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Processo n.º 1295/2019 Data do acórdão: 2020-3-20
Assuntos:
– escutas telefónicas
– apreciação do resultado das escutas

S U M Á R I O

O facto de o arguido ora recorrente ter acabado por ser acusado de crimes tudo puníveis com pena de prisão de limite máximo não superior a três anos, e já não do crime de associação criminosa que motivou então a autorização judicial de realização das escutas telefónicas em questão nos autos contra ele, não tem a pretendida virtude de invalidar essas escutas realizadas, nem de afastar a possibilidade legal da apreciação do resultado dessas escutas para efeitos de formação da livre convicção do julgador judicial sobre os factos daqueles crimes acusados.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1295/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 1227 a 1241 do Processo Comum Colectivo n.° CR5-18-0389-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material, na forma consumada, de um crime de violação de segredo de justiça, p. e p. materialmente pelo art.o 335.o, n.o 1, do Código Penal (CP), conjugado com o art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 5/2006, de 12 de Junho, na pena de um ano de prisão efectiva, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão condenatória uso de prova inválida, contradição insanável da fundamentação, erro notório na apreciação da prova e excesso manifesto na medida da pena (cfr. em detalhes, o teor da sua motivação apresentada a fls. 1253 a 1259 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 1262 a 1269 dos presentes autos), no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 1278 a 1281), pugnando também pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 1227 a 1241, cuja fundamentação fáctica, probatória e jurídica se dá por aqui integralmente reproduzida.
2. O Juízo de Instrução Criminal autorizou as escutas telefónicas referidas na fundamentação probatória do acórdão recorrido, por despachos, sucessivamente, de 27 de Fevereiro, 21 de Março, 10 de Abril, 25 de Abril, 30 de Maio e 11 de Julho, tudo do ano 2018 (e de teor respectivamente constante de fls. 20, 35, 311 a 311v, 331 a 331v, e 474 a 474v dos autos, e aqui tudo dado por integralmente reproduzido).
3. Em todos esses despachos, consta escrito que o Tribunal analisou nomeadamente os correspondentes relatórios subjacentes da Polícia Judiciária e a promoção do Ministério Público e concluiu pela necessidade de recolha da prova através da realização de escutas telefónicas pretendidas pela Polícia Judiciária com promoção do Ministério Público.
4. E em todos os subjacentes relatórios da Polícia Judiciária, vem referida (cfr. mormente o correspondente teor de fls. 14, 29, 306, 325 e 467 a 467v, respectivamente) a indispensabilidade de realização ou de continuação de realização de escutas telefónicas para investigação do caso.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, conhecendo:
Desde já, a respeito da primeira parte do recurso do arguido sobre a problemática de escutas telefónicas, é de relembrar a seguinte tese jurídica do TSI, citada no judicioso parecer da Digna Procuradora-Adjunta:
– se as escutas telefónicas foram ordenadas e efectuadas quando nos autos se investigava um crime de “associação secreta”, as mesmas mantêm-se válidas mesmo que, em momento posterior, se venha a deduzir acusação pela prática de um crime punível com pena inferior a três anos de prisão (veja-se o acórdão de 19 de Setembro de 2013, do Processo n.o 157/2013 do TSI);
– não há meio de prova proibido, não ocorre nulidade de escutas telefónicas, se não há intercepção ilícita e gravação de escutas telefónicas não autorizadas (veja-se o acórdão de 30 de Setembro de 2010, do Processo n.o 576/2009 do TSI).
No caso dos presentes autos penais, todas as escutas telefónicas referidas na fundamentação probatória da decisão condenatória ora recorrida foram autorizadas pelo Juízo de Instrução Criminal, e como da fundamentação dos respectivos despachos judiciais autorizantes já resulta a concordância material, por parte do Tribunal autorizante, dos subjacentes relatórios da Polícia Judiciária na questão de indispensabilidade da realização das escutas telefónicas em causa para investigação dos factos, não se pode imputar a esse Tribunal a falta de fundamentação das respectivas decisões autorizantes quanto ao requisito de ultima ratio postulado na parte final do proémio do n.o 1 do art.o 172.o do Código de Processo Penal (CPP).
Outrossim, o facto de o arguido ter acabado por ser acusado de crimes tudo puníveis com pena de prisão de limite máximo não superior a três anos, e já não do crime de associação criminosa que motivou então a autorização das escutas telefónicas em questão nos autos contra ele, não tem a pretendida virtude de invalidar essas escutas realizadas, nem de afastar a possibilidade legal da apreciação do resultado dessas escutas para efeitos de formação da livre convicção do julgador judicial sobre os factos daqueles crimes acusados (isto na esteira da posição jurídica veiculada nos atrás referidos acórdãos dos Processos n.os 157/2013 e 576/2009 do TSI).
Improcede, assim, a primeira parte do recurso do arguido, como já se pugna no douto parecer do Ministério Público.
E agora da alegada contradição insanável da fundamentação:
Como da leitura, em global e de modo crítico, da fundamentação fáctica da decisão condenatória recorrida não se vislumbra qualquer oposição irredutível entre os factos provados e os não provados, é patente que não pode ter ocorrido esse vício previsto na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP. Aliás, as razões tecidas pelo Tribunal a quo nos últimos dois parágrafos da fundamentação probatória da sua decisão sobre os factos probandos dos autos já ilustrem bem a impossibilidade de existência da contradição insanável entre os factos provados e os não provados.
Não deixou o arguido de apontar ao mesmo veredicto final da Primeira Instância o vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, o Tribunal a quo teceu a fundamentação probatória da sua decisão sobre a matéria de facto em todas as páginas 15 a 21 do texto do acórdão recorrido, a fls. 1234 a 1237.
Pois bem, depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados e como tal referidos (até com muita minúcia) pelo Tribunal recorrido nessa fundamentação probatória do seu acórdão, entende o presente Tribunal de recurso que não é manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito por esse Tribunal, pelo que é legalmente correcta a decisão condenatória do arguido no crime de violação de segredo de justiça, dada a prova bastante já feita que suporta bem essa condenação penal.
Por fim, da questão da medida da pena:
Ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à medida da pena aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP dentro da moldura penal de prisão aplicável, tendo em conta também, no caso concreto do arguido (que, aquando da prática dos factos, desempenhava as funções de investigador penal da Polícia Judiciária), as inegáveis exigências da prevenção geral (do crime de violação de segredo de justiça por pessoal investigador penal oficial), é de louvar mesmo, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP, toda a decisão já tomada pelo Tribunal recorrido na matéria da medida da pena (incluindo, naturalmente, o seu juízo de valor quanto à opção da pena de prisão, e à decidida aplicação da pena efectiva de prisão), sem mais indagação (sobre o pedido de substituição da pena de prisão por multa) por ociosa ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo arguido, com oito UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão à Polícia Judiciária.
Macau, 20 de Março de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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