discussão da causa apurou-se que:
     (…)
     Cumpre apreciar e decidir.
     
     Pede a Autora a título principal a declaração de nulidade das compras e vendas objecto destes autos e só subsidiariamente, recorre à impugnação pauliana das mesmas, pelo que, deve o tribunal conhecer primeiro da invocada simulação e caso venha ser julgada procedente fica prejudicada a impugnação pauliana.
     
     Segundo o artº 232º do C.Civ. «1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo.»
     No caso em apreço o que resulta das alíneas cc) a ll) é que se provou que as compras e vendas a que se reportam estes autos, realizadas entre os 1º e 2º Réus e os 3º e 5º Réus tiveram apenas como propósito retirar os respectivos bens do património do 1º Réu de modo a que em acção executiva os credores do 1º Réu, nomeadamente a Autora, não pudessem obter a cobrança coerciva dos seus créditos.
     Quanto às compras e vendas a que se reportam os autos nunca houve por banda de vendedores e compradores a vontade de comprar e vender nem o preço foi pago, sendo manifesta a intenção dos Réus de prejudicar a Autora.
     Destarte, no caso em apreço há divergência entre a vontade real dos declarantes – aqui Réus – e a declaração, com a intenção de enganar e prejudicar terceiros, vício que implica a nulidade do negócio.
     De acordo com o nº 2 do artº 234º do C.Civ. os autores têm legitimidade para arguir a simulação do negócio em causa.
     Pelo que, sendo desnecessárias outras considerações se impõe julgar a acção procedente.
     
     Quanto ao pedido de condenação no pagamento das despesas da acção executiva e de advocacia da Autora, nada se prova pelo que apenas pode improceder sem necessidade de outra fundamentação.
     
     Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a acção parcialmente procedente por parcialmente provada e em consequência:
     a) Declara-se nula a compra e venda celebrada em 31 de Agosto de 2015 entre os 1º e 2ª Réus como vendedores e os 3º e 4ª Réus, B e C como compradores de 2/784 da fracção autónoma para fins de parque de estacionamento, sita na Taipa, Rua Cinco dos Jardins do Oceano, nºs 65 a 161, Edf. Carnation e Edf. Dahlia dos Jardins do Oceano, AR/C, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob nº 22824 a fls. 9 do Livro B121K e em consequência ordena-se a anulação da inscrição nº 300508G efectuada pela apresentação nº 172 de 07.09.2015 relativamente à mesma fracção autónoma;
     b) Declara-se nula a compra e venda celebrada em 4 Setembro de 2015 entre os 1º e 2ª Réus como vendedores e o 5º Réu, D como comprador da fracção autónoma destinada a habitação, sita em Macau, Praceta da Serenidade, nº 98, Edf. Jardim Wan Keng, Bloco I e Bloco II, 24º andar P, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob nº 22076 a fls. 104 do Livro B124 e em consequência ordena-se a anulação da inscrição nº 300708G efectuada pela apresentação nº 82 de 14.09.2015 relativamente à mesma fracção autónoma;
     c) Declara-se nula a compra e venda celebrada em 4 Setembro de 2015 entre os 1º e 2ª Réus como vendedores e o 5º Réu, D como comprador de 1/58 da fracção autónoma destinada a parque de estacionamento, sita em Macau, Praceta da Serenidade, nº 98, Edf. Jardim Wan Keng, Bloco I e Bloco II, AR/C, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob nº 22076 a fls. 104 do Livro B124 e em consequência ordena-se a anulação da inscrição nº 300709G efectuada pela apresentação nº 82 de 14.09.2015 relativamente à mesma fracção autónoma;
     d) Absolvem-se os Réus do pedido de condenação nas despesas da acção executiva e da advocacia da Autora.
     
     Custas a cargo dos Réus.
     Registe e notifique.
     Macau, 21.12.2018.
    Quid Juris?
    Ora, um dos argumentos que os Recorrentes batem bastante é a conclusão que se deve tirar dos registos bancários sobre o pagamento de preço, defendendo que por estes elementos se deve concluir que foram celebrados efectivamente os negócios em causa. A este propósito, a Recorrida/Autora respondeu e tem razão: em primeiro lugar, a moeda não bate certa, porque o documento disse que os preços foram fixados em HKD, mas os depósitos foram feitos em Patacas, e o preço total também não bate certo! Em segundo lugar, depois de depositar as quantias, estas foram logo levantadas! Estas provas não foram contrariadas pelos Recorrentes.
    Verificando-se todos os pressupostos da simulação, não resta outra solução senão a de declarar nulos os negócios em causa.
    Em suma, em face das considerações e impugnações da ora Recorrente, a argumentação produzida pelo MM. Juíz do Tribunal a quo continua a ser válida, a qual não foi contrariada mediante elementos probatórios concretos, trazidos por quem tem o ónus de prova.
    Nestes termos, é da nossa conclusão que o Tribunal a quo fez uma análise ponderada dos factos e uma aplicação correcta das normas jurídicas aplicáveis, tendo proferido uma decisão conscienciosa e legalmente fundamentada, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, embora com argumentos ligeiramente diferentes por nós produzidos, é de manter a decisão recorrida.
*
    Síntese conclusiva:
    I – Em sede de impugnação de matéria de facto no recurso, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. É em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
    II - Verificando-se todos os pressupostos da simulação (artigo 232º do CC) – provou-se que as compras e vendas a que se reportam estes autos, realizadas entre os 1º e 2º Réus e os 3º e 5º Réus tiveram apenas como propósito retirar os respectivos bens do património do 1º Réu de modo a que em acção executiva os credores do 1º Réu, nomeadamente a Autora, não pudessem obter a cobrança coerciva dos seus créditos. Quanto às compras e vendas a que se reportam os autos nunca houve por banda de vendedores e compradores a vontade de comprar e vender nem o preço foi pago, sendo manifesta a intenção dos Réus de prejudicar a Autora, havendo divergência de vontade entre a vontade real dos declarantes – aqui Réus – e a declaração, com a intenção de enganar e prejudicar terceiros - , não resta outra solução senão a de declarar nulos os negócios em causa.
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    Tudo visto e analisado, resta decidir.
* * *
V ‒ DECISÃO
    Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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    Custas pela Recorrente.
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    Registe e Notifique.
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RAEM, 24 de Outubro de 2019.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho


1 Correcção feita de acordo com a versão chinesa.
2 Redacção adaptada com a parte inicial do item anterior uma vez que este quesito estava formulado de modo dependente.
3 Sobre o princípio da completude da motivação da decisão judicial ditado, pela necessidade da justificação cabal das razões em que se funda, com função legitimadora do poder judicial, vide acórdão do STJ, de 17-01-2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1876/06.3TBGDM.P1 .S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
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