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Processo nº 61/2017 Data: 04.03.2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Depoimento como testemunha do ex-Chefe do Executivo e do ex-Secretário para a Economia e Finanças.
Estatuto do Chefe do Executivo e titulares dos principais cargos do Governo da R.A.E.M..
Dever de sigilo.
Autorização do Chefe do Executivo.
Interesse público.
Acto praticado no exercício de funções políticas.
Irrecorribilidade.


SUMÁRIO

1. Nos termos do art. 4° da Lei n.° 22/2009 que estabelece o “regime das limitações impostas aos ex-titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos do Governo da R.A.E.M.”: “Os ex-titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos têm o dever de guardar segredo sobre factos confidenciais ou reservados de que tenham tomado conhecimento no exercício das respectivas funções, enquanto não forem objecto de divulgação pública, salvo autorização do Chefe do Executivo”.

2. Esta “decisão” – de autorização ou não autorização – pelo Chefe do Executivo proferida não constitui uma medida com forma e conteúdo de “acto administrativo”, integrando, antes, um “acto de governo praticado no exercício de funções – essencialmente – políticas”.

3. Nos termos do art. 19° da Lei n.° 9/1999, (“Lei de Bases da Organização Judiciária”), “estão excluídas do contencioso administrativo (…) as questões que tenham por objecto”: “actos praticados no exercício da função política (…)”.

O relator,

José Maria Dias Azedo

Processo nº 61/2017
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 18.05.2017 proferido nos Autos de Recurso Contencioso n.° 892/2016, e em que são recorrentes “BANCO DELTA ÁSIA, S.A.” (“匯業銀行股份有限公司”) e outros, e recorrido, o CHEFE DO EXECUTIVO, julgou-se procedente a invocada excepção de irrecorribilidade da decisão objecto do recurso, com a consequente absolvição da instância da entidade recorrida; (cfr., fls. 249 a 253 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformados com o decidido, trazem os referidos recorrentes o presente recurso, onde, em sede de alegações produzem as conclusões seguintes:

“1. Neste recurso, está em causa, fundamentalmente, saber-se qual a natureza jurídica do acto praticado pelo Chefe do Executivo ao abrigo do artigo 4.° da Lei n.° 22/2009, quando este lhe é solicitado pelo Tribunal Administrativo.
2. Os ora Recorrentes arrolaram como testemunhas o ex-Chefe do Executivo e o ex-Secretário para a Economia e Finanças, em sede de recurso contencioso de anulação que ora corre termos naquele Tribunal sob o n.° 1241/15-ADM, para ali prestarem depoimento sobre factos que ocorreram enquanto se encontravam em exercício de funções.
3. Aquela instância judicial solicitou ao Chefe do Executivo a autorização a que se refere o mencionado artigo 4.° da Lei n.° 22/2009 e, em resposta, o Chefe do Executivo proferiu despacho, não autorizando os depoimentos solicitados pelos ora Recorrentes.
4. Defende acórdão recorrido que este acto não é recorrível, por não ter natureza administrativa, já que não produz efeitos na esfera jurídica de terceiros, tratando-se antes de uma mera resposta a um pedido judicial.
5. Afigura-se que o douto acórdão recorrido enferma de contradições de raciocínio, as quais minam irremediavelmente o mérito da decisão final.
6. Por um lado, defende-se no douto acórdão recorrido que os depoimentos pretendidos só poderão ter lugar se for obtida a autorização do Chefe do Executivo, mas, por outro, também se diz que competiria ao juiz do processo aferir da validade dessa posição
7. Primeiro, é dito que a diligência não poderia ter lugar sem a autorização, mas, mais adiante, parece dar-se poder ao juiz do processo para decidir se aceita ou não, a decisão emitida pelo Chefe do Executivo, sendo que tal poder existe tanto quando o Chefe do Executivo autoriza os depoimentos, como na situação contrária.
8. Se a diligência de inquirição das testemunhas não pode ter lugar sem a autorização prevista no artigo 4.° da Lei n.° 22/2009, então o acto do Chefe do Executivo tem eficácia externa, porque leva necessariamente o Tribunal Administrativo a indeferir pretensão dos recorrentes, com esse fundamento.
9. E, por essa razão, tem de ser recorrível, já que força a mão do juiz do processo, porque o deferimento dos depoimentos requeridos pelo juiz do processo sem tal autorização violará o artigo 4.° da Lei n.° 22/2009.
10. Sendo que, nessa circunstância, as testemunhas arroladas e devidamente notificadas para depor no Tribunal, teriam legitimidade para se recusar a fazê-lo, sob pena de, também elas, violarem aquela norma legal, gerando-se, assim, para elas, um verdadeiro e intolerável conflito de deveres.
11. Se os depoimentos requeridos não podem ter lugar sem a referida autorização, como inequivocamente se diz no douto acórdão recorrido, então a decisão do Chefe do Executivo tem impacto na esfera jurídica dos particulares que os requereram, porque admitir-se o contrário gera uma contradição intolerável no sistema jurídico, tanto mais que o Exmo. Senhor Juiz do processo n.° 1241/15-ADM havia até, inicialmente, deferido a diligência
12. Logo, a decisão do Chefe do Executivo não pode deixar de ser recorrível jurisdicionalmente, porque consiste num acto praticado por um órgão da administração, ao abrigo de normas de direito público, para produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, e na esfera jurídica de terceiros, cfr. artigo 110.° do CPA), e artigo 28.°, n.° 1, do CPAC.
13. Assim, afigura-se que o douto acórdão recorrido violou o artigo 110.° do CPA e, bem assim, os artigos 2.° e 28.°, n.° 1, do CPAC
14. No recurso do TSI n.° 892/2016, onde foi proferido o douto acórdão recorrido, os ora recorrentes insurgem-se, entre outros, contra a falta de fundamentação do acto recorrido
15. Então, in casu, se a via apropriada de reagir contra a recusa da autorização prevista no artigo 4.° da Lei n.° 22/2009 é o recurso judicial contra o despacho que sobre ela seja proferida pelo juiz do processo, como vem dito no douto acórdão recorrido, gera-se a circunstância, quiçá insólita, de os recorrentes terem de reagir contra um despacho judicial intrinsecamente válido, usando como fundamento os vícios de que eventualmente padecerá um acto administrativo.
16. Porque tal despacho, em si, será perfeitamente legal, à luz do estipulado no artigo 4.° da Lei n.° 22/2009 e, por isso, qualquer recurso que contra ele seja interposto por violação de lei estará inelutavelmente condenado ao fracasso, já que o vício está a montante.
17. Afigura-se assim que o douto acórdão recorrido entra, também aqui, em contradição, e as consequências jurídicas que decorrem da posição ali assumida consubstanciarão intoleráveis contradições substantivas e processuais, violando, por isso, também por aqui, o artigo 110.° do CPA, bem como os artigos 2.° e 28.°, n.° 1, do CPAC”; (cfr., fls. 263 a 275).

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Respondendo, diz a entidade recorrida que:

“a) O acto impugnado não teve na sua origem qualquer procedimento administrativo e não reveste a natureza de acto administrativo, donde não pode ser objecto de recurso contencioso, nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 28.° do CPAC;
b) O que estava em causa era uma resposta a uma solicitação judicial, oficiosa, com vista a assegurar a legalidade da intervenção processual, na qualidade de testemunhas, de dois ex-titulares de principais cargos da RAEM, que foi determinada nos termos do artigo 4.° da Lei 22/2009, conjugado com o n.° 3 do artigo 124.° do CPP e com o n.° 4 do artigo 442.° do CPC, aplicáveis por força do artigo 1.° do CPAC;
c) De acordo com o disposto no n.° 4 do artigo 442.° do CPC, pedida escusa com fundamento em segredo da RAEM, é aplicável, com as necessárias adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto na lei processual acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de segredo invocado;
d) A lei não prevê qualquer mecanismo de impugnação de decisão que não autorize o depoimento de testemunhas em sede de Tribunal Administrativo, nem tem que o prever, porquanto tal decisão é irrecorrível;
e) A Lei n.° 22/2009 apenas prevê a possibilidade de recurso nas situações a que se refere o respectivo artigo 3.°, daí a inviabilidade de, através de um recurso contencioso autónomo, se poder impugnar a decisão de confirmação do segredo da RAEM tomada pelo Chefe do Executivo;
f) Acaso o legislador tivesse querido consagrar a possibilidade de impugnação nas hipóteses previstas nos artigos 4.° e 5.° da Lei n.° 22/2009, certamente o teria feito de modo expresso;
g) A decisão ora recorrida não encerra quaisquer contradições,
h) Tal como não viola o artigo 110.° do CPA nem os n.os 1 e 2 do artigo 28.° do CPAC;
i) O Tribunal a quo julgou bem ao considerar procedente a excepção da irrecorribilidade do acto da Entidade Recorrida”; (cfr., fls. 296 a 304).

Pugna, assim, pela improcedência do recurso.

*

Em sede de vista, e em douto Parecer, assim considerou o Exmo. Representante do Ministério Público:

“No âmbito do recurso contencioso n.° 1241/15-ADM, pendente no Tribunal Administrativo, foram arrolados como testemunhas o ex-Chefe do Executivo, Ho Hau Wah, e o ex-Secretário para a Economia e Finanças, Tam Pak Yuen.
No desenvolvimento do processo, o Tribunal Administrativo dirigiu ao Senhor Chefe do Executivo o ofício reproduzido a fls. 328 e verso, com tradução a fls. 342 a 344, onde, com base no artigo 4.° da Lei n.° 22/2009, e para o que ora interessa, pede que informe se autoriza aquelas duas testemunhas a depor sobre os factos a investigar no recurso contencioso.
Em resposta, de 20 de Outubro de 2016, o Senhor Chefe do Executivo informou que não autorizava o ex-Chefe do Executivo, Ho Hau Wah, e o ex-Secretário para a Economia e Finanças, Tam Pak Yuen, a prestarem depoimento como testemunhas, atendendo a que os factos a apurar tinham natureza confidencial ou reservada e chegaram ao conhecimento deles no desempenho das anteriores funções públicas.
Desta recusa de autorização foi interposto recurso contencioso no Tribunal de Segunda Instância, o qual, por acórdão de 18 de Maio de 2017, julgando procedente a excepção de irrecorribilidade do acto, absolveu a entidade recorrida da instância.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cuja alegação e respectivas conclusões os recorrentes se batem pela recorribilidade do acto, imputando ao acórdão recorrido erro de julgamento com violação dos artigos 110.° do Código do Procedimento Administrativo e 2.° e 28.°, n.° 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Vejamos o raciocínio em que o douto acórdão recorrido sustenta o seu juízo. Afirma-se que a decisão adoptada pelo Exm.° Chefe do Executivo, sendo uma resposta ao Tribunal Administrativo, acerca de um pedido formulado no âmbito de um processo judicial, apenas vale no respectivo processo, não possuindo eficácia externa e sendo insusceptível de afectar a esfera jurídica de terceiros. Daí que não reúna as características de acto administrativo stricto sensu para poder ser objecto de recurso contencioso. Ainda nos termos do acórdão, a tutela jurisdicional efectiva dos interesses dos recorrentes sempre ficaria assegurada através da possibilidade de impugnação do despacho judicial que, no processo n.° 1241/15-ADM, do Tribunal Administrativo, viesse a validar ou não a “autorização”.
Discordamos do assim decidido.
Como o Ministério Público salientou a fls. 244 e seguintes, a decisão do Senhor Chefe do Executivo, que denegou autorização para os ex-Chefe do Executivo e ex-Secretário para a Economia e Finanças prestarem depoimento, possui todos os requisitos e elementos substanciais do acto administrativo. Sendo, como é, uma estatuição autoritária, que denega autorização para que dois antigos titulares de cargos no Governo da Região Administrativa Especial de Macau possam depor em determinado processo contencioso, para o que haviam sido arrolados por uma das partes nesse processo, parece que daí decorre inevitavelmente a impossibilidade dessa parte se poder socorrer do depoimento de duas testemunhas, que tinha por necessário e até por imprescindível, como se constata à evidência do articulado reproduzido a fls. 34 e seguintes. É, pois, patente o potencial de lesividade do acto e é seguro que os seus efeitos não se circunscrevem ao processo, enquanto mero instrumento de realização da justiça, mas têm apetência para se projectarem na própria solução da relação material controvertida, dado o condicionamento que exercem na produção de prova, com o inerente prejuízo da parte que fica impedida de a produzir.
E não se diga que a tutela jurisdicional efectiva dos interesses dos recorrentes fica garantida através da sindicância do despacho judicial que, naquele processo n.° 1241/15-ADM, do Tribunal Administrativo, venha a validar ou não a “autorização”. O Tribunal Administrativo não tem que validar a autorização ou não autorização. Não o pode fazer, até porque não dispõe de competência para o efeito, pois não cabe ao juiz do processo em que se arrolam como testemunhas anteriores titulares de cargos governativos decidir ou pronunciar-se sobre a autorização dada ou denegada pelo Chefe do Executivo. O juiz do processo tem que acatar o que sobre o assunto da autorização for resolvido pelo Chefe do Executivo. Quando muito, no caso de ter havido autorização para o depoimento, pode vir o juiz a confrontar-se com a invocação, em juízo, pelo próprio autorizado, de uma escusa fundada no dever de preservação de segredo da Região Administrativa Especial de Macau. Só nesta hipótese, que, em bom rigor, já nada tem a ver com o acto de autorização, haverá que lançar mão do mecanismo previsto no n.° 4 do artigo 442.° do Código de processo Civil e das normas do processo penal para as quais este remete.
Portanto, e em conclusão, está em causa um acto administrativo da autoria do Exm.° Chefe do Executivo, não sujeito a impugnação administrativa necessária, e susceptível de produzir efeitos externos lesivos, que por isso é recorrível contenciosamente, cabendo a respectiva sindicância ao Tribunal de Segunda Instância, nos termos normais.
A tanto nada obsta a falta de previsão, na Lei n.° 22/2009, da impugnação de tal acto. Não está prevista, nem tinha que estar. Tal como é totalmente irrelevante para a caracterização do acto como administrativo a alegada inexistência de procedimento administrativo.
Procedem, pois, os fundamentos do recurso, devendo revogar-se o acórdão impugnado e mandar-se prosseguir o recurso contencioso”; (cfr., fls. 353 a 354-v).

*

Nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Está assente, e tem relevo, a facticidade seguinte:

“No âmbito do processo de recurso contencioso que corre termos no Tribunal Administrativo sob o nº 1241/15-ADM, os ora recorrentes arrolaram como testemunhas, entre outros, o ex-Chefe do Executivo e o ex-Secretário para a Economia e Finanças.
O Tribunal Administrativo, através do ofício nº 535, de 13.10.2016, solicitou à entidade recorrida que esclarecesse se autorizava as supra testemunhas a prestar depoimento no âmbito do referido Processo nº 1241/15-ADM.
Em 20 de Outubro de 2016, a entidade recorrida, em resposta a tal solicitação, informou o Tribunal Administrativo de que, nos termos do artigo 4º da Lei nº 22/2009 (Limitações impostas aos titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos do Governo após cessação de funções), não autorizava o ex-Chefe do Executivo, Senhor Ho Hau Wah, e o ex-Secretário para a Economia e Finanças, Senhor Tam Pak Yuen, a prestar depoimento na qualidade de testemunhas, por considerar que os factos que se pretendem apurar têm natureza confidencial ou reservada e foram conhecidos no exercício das respectivas funções”; (cfr., fls. 251 a 251-v).

Do direito

3. Tem o presente recurso como objecto o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 18.05.2017, onde, como se deixou relatado, se entendeu que o acto pela entidade recorrida praticado – que não autorizou o depoimento das testemunhas pelos recorrentes pretendido – era um “acto irrecorrível”, e daí, a consequente absolvição da instância da entidade recorrida.

Batendo-se por entendimento inverso, pretendem os recorrentes a revogação do assim decidido.

Vejamos.

Reflectindo sobre a questão que lhe foi colocada, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“(…)
Em nossa modesta opinião, somos a entender que o acto em si não é contenciosamente recorrível.
De facto, trata-se apenas de uma resposta a uma solicitação judicial prevista nos termos do artigo 4º da Lei nº 22/2009, uma vez que a diligência de inquirição só poderá ter lugar se for obtido a autorização do Chefe do Executivo para os mesmos efeitos.
E não custa admitir que não houve lugar a qualquer procedimento administrativo que tenha culminado com a prática do referido acto, pois tratando-se de uma mera resposta ao Tribunal Administrativo sobre um pedido por este formulado, a decisão tomada nessa circunstância não deixaria de valer apenas no respectivo processo judicial, ou seja, não é um acto com eficácia externa, na medida em que não é, por si só, susceptível de afectar a esfera jurídica de terceiros.
(…)
Isto posto, o objecto do recurso deverá ser o próprio despacho do juiz que aprecia o pedido formulado pelos recorrentes, e não a resposta do Chefe do Executivo ao Tribunal Administrativo, por não ser esta um acto administrativo stricto sensu, a qual não pode ser objecto de recurso hierárquico ou contencioso, nos termos do nº 1 do artigo 28º do CPAC, a contrario.
(…)”; (cfr., fls. 251 a 253).

Quid iuris?

Admitindo-se que outro entendimento possa existir sobre a questão, e ainda que com fundamentação não totalmente coincidente, mostra-se de confirmar a decisão recorrida.

Eis o nosso ponto de vista.

Em causa está saber se adequada é a decisão que considerou “irrecorrível” o acto pela entidade recorrida praticado que não autorizou o depoimento na qualidade de testemunha do ex-Chefe do Executivo e do ex-Secretário para a Economia e Finanças em sede do recurso contencioso que corre termos no Tribunal Administrativo (Proc. n.° 1241/15-ADM).

–– E, antes de mais, adequado se nos apresenta consignar o que segue.

São os recorrentes de opinião que o Acórdão recorrido padece de “contradição” por, no mesmo – e em breve súmula – se ter considerado o supra referido acto da entidade recorrida um acto sem “eficácia externa”, e, daí, “irrecorrível”, e, dado que, em simultâneo, se adiantou que a questão do pretendido depoimento de testemunhas devia ser colocada em recurso da decisão que vier a ser proferida em sede dos autos onde foi requerida, (no processo n.° 1241/15-ADM que corre termos no Tribunal Administrativo).

Justificam a alegada “contradição”, afirmando que “gera-se a circunstância, quiçá insólita, de os recorrentes terem de reagir contra um despacho judicial intrinsecamente válido, usando como fundamento os vícios de que eventualmente padecerá um acto administrativo”, concluindo, assim, que “condenado ao fracasso estaria o recurso da aludida decisão que se viesse a proferir”; (cfr., conclusões 15ª a 17ª).

Compreende-se a apreensão dos recorrentes.

Porém, não se mostra de acolher o entendimento que se deixou exposto.

Com efeito, apresenta-se de salientar que o pelo Tribunal de Segunda Instância adiantado em relação ao “recurso da decisão que vier a ser proferida no Tribunal Administrativo” constitui, tão só, uma (mera) “referência”, a título de “sugestão”, não chegando sequer a constituir um “argumento acessório”, (e por isso, muito menos essencial, ou decisivo) para a pronúncia que lhe competia emitir, (e que emitiu), e que era (precisamente) quanto à pela entidade recorrida suscitada (i)recorribilidade do aludido “acto administrativo”, cabendo também referir que não se detecta no assim afirmado (quanto ao dito recurso) qualquer desvio ao regime que regula a matéria dos recursos de decisões proferidas pelo Tribunal Administrativo; (cfr., art. 148° e seguintes do C.P.A.C.).

Por sua vez, e no que toca ao sentido da decisão a proferir (pelo Tribunal Administrativo), assim como da sorte do seu (eventual) recurso, são “questões processuais” que – a virem a existir – apenas no local e momento próprios poderão ser apreciadas, não constituindo matéria a decidir em sede da presente instância recursória.

Dest’arte, e inexistente sendo a assacada “contradição”, continuemos.

–– Como dá conta a factualidade dada como provada e atrás retratada, para a referida decisão invocou a entidade recorrida o art. 4° da Lei n.° 22/2009 – que estabelece o “regime das limitações impostas aos ex-titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos do Governo da R.A.E.M.” – onde se prescreve que:

“Os ex-titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos têm o dever de guardar segredo sobre factos confidenciais ou reservados de que tenham tomado conhecimento no exercício das respectivas funções, enquanto não forem objecto de divulgação pública, salvo autorização do Chefe do Executivo”.

Sendo que nos termos do art. 4° da Lei n.° 2/1999 (“Lei de Bases da Orgânica do Governo”), assim como do art. 1° do aludido diploma legal, (Lei n.° 22/2009), são os “Secretários” titulares dos principais cargos do Governo da R.A.E.M., passa-se a tentar expor o motivo do entendimento que se deixou adiantado.

Cabe desde já notar que o “dever de sigilo” do Chefe do Executivo e dos titulares dos principais cargos do Governo da R.A.E.M. decorre do estatuído no art. 4°, n.° 8 do Regulamento Administrativo n.° 24/2010, que estabelece o “Estatuto dos Titulares dos Principais Cargos da R.A.E.M.”, assim como do preceituado no art. 3°, n.° 2, alínea 3) e art. 12° da Ordem Executiva n.° 112/2010 que define as “Normas de Conduta dos Titulares dos Principais Cargos da R.A.E.M.”.

Nesta conformidade, evidente se apresenta a constatação de que com o art. 4° da Lei n.° 22/2009 se pretendeu a manutenção do referido “dever de sigilo” após a cessação de funções, com a única excepção de vir a ser dispensado através de (expressa) autorização do Chefe do Executivo.

E tendo presente o estatuído no art. 5° da referida Lei n.° 22/2009, que estende tal “dever de sigilo” ao próprio “processo penal” – prescrevendo que “Os ex-titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos não podem, em procedimento criminal, ser inquiridos como testemunhas, peritos ou declarantes sobre factos confidenciais ou reservados de que tenham tomado conhecimento no exercício das respectivas funções, sem que seja obtida autorização prévia do Chefe do Executivo” – ocorre então reflectir acerca dos motivos da sua imposição.

Pois bem, antes de mais, importa ter presente que o aludido “dever de sigilo”, (e a correspondente e necessária autorização para a sua dispensa), diz apenas (e tão só) respeito a “factos confidenciais ou reservados”, e “conhecidos no exercício das respectivas funções”.

E atenta(s) esta(s) “particularidade(s)”, sem esforço se mostra de concluir que o que – efectivamente – justifica a imposição do aludido “dever de siligo” tão só pode ser o “interesse público/colectivo”, (só assim se compreendendo que se mantenha a sua aplicação mesmo em sede do “processo penal”); (sobre o sentido e alcance de “interesse público”, e com abundantes referências doutrinárias, cfr., v.g., Lino Ribeiro e Cândido Pinho in “Código de Procedimento Administrativo de Macau Anotado e Comentado”, pág. 68 e segs.).

Ora, dir-se-á que o assim considerado pouco ou nada esclarece, já que sendo o “interesse público” um “conceito indeterminado”, e desta forma, mutável e intimamente ligado aos valores sociais de cada momento, (época), não deixa de poder ser muitas vezes invocado fora do seu contexto.

Cremos porém que ainda que se deva – ou possa – admitir o assim entendido, não se mostra de reconhecer a sua (eventual) eficácia, pois que o respeito devido a considerações similares, não pode ter como consequência a pura e simples negação do “interesse público” como verdadeiro princípio (e valor) cuja prossecução cabe a quem compete governar ou administrar.

Seja como for, cremos que o que se deixou consignado serve, (no mínimo), para (tentar) demonstrar que não é pois por uma “simples razão de (mera) conveniência” (ou por outra “razão qualquer”) que se entendeu vincular (legalmente) as referidas entidades ao “dever de sigilo” em relação a matérias que já se deixaram elucidadas, (e que dizem apenas respeito às que chegaram ao seu conhecimento em virtude do exercício de funções públicas e que sejam respeitantes a factos confidenciais ou reservados).

Aqui chegados, e clarificado (que cremos ter ficado) este aspecto, é momento de avançar para a questão que se prende com a “natureza do acto de não autorização dos depoimentos” pela entidade recorrida praticado.

E, da reflexão que sobre a mesma nos foi possível efectuar, cremos que o adequado fundamento para a decisão da sua irrecorribilidade deve (antes) assentar na sua natureza de “acto de governo praticado no exercício de funções – essencialmente – políticas”, e, como tal, excluído da possibilidade de apreciação judicial nos termos do art. 19°, n.° 1 da Lei n.° 9/1999, (“Lei de Bases da Organização Judiciária”).

Na verdade, somos de opinião que o acto em causa, atenta a matéria sobre a qual incide, não deve ser reconhecido como “acto administrativo”, (“strictu sensu” ou em “matéria administrativa”), e como tal, susceptível de impugnação contenciosa, pois que não se nos apresenta como acto praticado no desempenho de uma (típica) actividade (administrativa) de gestão pública, (seja ele inserido ou não em determinado procedimento) – cfr., art. 102° do C.P.A. onde se define acto administrativo como “as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visam produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”, podendo-se, também, v.g., sobre a origem e evolução do conceito, ver L. Ribeiro e C. Pinho, in ob. cit., pág. 552 e segs. – mostrando-se-nos que o mesmo se insere antes no exercício da “função governativa e (essencialmente) política”, a qual não pode deixar de compreender o poder de, com a máxima discricionariedade, definir, primária e globalmente, as melhores políticas e soluções a adoptar para a defesa do (atrás referido) “interesse público e de toda uma colectividade”, e, por isso, confiado ao mais alto representante da R.A.E.M., a quem, como no caso sucede, cabe, em exclusivo, a legitimidade para a sua prática; (vd., para situação próxima, ou mesmo análoga, o estatuído no art. 50°, n.° 15 da Lei Básica da R.A.E.M. onde se prescreve que compete ao Chefe do Executivo da R.A.E.M. “Decidir se os membros do Governo ou outros funcionários responsáveis pelos serviços públicos devem testemunhar e apresentar provas perante a Assembleia Legislativa ou as suas comissões, em função da necessidade de segurança ou de interesse público de relevante importância do Estado e da Região Administrativa Especial de Macau”, sendo de notar que, para IEONG WAN CHONG in, “Anotações à Lei Básica da R.A.E.M.”, pág. 113, este artigo dispõe sobre as competências do Chefe do Executivo como “principal responsável do poder político de direcção executiva…”, podendo-se, sobre a natureza e conceito de “acto político” ver, v.g., Marcello Caetano in “Manual de Ciência Política e Direito Constitucional”, pág. 172 e “Manual de Direito Administrativo”, vol. I, pág. 5; Afonso Queiró in “A função administrativa”, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXIV, n.° 1-2-3, pág. 46; G. Canotilho in, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pág. 565 e segs.; Sérvulo Correia in, “Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos”, pág. 280 e 768 e “Noções de Direito Administrativo”, pág. 29; Vieira de Andrade in, “A Justiça Administrativa”, pág. 14; M. Rebelo de Sousa in, “Lições de Direito Administrativo”, pág. 9 e 10; J. Miranda in “A Competência do Governo na Constituição de 1976” em Estudos sobre a Constituição, pág. 637 e “Órgãos e Actos de Estado”, pág. 24; M. Esteves de Oliveira in, “Noções de Direito Administrativo”, pág. 29; F. do Amaral in, “Curso de Direito Administrativo”, 2ª ed., pág. 45 e segs.; Cristina M.M. Queiros in, “Os actos políticos no Estado de Direito – o problema do controlo jurídico do poder”, pág. 146 e segs.; e Jorge de Sousa in, “Poderes de cognição dos Tribunais Administrativos relativamente a actos praticados no exercício da função política”, Julgar, n.° 3, pág. 119 e segs.).

Na verdade, o acto em causa, tendo (especialmente) em conta a “matéria” sobre que incide – e que, em bom rigor, diz respeito ao “estatuto” dos titulares dos principais cargos do Governo da R.A.E.M., no caso, quanto ao seu “dever de sigilo” – assim como a “causa” e “finalidade” da sua prática, não constitui uma medida com forma e conteúdo de “acto administrativo”, (pois que para tal não basta tratar-se de um acto destinado a uma “situação individual e concreta”, tendo ainda de proceder do exercício da “função administrativa”), integrando, antes, uma “opção política”, entendida esta como um “complexo de funções dirigidas à prossecução e defesa dos interesses de toda a colectividade”; (cfr., v.g., quanto à “intencionalidade” ou “móbil” do acto, Aroso de Almeida in, “Manual de Processo Administrativo”, pág. 283).

Não se olvida que em oposição ao considerado se poderá opinar que assim não deve ser, pois que o acto em causa pode assentar em lapso ou equívoco, e reconhecendo-se-lhe a natureza de “acto irrecorrível”, inviável seria a sua censura.

Ora, não obstante à primeira vista poder constituir este um argumento (algo) “impressionante”, em nossa opinião, não colhe.

Com efeito, a “insusceptibilidade de recurso” é característica própria e típica, legalmente reconhecida a este tipo de “actos”, (cfr., o citado art. 19° da L.B.O.J.), importando ter também presente que, admissível não deixa de ser a sua censura política, através das vias, formas e processos adequados.

Dest’arte, imperativa é a improcedência do presente recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça de 10 UCs.

Notifique.

Macau, aos 4 de Março de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator) – Sam Hou Fai – Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa

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