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Processo nº 975/2019 Data: 12.12.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla”.
Aplicação da lei penal no espaço.
Pena.


SUMÁRIO
  A lei penal de Macau é (também) aplicável: se o arguido for residente de Macau e for aqui encontrado; se os factos praticados forem também puníveis pela legislação do local onde ocorreram, (não se verificando a excepção do não exercício do poder punitivo); e se não obstante constituir crime em relação ao qual seja possível a sua entrega, esta não for possível, (v.g.), por falta de acordo nesta matéria.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 975/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado pela prática como autor material de 1 crime de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) e 196°, al. b) do C.P.M., na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, e no pagamento da quantia de RMB¥750.000,00 e juros ao ofendido/assistente B; (cfr., fls. 260 a 264-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “errada aplicação do direito” (por “violação do art. 5°, n.° 1, al. c) do C.P.M.”), pedindo a sua absolvição, e, subsidiariamente, a redução e suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada; (cfr., fls. 274 a 280-v).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 299 a 305-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.274 a 280v dos autos, o recorrente pediram a revogação do Acórdão recorrido (cfr. fls.260 a 264 verso dos autos), assacando um erro de direito contemplado no n.º1 do art.400º do CPP, por violação dos preceitos na alínea c) do n.º1 do art.5º, no n.º2 do art.40º, no art.65º e no n.º1 do art.211º do CPM.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações do ilustre Colega na Resposta (cfr. fls.299 a 305v dos autos).
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Bem, o recorrente arrogou, em primeiro lugar, que as provas constantes dos autos não permitiam ao Tribunal a quo chegar à conclusão de haver qualquer erro ou engano sobre factos astuciosamente provocado pelo recorrente, bem como de haver qualquer intenção do recorrente de obter para si ou terceiro um enriquecimento ilegítimo, portanto em falta o elemento objeitivo e subjectivo, e se verifica um erro de direito, e que a sua conduta devia ser submida na disputa cível com o ofendido.
Acolhemos a conclusão do ilustre colega que apontou: “2. 按一般常理,在澳門投資泰國佛牌進出口公司,理應在澳門登記以成立公司,而經向澳門商業登記局查核,上訴人並沒有辦理任何公司登記。顯示所謂“在澳門投資泰國佛牌進出口公司”根本就是上訴人蓄意騙得被害人信任的一個謊言或“詭計”,目的是騙取被害人的金錢並據為己有。”
Além disso, nos autos não se divisa nenhum dado capaz de mostrar que o recorrente realizasse qualquer acto acordado entre ele e o ofendido. De outro lado, ao contrário do que o recorrente afirmou, o procedimento para abrir uma empresa em Macau é fácil.
Tudo isto leva-nos a entender que o douto Acórdão recorrido nesta parte não enferma do erro de direito, não infringindo o disposto na alínea a) do n.º1 do art.211º do CPM.
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No caso sub judice, afigura-se-nos acertada a observação do ilustre colega, no sentido de que “雖然被害人交付金錢的地點發生於中國內地,但是這種虛假的口頭承諾無疑相當於一份口頭合同,而該合同的內容是在澳門開辦投資佛牌的進出口公司,顯然虛假的用以欺騙被害人的合同履行地是在澳門,即犯罪行為地或部分行為地是在澳門,澳門刑法當然適用。” E interessa não esquecer que “由此可見,按照上述條文規定,在本案中,上訴人理應作出的部分行為之地,即口頭協議的合同履行地在澳門。而口頭合同的標的及內容是在澳門開設進出口公司,以從事泰國佛牌進出口貿易。也就是說,上訴人理應依口頭合同約定而在澳門開設公司,但顯然由於上訴人一方的口頭承諾是虛假的,其目的在於欺騙及騙取被害人按口頭“協議”或“承諾”支出的投資款,所以上訴人選擇了“不作為”的方式 – 沒有在澳門開設公司,即以“不作為”的方式觸犯了詐騙罪。而本案中的焦點事實之一,口頭承諾的合同履行地,即上訴人應作行為之地是在澳門。”
Nestes termos, não podemos deixar de entender que o tribunal de Macau é competente para julgar o caso sub judice, pelo que não se verifica a assacada violação da alínea c) do n.º1 do art.5º do CPM.
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A atenciosa leitura do douto Acórdão in questio impulsiona-nos a acompanhar a prudente conclusão extraída pelo ilustre colega, no sentido de que ao graduar as penas concretas para o recorrente, o Tribunal a quo mencionou as disposições nos arts.64º e 65º do CPM e ponderou todas as circunstâncias pertinentes para os devidos efeitos. Importa ter presente que o recorrente nunca mostrou sinceros remorsos.
Sabe-se que no ordenamento jurídico de Macau, é adquirida a douta jurisprudência que tem asseverando que nos arts.64º e 65º do CPM, o legislador acolhe a teoria da margem de liberdade (a título exemplificativo, vide. Acórdãos do TSI nos Processos n.°293/2004, n.°50/2005 e n.°51/2006). E entendemos ser prudente o veredicto que afirma “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial recorrida.” (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.°817/2016)
Nesta linha de perspectiva, à luz das sensatas jurisprudências supra citadas, entendemos que o Acórdão recorrido não infringe as disposições nos arts.40° e 65° do CPM, e a pena de três anos e três meses de prisão efectiva se mostra justa e equilibrada, por isso é incuravelmente inviável o pedido de redução desta pena.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 318 a 319-v).

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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 261 a 262, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor material de 1 crime de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) e 196°, al. b) do C.P.M., na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, e no pagamento da quantia de RMB¥750.000,00 e juros ao ofendido/assistente dos autos.

Assaca ao Acórdão recorrido o vício de “errada aplicação do direito” (por “violação do art. 5°, n.° 1, al. c) do C.P.M.”), pedindo a sua absolvição, e, subsidiariamente, a redução e suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada.

Vejamos.

–– Para a apreciação da 1ª questão colocada – que implica decidir se a Lei Penal de Macau é aplicável aos factos apurados – impõe-se, antes de mais, atentar no estatuído nos art°s 4° a 7° do C.P.M..

Com efeito, nos termos do art. 4° do dito código:

“Salvo disposição em contrário constante de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, a lei penal de Macau é aplicável a factos praticados:
a) Em Macau, seja qual for a nacionalidade do agente; ou
b) A bordo de navio ou aeronave, matriculado em Macau”.

Nos termos do art. 5°:

“1. Salvo disposição em contrário constante de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, a lei penal de Macau é ainda aplicável a factos praticados fora de Macau:
a) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 252.º a 261.º e 297.º a 305.º;
b) Quando constituírem os crimes previstos no n.º 2 do artigo 152.º e nos artigos 153.º, 153.º-A, 154.º, 155.º, 229.º, 230.º e 236.º, desde que o agente seja encontrado em Macau e não possa ser entregue a outro Território ou Estado;
c) Por residente de Macau contra não-residente, ou por não-residente contra residente, sempre que:
(1) O agente for encontrado em Macau;
(2) Os factos forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; e
(3) Constituírem crime que admita entrega do agente e esta não possa ser concedida; ou
d) Contra residente de Macau, por residente, sempre que o agente for encontrado em Macau.
2. A lei penal de Macau é ainda aplicável a factos praticados fora de Macau sempre que a obrigação de os julgar resulte de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária”.

Por sua vez, nos termos do art. 6°:

“A aplicação da lei penal de Macau a factos praticados fora de Macau só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no local da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação”.

E, por fim, prescreve o art. 7° que:

“O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tiver produzido”.

No caso dos autos, está – essencialmente, e no que interessa – provado, (evidente sendo também que inexiste qualquer “erro na apreciação da prova”), que o arguido, residente de Macau, conheceu o ofendido no Interior da China, de onde este é residente, e sob a (falsa) promessa de o ajudar a instalar um negócio muito rentável em Macau, fez com que o ofendido lhe entregasse uma quantia monetária que fez sua, sem nada fazer em relação ao dito negócio, tendo agido livre e voluntariamente, e com conhecimento que proibida e punida era a sua conduta.

E, nesta conformidade, constatando-se que todo o “contacto com o ofendido” – negociação e entrega de dinheiro – é feito no Interior da China, será a Lei Penal de Macau aplicável?

Pois bem, pugnando por uma resposta de sentido positivo, entende o Ministério Público que se deve dar relevância ao facto de que o prometido negócio era para ser instalado em Macau, e, desta forma, ser a Lei de Penal de Macau aplicável ao abrigo do art. 4°, al. a) e 7° do C.P.M..

Ora, sem prejuízo do muito respeito por entendimento diverso, não se mostra de sufragar o assim entendido.

Com efeito, cabe dizer que em face do que se deixou consignado, não nos parece de considerar que os “factos” – em questão – “tiveram lugar em Macau”; (cfr., art. 4°, al. a) do C.P.M.).

Na verdade, (e centrando-nos agora no art. 7° do C.P.M.), apresenta-se-nos evidente que perante a factualidade retratada inviável é afirmar que o “arguido actuou em Macau”.

Porém, na opinião do Ministério Público, (e ainda que “não tenha actuado em Macau”), era aqui que “devia ter actuado”, na medida que prometeu instalar em Macau o alegado negócio, o que não fez.

Contudo, este não se nos mostra ser o (verdadeiro) sentido e alcance do comando legal em questão, (cfr., art. 7° do C.P.M.).

Apenas assim seria de considerar se o crime em causa – in casu, o de “burla” – fosse um crime passível de ser cometido por “omissão”, o que não se mostra ser a situação dos autos, pois que, nos termos do art. 9°, n.° 2 do C.P.M.:
“A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”.

Aqui chegados, resolvida não fica a questão, pois que em causa está a situação do art. 5°, n.° 1, al. c) do C.P.M..

Com efeito, verificadas estão as (3) alíneas (1), (2), e (3) do dito preceito legal para que a Lei Penal de Macau seja aplicável.

Na verdade, o arguido é residente de Macau, foi aqui encontrado, os factos praticados são também puníveis pela legislação do local onde ocorreram, (não se verificando a excepção do não exercício do poder punitivo), e não obstante constituir crime em relação ao qual era possível a sua entrega, esta, (no caso), não é possível por falta de acordo nesta matéria; (cfr., v.g., J. F. Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, tomo 1, pág. 205 e segs., Américo Taipa de Carvalho, in “Direito Penal, Parte Geral”, pág. 222 e segs., M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio in “Código Penal, Parte geral e especial”, pág. 43 e segs., e os Acs. do Vdo T.U.I. de 20.03.2007, Proc. n.° 12/2007 e de 12.02.2008, Proc. n.° 3/2008).

Nesta conformidade, e em causa não estando estatuído no art. 6° o do C.P.M., vista está a solução para a questão.

–– Quanto à “redução e suspensão da pena”.

Pois bem, ao crime em questão cabe a pena de 2 a 10 anos; (cfr., art. 211° do C.P.M.).

E atenta a factualidade dada como provada (da qual ressalta o dolo directo e intenso do arguido e o elevado prejuízo do ofendido), e tendo presente os critérios para a determinação da medida de pena, (cfr., art. 40° e 65° do C.P.M.), há que dizer, face à referida moldura penal aplicável, que excessiva não se apresenta a pena.

De facto, e como repetidamente temos entendido:

“Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art. 65°, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”, sendo de notar (igualmente) que,
“Com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, devendo esta ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 28.11.2019, Procs. n°s 1113/2019 e 1031/2019, e de 05.12.2019, Proc. n.° 1023/2019).

Nesta conformidade, e inviável sendo a “suspensão da execução da pena” porque inverificados os pressupostos do art. 48° do C.P.M., (em especial, quanto à “medida da pena”), resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo arguido com a taxa de justiça de 6 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 12 de Dezembro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

Proc. 975/2019 Pág. 16

Proc. 975/2019 Pág. 17