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Processo n.º 811/2018
(Autos de recurso contencioso)
     
Relator: Fong Man Chong
Data: 16 de Janeiro de 2020

Assuntos:
     
- Pena de demissão e factos demonstrativos da inviabilidade da manutenção da relação de emprego público
     
SUMÁRIO:

I - As penas de inactividade ou de aposentação compulsiva e demissão são aplicáveis às infracções graves que, ponderadas todas as circunstâncias atendíveis, inviabilizem a manutenção da relação funcional, o que significa que não basta a prática de conduta constitutiva de crime que possa atentar contra o prestígio e dignidade da função.
II - Há-de existir um “quid” perturbador da relação de confiança recíproca que inviabilize a manutenção do vínculo profissional. O preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante um juízo de prognose, assente em pressupostos como a gravidade objectiva do facto cometido, o reflexo no exercício das funções e a personalidade do agente que se revela inadequado para o exercício de funções públicas, factores estes que devem ser base da decisão administrativa, como elementos concretizadores do referido conceito interdeterminado.
     III – A decisão ora posta em crise invoca os factos assentes que constituem pressupostos da aplicação do artigo 315º/1 do ETAPM, e também concluiu pela inviabilidade de manutenção da relação laboral entre a Recorrente e a Administração Pública, tendo em conta a gravidade dos factos cometidos, é de manter a decisão punitiva uma vez que não se verificam os alegados vícios invalidantes.

O Relator,

_______________
Fong Man Chong














Processo n.º 811/2018
(Autos de recurso contencioso)

Data : 16/Janeiro/2020

Recorrente : A (A)

Entidade Recorrida : Secretária para a Administração e Justiça

*
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
    
    I – RELATÓRIO
A (A), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando do despacho da Secretária para a Administração e Justiça, datado de 25/07/2018, dela veio, em 30/08/2018 interpor o presente recurso contencioso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 2 a 48, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Vem a petição de recurso contencioso interposto contra a Entidade Recorrida, a Exma. Secretária para a Administração e Justiça, que, no âmbito do Processo Disciplinar 03/DSAJ/DAT/2013, proferiu uma decisão de aplicação à Recorrente de pena de demissão prevista no n.º 1 do art.º 315.º do ETAPM, decisão essa cuja cópia ora se junta como documento 1 nos termos do disposto no art. 43º, nº 1, al. a) do CPAC.
II. Em sua argumentação a Entidade Recorrida emitiu o acto administrativo recorrido, considerando, para o efeito, que houve da parte da Recorrente uma actuação dolosa violadora das alíneas b) e d) do n.º 2 do art.º 279.º, do ETAPM e do nº 2 do art. 11º das Disposições Fundamentais do Estatuto do Pessoal de Direcção e Chefia.
III. No âmbito do presente processo disciplinar, no dia 6 de Abril de 2016 foi proferida Acusação contra à ora Arguida, onde lhe foi imputada a prática de uma infracção disciplinar por alegadamente ter violado os deveres gerais de zelo e de lealdade a que estava sujeita por força das funções que desempenhava, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1 da Lei n.º 15/2009 e 279.º, n.º 2, alíneas b) e d) do ETAPM, e bem assim por ter posto em causa a imagem da RAEM, violando assim o disposto no artigo 11.º, n.º 2 da Lei n.º 15/2009.
IV. No entanto, como em 18 de Junho de 2016 foi deduzida Acusação contra a Arguida em processo-crime, ficaram os presentes autos do processo disciplinar a aguardar até decisão transitada em julgado no referido processo criminal, o que ocorreu no dia 29 de Janeiro de 2018.
V. Pois a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância confirmou a decisão do Tribunal Judicial de Base, a qual condenou a Arguida pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento de especial valor por funcionário, p.p. pelos artigos 244.º, n.º 1, alínea a), 245.º e 246.º, n.º 1 do Código Penal, e de um crime de abuso de poder, p.p. pelo artigo 347.º do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
VI. Terminado que estava o procedimento criminal, foi a Arguida notificada nos presentes autos disciplinares para vir prestar novamente declarações no dia 8 de Junho de 2018.
VII. Ao prestar declarações, a Arguida explicou de forma clara e concisa a sua versão dos factos e solicitou que os mais de 25 anos de bons serviços prestados enquanto funcionária pública sem qualquer reparo fossem tidos em consideração na escolha da pena aplicada.
VIII. Não obstante, no relatório final acabou o Exmo. Instrutor por propor que nos termos do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 316.º ETAPM, tendo em conta o nível de culpa, a personalidade, a conduta da Arguida e as circunstâncias atenuantes, fosse aplicada à Arguida a pena de demissão.
IX. Consequentemente, foi o processo remetido à Exma. Secretária para Administração e Justiça, que por força dos poderes que lhe haviam sido delegados pelo Exmo. Chefe do Executivo da RAEM, em 25 de Julho de 2018 profere a decisão ora recorrida a qual aplica a pena de demissão à Recorrente.
X. Como resulta dos factos já elencados, e dos que se descrevem mais abaixo, a ora Recorrente é destinatária directa do acto praticado pela entidade recorrida, na medida em que o mesmo produz efeitos em relação à aqui impugnante.
XI. Por conseguinte, a ora Recorrente tem legitimidade activa para impugnar o acto em causa, que é definitivo, na medida em que é titular de um interesse pessoal e directo, designadamente, por se considerar lesada pelo acto aqui recorrido, como resulta do disposto na alínea a) do artigo 33º do CPAC.
XII. O acto recorrido foi notificado à ora Recorrente em 31 de Julho de 2018, pelo que, atento o disposto no artigo 25.º, n.º2 alínea a) do CPAC o presente recurso é tempestivo.
XIII. De acordo com o n.º 1 do artigo 300.º do ETAPM, "[a]s penas aplicáveis aos funcionários e agentes pelas infracções disciplinares que cometerem, são: a) Repreensão escrita; b) Multa; c) Suspensão; d) Aposentação compulsiva; e) Demissão."
XIV. Refere o n.º 1 do artigo 316.º do ETAPM que "[a]s penas graduar-se-ão de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes que no caso concorram e atendendo nomeadamente ao grau de culpa do infractor e à respectiva personalidade.”
XV. Acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito que "[p]onderado o especial valor das circunstâncias atenuantes ou agravantes que se provem no processo, poderá ser especialmente atenuada ou agravada a pena, aplicando-se pena de escalão mais baixo ou de escalão superior do que ao caso caberia.”
XVI. Concluindo o n.º 5 do referido artigo que "[a] decisão punitiva deve referir expressamente os fundamentos de facto e de direito da pena aplicada.”
XVII. E no que à aposentação compulsiva ou demissão diz respeito, prevê expressamente o n.º 1 do artigo 315.º do ETAPM que "[a]s penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional."
XVIII. Tem sido entendimento recorrente e uniforme dos tribunais superiores da RAEM que o conceito indeterminado inserto no n.º 1 do artigo 315.º do ETAPM de "inviabilidade da manutenção da relação funcional" carece de invocação, na medida em que o legislador apenas admite a aplicação das penas expulsivas como são a aposentação compulsiva ou demissão caso o mesmo seja invocado e, consequentemente, se encontre preenchido, e
XIX. De igual modo, também carece de concretização, por parte do Administração, através de juízos de prognose produzidos pelo órgão decisor, no âmbito da discricionariedade administrativa, mas sempre vinculado aos princípios fundamentais do Direito Administrativo, através dos quais a Administração expresse os motivos que fazem com que o vínculo funcional não se possa manter.
XX. Tem sido este o entendimento repetidamente referido pela mais reputada jurisprudência dos tribunais superiores, de onde destacamos os seguintes arestos: O Acórdão de 10 de Março de 2016 do Tribunal de Segunda Instância, no âmbito do processo n.º 456/2015, o Acórdão de 21 de Janeiro de 2015 do Tribunal de Última Instância, no âmbito do processo n.º 26/2014, o Acórdão de 27 de Outubro de 2011 do Tribunal de Segunda Instância, no âmbito do processo n.º 719/2007, o Acórdão de 14 de Dezembro de 2012 do Tribunal de Última Instância, no âmbito do processo n.º 69/2012, e o Acórdão de 15 de Dezembro de 2010 do Tribunal de Última Instância, no âmbito do processo n.º 28/2010,
XXI. No processo disciplinar sub judice, quer da análise quer da acusação, quer do relatório final elaborados pelo Senhor Instrutor resulta manifesto que, em momento algum foi invocada a "inviabilidade da manutenção da relação funcional", nem, por consequência, tão pouco o conceito foi concretizado pela Administração através de juízos de prognose.
XXII. Bem pelo contrário, no ponto 7 da decisão chega-se mesmo a afirmar o seguinte: "O Instrutor não considera a conduta da Arguida como circunstância agravante nos termos do disposto no art. 293º, n.º 1 alínea b) do ETAPM, segundo o qual "são circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse em geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta".
XXIII. E o mesmo Instrutor, ainda que não afastando a responsabilidade disciplinar da Recorrente, atenua-a claramente quando (na transcrição que é feita no ponto 8 da decisão) afirma que: "De acordo com a informação pessoal da Arguida, a mesma corresponde ao disposto na alínea a) do artigo 282.º do ETAPM, que determina que "são circunstâncias atenuantes da responsabilidade disciplinar, entre outras, a prestação de mais de 10 anos de serviço classificados de "Bom". A Arguida trabalha há mais de 10 anos na Administração Pública, tendo sempre obtido a classificação de "Bom" na sua avaliação."
XXIV. Ou seja, se atentarmos no teor do relatório que serviu de base à decisão recorrida, salvo devido respeito nunca se poderia concluir que a Recorrente tenha actuado com culpa tão grave que a continuidade da relação jurídico-funcional estivesse irremediavelmente comprometida, sobretudo no caso de uma profissional com uma longa e impoluta carreira.
XXV. Por outro lado, também no despacho da Exma. Secretária para a Administração e Justiça que determina a aplicação da pena de demissão à Arguido, não é invocada a "inviabilidade da manutenção da relação funcional", nem o referido conceito indeterminado foi concretizado pela Administração através de juízos de prognose, nem tão pouco corroborado por factos dos quais resulte a referida inviabilidade.
XXVI. Era ao autor do despacho punitivo que competia alegar e provar que as alegadas infracções inviabilizariam a manutenção da situação jurídico-funcional se a Recorrente ainda se encontrasse ao serviço, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 315.º do ETAPM.
XXVII. Em momento algum do procedimento disciplinar sub judice foi apontado qualquer motivo de falta de competência ou de falta de idoneidade moral, que são os requisitos que presidem à inviabilidade da continuidade da relação laboral, não tendo sido invocada nem concretizada essa "inviabilidade da manutenção da relação funcional" da Recorrente com a Administração,
XXVIII. E se a Administração aplica determinada pena disciplinar que se mostra vinculada à verificação de pressupostos que não decorrem da factualidade dada como provada, então a Administração age em erro na qualificação jurídica dos factos provados.
XXIX. Acontece que in casu a falta desses tais requisitos que presidem à inviabilidade da continuidade da relação laboral e que culminam no erro da qualificação jurídica dos factos provados, são mesmo de impossível alegação.
XXX. Por despacho datado de 08/10/2013 constante de fls. 3 e 4 dos autos do processo disciplinar, o CCAC informou a Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça (DSAJ) que a ora Recorrente estava a ser investigada pelos crimes de abuso de poder e falsificação de documentos previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 347.º e 244.º do Código Penal (CP).
XXXI. Na sequência desse despacho a DSAJ no dia 30-10-2013 ordena a instauração do processo disciplinar e profere o despacho constante de fls.1 dos autos, nomeando o Exmo. Sr. B como Instrutor do processo disciplinar.
XXXII. O Exmo. Instrutor tendo recebido o referido despacho de nomeação no dia 04-11-2013, que por sua vez dá início no dia 14-11-2013.
XXXIII. Decorre do art. 328.°, n.º 1 do ETAPM que a instrução do processo disciplinar deve "ultimar-se no prazo de 45 dias", sendo que o referido prazo apenas pode ser prorrogado "por despacho da entidade que o mandou instaurar, por proposta fundamentada do instrutor".
XXXIV. Aplicando a norma supracitada ao caso sub judice e tendo em consideração que o instrutor mandou iniciar o processo disciplinar no dia 14-11-2013, a instrução do mesmo devia ter sido concluída no dia 29-12-2013.
XXXV. Só assim não seria caso o instrutor B tivesse pedido a prorrogação do prazo de instrução nos termos do disposto na parte final do n.º 1 do art. 328.º do ETAPM.
XXXVI. O que não se verificou na instrução deste processo disciplinar e acaba por revelar a "leveza" com que os factos praticados pela Recorrente foram tratados pela administração no processo disciplinar de que foram objecto.
XXXVII. E que, salvo devido respeito, sem dúvida alguma demonstram a falta de sintonia entre os factos praticados pela Recorrente e a pena de demissão que lhe é subsumida.
XXXVIII. Mas mais, não obstante a medida de suspensão preventiva pelo período de 90 dias prevista no art. 331º do ETAPM, ter sido aplicada à Arguida somente em 6 de Janeiro de 2014, foi a referida medida preventiva aplicada já fora dos 45 dias em que de acordo com o art. 328.°, n.º 1 do ETAPM deveria a instrução do processo disciplinar ter-se por ultimada.
XXXIX. Na verdade, só em 28-03-2014 veio o Instrutor solicitar uma prorrogação da instrução do processo disciplinar.
XL. Porém, nesta data há muito que havia decorrido o prazo legal de 45 dias a que o instrutor estava vinculado para terminar a instrução do processo.
XLI. Sendo que, em 6 de Abril de 2014 a Arguida já estava de volta para o seu cargo de Chefe de Divisão depois de cumpridos 90 dias de suspensão preventiva.
XLII. Ou seja, a Arguida voltou para o mesmo cargo que era por si ocupado à data da abertura do presente processo disciplinar.
XLIII. Donde que, a Arguida permaneceu nesse mesmo cago até 22 de Setembro de 2014 (quase 1 ano depois do conhecimento dos factos), altura em que por sua iniciativa regressa ao seu cargo inicial de técnica superior assessora do 2º escalão do quadro de pessoal da DSAJ.
XLIV. Sendo que exerceu funções como técnica superior assessora do 2º escalão do quadro de pessoal da DSAJ até 28 de Fevereiro de 2017, data em que voluntariamente apresenta a sua demissão.
XLV. Ora, conforme se pode ver do que se acaba de expor as alegadas infracções cometidas pela Arguida não obstante não terem sido alegadas como susceptíveis de inviabilizarem a manutenção da situação jurídico-funcional,
XLVI. Na prática fica aqui demonstrado que não o foram, pois a Arguida continuou a exercer funções durante mais 4 anos depois da abertura do processo disciplinar que lhe foi instaurado.
XLVII. E sem que a Administração tivesse accionado o alargamento do prazo de suspensão de 90 dias tal vem previsto no n.º 2 do art. 331º do ETAPM, para os casos em que a presença do funcionário se revele inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade (vide n.º 1 do art. 331º, in fine, do ETAPM).
XLVIII. Pois, pese embora a manutenção dessa suspensão preventiva tivesse sido proposta pelo Instrutor, foi a mesma declinada pela Exa. Secretária para a Administração e Justiça, conforme resulta do despacho datado de 28-03-2014 constante de fls. 73 dos autos.
XLIX. Ou seja, já em 2014 demonstrada ficou a inexistência do requisito previsto no art. 315º do ETAPM - "inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional" – do qual depende a aplicação da medida de demissão que, in casu, não tinha maneira de o ser por comprovada mente estar demonstrada a sua (in)verificação.
L. O que, salvo devido respeito, determina que a decisão punitiva padeça do vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que conduz à sua inevitável anulação.
LI. Sem prescindir, e se assim não se entender, sempre se dirá que a decisão recorrida padece de vicio por violação da lei, designadamente por violação do princípio da proporcionalidade.
LII. Pois, princípio da proporcionalidade exige que toda a actividade da Administração Pública seja proporcional aos fins que prossegue.
LIII. Esta proporcionalidade, também doutrinalmente conhecida como princípio da proibição do excesso, o que visa afinal é que todas as decisões (actos) administrativas, não apresentem inconvenientes excessivos para os cidadãos relativamente às vantagens que a Administração delas espera.
LIV. Com efeito, a actuação da Administração Pública da RAEM dirige-se à prossecução do interesse público no quadro do direito sancionatório disciplinar.
LV. Assim, as decisões administrativas (qualquer que seja a forma pelas mesmas revestida) assumem sempre natureza jurídica (hoc sensu, juridicamente vinculada).
LVI. Contudo, ainda que subordinadas ao direito, nem sempre as decisões jurídicas administrativas se encontram totalmente pré-determinadas ou pré-fixadas pelo legislador - em congruência com a conclusão de que o princípio da legalidade se não confunde (porque mais estrito) com o princípio da juridicidade (neste sentido, ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ, “A discricionariedade administrativa: reflexões a partir da pluridimensionalidade da função administrativa", in: Revista "O Direito", Ano 144.º, (2012), III, Coimbra, Almedina, Director: Jorge Miranda, (2013), pp. 599-651 (607-608).
LVII. Na verdade, decisões administrativas existem (como a aplicação de sanções disciplinares, no caso ao Recorrente) que carecem da formulação de juízos de mérito, oportunidade e, acima de tudo, de legalidade que, sem abdicarem dos limites impostos pela subordinação administrativa ao direito, se não reconduzem apenas à valoração de uma situação concreta à luz de critérios jurídicos.
LVIII. Neste sentido, o poder discricionário equivale ao poder de decidir à luz de critérios de mérito.
LIX. Se podem existir decisões administrativas totalmente pré-determinadas pelo legislador, o qual prescreve quer o momento da respectiva prolação, quer os respectivos conteúdo e efeitos (decisões estritamente vinculadas), o princípio da separação de poderes impede que todas as acções administrativas sejam integralmente pré-definidas ao nível legislativo (neste sentido, ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ, “A discricionariedade administrativa: reflexões a partir da pluridimensionalidade da função administrativa", in: Revista "O Direito", Ano 144.º, (2012), III, Coimbra, Almedina, Director: Jorge Miranda, (2013), pp. 599-651 (607-608).
LX. Quer dizer: a autonomia da função administrativa pressupõe que aos órgãos da Administração se viabilize a possibilidade de realização de juízos de proporcionalidade em sentido estrito (art.º 5.º, n.º 2, do CPA) que, desenvolvidos embora no quadro do direito, permitam a consideração do mérito e da oportunidade da aplicação das sanções disciplinares, sob a óptica da prossecução da legalidade e do interesse público.
LXI. Neste ponto chegamos ao fulcro da questão relativamente à total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários por parte da entidade recorrida.
LXII. Com efeito, a Entidade Recorrida, ao emitir o acto administrativo recorrido violou flagrantemente os poderes discricionários subjacentes à aplicação das sanções disciplinares ao Recorrente consubstanciada na aplicação da pena de demissão.
LXIII. É que, convém não esquecer, a justiça e a imparcialidade (art.º 7.º, do CPA) que se intenta alcançar com qualquer decisão jurídica (no caso concreto, o uso de poderes discricionários na aplicação de sanções disciplinares), concorre, no exercício da função administrativa, com a oportunidade e a conveniência (política e técnica) das decisões, oportunidade e conveniência essas que, apenas através de um juízo de prognose da Administração Pública, destinado a aferir dos resultados práticos das decisões adoptadas, se logra atingir (neste sentido, ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ, "A discricionariedade administrativa: reflexões a partir da pluridimensionalidade da função administrativa", in: Revista "O Direito", Ano 144.º, (2012), III, Coimbra, Almedina, Director: Jorge Miranda, (2013), pp. 599-651 (607-608); RUI MACHETE, "A relevância processual dos vícios procedimentais no novo paradigma da justiça administrativa portuguesa", in: Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, III, (2006), pp. 851-878; PEDRO MACHETE, "Os limites do aproveitamento do acto administrativo", in: Cadernos de Justiça Administrativa (CJA) n.º 101, Set./Out. 2013, pp. 64-67; ISABEL CELESTE FONSECA, "Tramitação e formalidades: (proposta de) golpes às garantias procedimentais fundamentais dos interessados?", in: Cadernos de Justiça Administrativa (CJA), n.º 100, Jul./ Ago. 2013, (2013), pp. 87-97).
LXIV. Compreende-se porquê: inexistindo "normas jurídicas injuntivas" no âmbito do processo disciplinar, concede-se ao responsável pela direcção do procedimento disciplinar um poder discricionário para o adequar ao fim pretendido com a decisão final, atendendo à situação concreta e visando aquela mesma situação: a decisão de adequação material - a aplicação da pena de demissão - art.º 315.º do ETAPM,
LXV. E como qualquer actuação discricionária, fica sujeita aos princípios da participação, da eficiência administrativa, da economia e da celeridade, mas, principalmente, da legalidade (art.º 3.º, n.º 1, do CPA) e da proporcionalidade em sentido estrito ou da proibição do excesso (art.º 5.º, n.º 2, do CPA).
LXVI. Por essa razão, a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários (art.º 21.º, n.º 1, alínea d), do Código do Processo Administrativo Contencioso de Macau) assume uma natureza de norma de protecção do arguido em processo disciplinar, na medida em que o exercício de poderes discricionários estão interligados com o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, enquanto princípio vinculativo das acções de todos os poderes públicos, uma vez que o que através dele (processo disciplinar) se pretende é evitar cargas coactivas excessivas ou ingerências desmedidas na esfera jurídica dos particulares (Neste sentido, Neste sentido, VIEIRA DE ANDRADE, «Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976», 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2007, p. 79-110, GOMES CANOTILHO, «Direito Constitucional e Teoria da Constituição», Coimbra, Almedina, 2003, 7.ª ed., p. 267).
LXVII. A sanção aplicada deve reflectir o grau de culpa e a gravidade da conduta, o que, manifestamente, não acontece na decisão recorrida.
LXVIII. Logo, a pena de demissão é manifestamente desproporcionada relativamente à culpa da Recorrente e excede de forma intolerável em termos de sacrifício para o requerente do interesse público, porquanto esta já não se encontra ao serviço.
LXIX. Assim sendo, a decisão punitiva padece de erro grosseiro na avaliação da culpa da Recorrente e de manifesta violação do princípio da proporcionalidade, que decorre do princípio da culpa, devendo a pena corresponder ao grau do desvalor da conduta do infractor, tendo em conta todas as circunstâncias relacionadas com a prática da infracção, devendo ser proporcional à gravidade da conduta disciplinarmente ilícita e atendendo-se a todo o circunstancialismo atenuante.
LXX. Não obstante, entendeu o Exma. Secretária para a Administração e Justiça aplicar a pena mais gravosa, a pena de demissão.
LXXI. Uma vez mais chamamos à colação os princípios essenciais que balizam a actuação da administração.
LXXII. É consabido que a pena disciplinar deve corresponder ao grau do desvalor da conduta do infractor, tendo em conta todas as circunstâncias relacionadas com a prática da infracção, devendo ser proporcional à gravidade da conduta disciplinarmente ilícita e atendendo-se a todo o circunstancialismo atenuante. (Acórdão do TSI, de 21 de Maio de 2015, Processo n.º 502/2014).
LXXIII. É a consagração do princípio da proporcionalidade que vincula a Administração em todos os seus actos, previsto no artigo 5.º, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo, onde vem expresso que "As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar."
LXXIV. Os princípios enformadores do direito adjectivo penal devem ser acolhidos e acatados neste procedimento, tal como decorre do n.º 4 do artigo 292.º do ETAPM.
LXXV. E um desses princípios é precisamente o princípio da culpa e da proporcionalidade, na exacta medida em que a sanção aplicada deve reflectir o grau de culpa e a gravidade da conduta.
LXXVI. Conforme já se deixou alegado em sede de defesa escrita, a Arguida era uma reconhecida profissional na área Financeira e Patrimonial da DASJ.
LXXVII. A Arguida iniciou funções ao serviço da DASJ no dia 10-08-1990 como oficial de 3ª classe.
LXXVIII. No dia 22-09-1999 a Arguida foi nomeada em comissão de serviço como Chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ, cargo que exerceu até ao dia 21-09-2014.
LXXIX. A 22-09-2014 passou a técnica superior assessora, do 2º escalão, do quadro de pessoal da DSAJ.
LXXX. A Arguida esteve por isso ao serviço da Administração Pública de Macau mais 25 anos, dos quais 15 anos foram passados a exercer funções de chefia.
LXXXI. Nos termos do disposto no art. 4.º da Lei 15/2009 o recrutamento de pessoal para preencher os cargos de chefia dos serviços da Administração Pública directa da RAEM faz-se por escolha, “de entre indivíduos de reconhecida idoneidade cívica e com experiência e competência profissionais adequadas ao cargo, com base em critérios de legalidade, transparência e objectividade".
LXXXII. Adiantando-se ainda na referida norma que se reconhece idoneidade cívica para o exercício de cargos de direcção e chefia aos indivíduos que, "pelo seu comportamento pessoal e profissional anterior, sejam reconhecidamente capazes de desempenhar as funções para as quais são nomeados de acordo com elevados padrões éticos de conduta, de forma a dignificar e prestigiar o cargo exercido."
LXXXIII. A Arguida sempre pautou a sua conduta pessoal e profissional por um código ético rigoroso, sendo uma pessoa de reconhecido mérito, capacidade de trabalho e sempre consciente da importância e dignidade que é o serviço público.
LXXXIV. Razões que justificaram a sua escolha como Chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ.
LXXXV. Cargo que desempenhou exemplarmente durante 15 anos, tendo os seus anos de serviço sido avaliados consecutivamente com a classificação de "Muito Bom".
LXXXVI. A Arguida sempre se comportou com a rectidão e honestidade que se exige a alguém que ocupe um cargo de chefia.
LXXXVII. Sendo que, a imputação de "culpa grave" que agora é feita à Arguida na decisão recorrida chega mesmo a ser contraditória do entendimento da Exma. Secretária para a Administração e Justiça que obstou à manutenção da medida de suspensão preventiva da Arguida (cfr. despacho datado de 28-03-2014 constante de fls. 73 dos autos).
LXXXVIII. A Arguida sempre agiu da melhor forma que sabia e podia, com os recursos disponíveis.
LXXXIX. A Recorrente sempre teve avaliações de "Muito Bom" por parte dos seus superiores, o que sempre sustentou a sua manutenção na posição de chefia que ocupou mesmo depois dos factos.
XC. Dos factos em análise nos autos não se revela qualquer culpa grave, ou negligência grosseira, no cumprimento dos seus deveres, pelo que difícil se torna alcançar a razão pela qual lhe veio a ser aplicada a pena de demissão.
XCI. A Recorrente sempre foi uma profissional dedicada, não lhe tendo nenhuma vez sido imposto um juízo de censura disciplinar.
XCII. A Recorrente sempre teve brio e orgulho no seu percurso profissional, e todo este procedimento deixou-a amargurada e angustiada, pois nunca em situação alguma considerou outra prioridade que não o bem-estar e segurança das pessoas e bens da RAEM.
XCIII. Pelo que é manifestamente desproporcional a pena que lhe é aplicada.
XCIV. Pois, salvo devido respeito a sanção a aplicar deveria ser enquadrada na prática dos factos susceptíveis de culminar com uma repreensão escrita nos termos do artigo 312.º do ETAPM.
XCV. Caso assim não se entenda, deveria ser aplicada uma pena de multa nos termos do artigo 313.º do ETAPM, pelas razões supra expostas.
XCVI. Deste modo, a decisão recorrida violou o art.º 315º do ETAPM, art.º 3.º, n.º 1, art.º 4.º, art.º 5.º, n.º 1 e 2, art.º 7.º, todos do Código do Procedimento Administrativo de Macau, art.º 2.º, art.º 21.º, n.º 1, alínea d), todos do Código do Processo Administrativo Contencioso de Macau, que devem ser interpretados no sentido de que a entidade recorrida que emitiu o acto administrativo recorrido (contidos no processo disciplinar), devendo por isso, ser declarada a nulidade do acto recorrido.
XCVII. Além disso, está também o acto recorrido inquinado do vício de violação de lei, pela total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários no que respeita à aplicação da pena de demissão, o que gera a sua anulabilidade, como resulta do artigo 124º do CPA.
* * *
Citada a Entidade Recorrida, a Senhora Secretária para a Administração e Justiça veio contestar o recurso com os fundamentos constantes de fls. 60 a 83, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. 紀律程序自2013年10月31日委任預審員,在程序開展時,涉及上訴人的案件已由廉政公署調查及其後移交檢察院跟進,基於司法保密原則,預審員未能取得充足資料作出適當的建議,因此,紀律程序預審階段曾多次延長。
2. 預審員於2018年4月17日得悉上訴人所涉刑事案於2018年1月29日轉為確定及當中的已證事實,並在收到初級法院寄送的判決書後,繼續進行有關紀律程序,並於2018年7月9日向上級呈交紀律程序的最後報告。被訴實體於2018年7月25日對上訴人作出撤職處分批示。
3. 由此可見,預審員及被訴實體一直關注此紀律程序,只是由於案件已由廉政公署調查及其後進入了司法程序,必須根據《通則》第288條第2款規定,待有刑事裁判,且有確定的事實情節後,才可跟進處理。
4. 被訴實體對上訴人作出撤職處分的決定,是基於第03/DSAJ/DAT/2018號報告書所提出的理據,當中指出了上訴人身為法務局財政暨財產處處長,為了給自己及他人獲得不正當利益,運用職權欺上瞞下。其犯罪行為被法院裁定以直接正犯、故意及既遂的方式觸犯“濫用職權罪”“公務員偽造具特別價值之文件罪”。上訴人的行為明顯已對法務局的部門形象產生負面影響。
5. 上訴人在作出犯罪行為時,是在擔任法務局財政暨財產處處長的職務期間,因履行及濫用有關職務的情況下作出。對於上訴人因具有管理公共財產的職權,但故意為其自己及他人獲得不正當利益,是明顯的濫用職權。有關行為嚴重違反及損害了公共部門謀求公共利益的目標。
6. 而且,上訴人當時身為主管,亦正因為多年來的工作評核均為“十分滿意”,其更應對自身的行為有更嚴格的要求。
7. 經考慮上訴人所作出的違紀行為的嚴重性、過錯程度、適用於上訴人的減輕情節等因素,被訴實體認為不能維持與上訴人的職務關係,並作出撤職處分。上指理據,均載於第03/DSAJ/DAT/2018號報告書及被訴實體的批示內,尤其是第03/DSAJ/DAT/2018號報告書第43(25)點至第43(28)點、第44(4)點、第47點至第49點、第51點第二段、第56點及57點及被訴實體在其批示中的第一點至第四點。
8. 被訴實體在酌科時已考慮了《通則》第282條a)項規定的減輕情節,但是,經考慮嫌疑人的過錯程度屬非常嚴重,儘管有減輕情節,亦未能達到特別減輕處分的程度,以及因此而將撤職處分減輕為處罰緊接低一級別的停職處罰。
9. 上訴人的違紀行為嚴重損害了紀律處分擬保護的重要價值,尤其是行政機關服務人員的莊重、嚴謹、遵守義務等。經考慮保護有關的重要價值,被訴實體作出撤職處分是合適的決定,沒有違反適度原則。
10. 綜上所述,本案中沒有出現上訴人所指的缺乏說明《通則》第315條第1款規定的不能維持職務上的法律狀況,沒有對事實和法律前提及事實的法律定性出現錯誤致違反法律的情況,更沒有出現違反適度原則、行使自由裁量權時存在權力偏差、明顯的錯誤或絕對不合理的情況。
11. 請求尊敬的中級法院合議庭裁定上訴人的理據不成立,並駁回本司法上訴。
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O Digno. Magistrado do Ministério Público junto do TSI emitiu o seguinte douto parecer (fls. 210 a 212):
Objecto do presente recurso contencioso é o despacho de 25 de Julho de 2018, da autoria do Exm.ª Secretária para a Administração e Justiça, que aplicou a A a pena de demissão.
A recorrente imputa ao acto os vícios de violação do artigo 315.°, n.º 1, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, de erro nos pressupostos de facto e de direito, e ainda de violação do princípio da proporcionalidade, no que é contraditada pela entidade recorrida, que assevera a legalidade da sua decisão.
Vejamos, começando pela questão do erro nos pressupostos.
A recorrente entende que ocorre o invocado erro nos pressupostos com base no seguinte raciocínio: como, após a instauração do processo disciplinar, continuou ao serviço durante mais de quatro anos, posto o que saiu do funcionalismo público por sua própria iniciativa, não podia a Administração ficcionar agora a inviabilidade da manutenção da relação funcional, que é pressuposto da pena expulsiva, para decretar a sua demissão. Ao demiti-la, a Administração laborou, ao menos implicitamente, no pressuposto de estar inviabilizada a manutenção do vínculo jurídico-funcional, pressuposto que não pode ter-se por verídico, devido àquela situação de permanência ao serviço durante mais de quatro anos.
Não assiste razão à recorrente neste ponto.
A invocação da inviabilização da manutenção da relação funcional deve feita no acto de aplicação da pena e mediante ponderação do acervo de elementos que venham a ser recolhidos no processo disciplinar. Até à aplicação da pena, e salvo caso de suspensão preventiva, a que é alheia qualquer ideia de inviabilização da relação funcional, o arguido num processo disciplinar mantém-se em funções. Foi o que sucedeu, tendo-se a situação prolongado por vários anos devido à demora do processo- crime, sendo certo que o prazo para ultimação do processo disciplinar esteve suspenso até ao trânsito em julgado da sentença proferida no processo penal. Portanto, a permanência em funções não pode, só por si, significar que os factos infraccionais investigados em processo disciplinar não irão conduzir a um veredicto de inviabilização da manutenção da relação jurídico-funcional.
Improcede este primeiro vício.
Vem também imputado ao acto o vício de violação do princípio da proporcionalidade.
A este propósito, há que notar que não resulta demonstrado que a decisão punitiva haja sacrificado ou beneficiado desproporcionadamente os interesses em confronto. Aliás, como o Tribunal de Última Instância tem vindo a decidir, a aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo - cf., V.g., acórdão de 28 de Julho de 2004, Processo 27/2003. Pois bem, enquadrando-se a conduta infraccional na hipótese legal de demissão, já que os factos integram a previsão da alínea n) do n.° 2 do artigo 315.° do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, não há censura a dirigir à Administração por alegada violação do princípio da proporcionalidade. Improcede também a alegada violação do princípio da proporcionalidade.
Atentemos, por último, na questão da violação do artigo 315.°, n.º 1, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau. A recorrente argumenta que foi condenada numa pena expulsiva sem que, ao arrepio de tal norma, houvesse sido invocada ou concretizada a cláusula geral da inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional, ou tão pouco lhe houvesse sido apontada, em qualquer momento do procedimento, falta de competência ou de idoneidade moral.
Nos termos do artigo 315.°, n.° 1, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, as penas de aposentação compulsiva e de demissão pressupõem o cometimento de infracções disciplinares que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.
De acordo com a jurisprudência da Região Administrativa Especial de Macau, cabe à Administração, através de juízos de prognose, concretizar o preenchimento desta cláusula geral, como se retira dos variados acórdãos citados pela recorrente. É também esse o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal, no âmbito de um quadro normativo muito semelhante ao de Macau, na qual se preconiza a anulação do acto que aplica pena expulsiva sem previamente ponderar se as circunstâncias concretas do caso, pela sua gravidade, inviabilizam a manutenção da relação funcional - cf., v.g., os acórdãos de 2 de Junho de 2011, Processo 0103/11, e de 25 de Fevereiro de 2016, Processo 0212/15, acessíveis através de www.dgsi.pt.
Pois bem, não obstante a entidade recorrida intentar convencer do contrário na sua contestação, em vão se procurará surpreender no acto punitivo sujeito a escrutínio, bem como no relatório que o antecedeu, referência concretizadora ou ponderativa bastante para preenchimento daquela cláusula geral, afigurando-se que a simples alusão à gravidade do acto de violação disciplinar se apresenta insuficiente para o efeito.
Padece, assim, o acto da assacada violação de lei, que o torna anulável.
Termos em que, na procedência da suscitada violação de lei, por ofensa da norma do artigo 315.°, n.º 1, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, o nosso parecer vai no sentido do provimento do recurso e da anulação do acto.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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    II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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    III – FACTOS
São os seguintes elementos, extraídos do processo principal e do processo administrativo com interesse para a decisão da causa:
     1. Em 10 de Agosto de 1990, a recorrente começou a trabalhar na Direcção dos Serviços de Justiça (a entidade precedente da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça – "DSAJ") e exercia funções de terceiro-oficial; de 22 de Setembro de 1999 a 21 de Setembro de 2014 era a chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ.
     2. A Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ é responsável pela administração dos bens imobiliários da DSAJ, incluindo os lugares de estacionamento alugados pela DSAJ no Edifício Administração Pública e em outros sítios, que eram no total cerca de 100 em número. O trabalho da administração dos lugares de estacionamento era supervisionado pela chefe (recorrente).
     3. Em 21 de Dezembro de 2010, os Serviços de Saúde devolveram à DSAJ o lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "X PLAZA"; a partir de então, o lugar de estacionamento acima mencionado ficou a ser administrado e supervisionado pela Divisão Financeira e Patrimonial do Departamento de Gestão Administrativa e Financeira da DSAJ.
     4. Em 31 de Dezembro de 2010, o Departamento de Gestão Administrativa e Financeira da DSAJ colocou o lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "X PLAZA" à disposição do Departamento de Reinserção Social.
     5. Mais tarde, quando o Departamento de Reinserção Social deixou de continuar a usar o lugar de estacionamento acima mencionado do auto-silo do "X PLAZA", não avisou por escrito o Departamento de Gestão Administrativa e Financeira; a notificação foi feita apenas pelo condutor do Departamento de Reinserção Social C à Divisão Financeira e Patrimonial; enquanto a recorrente não comunicou o caso ao seu superior – o chefe do Departamento D.
     6. Nos inícios de 2012, C devolveu pessoalmente os controlos remotos acima mencionados à recorrente.
     7. Depois, sem autorização do seu superior, a recorrente começou a usar pessoalmente em segredo os controlos remotos acima mencionados, a entrar com o carro no auto-silo do "X PLAZA" e a estacioná-lo no lugar de estacionamento n.º 6.
     8. Mais tarde, ao saber que a irmã mais nova dela (E) e os familiares não conseguiam encontrar um lugar de estacionamento para estacionar, a recorrente disse à irmã mais nova que podia estacionar gratuitamente no lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "X PLAZA".
     9. O sobrinho da recorrente F (o 2.º arguido no processo penal) ficou a saber dos seus pais que podia estacionar no lugar de estacionamento acima mencionado, então estacionava o seu veículo ligeiro n.º MJ-XX-XX lá. Mais tarde, F obteve os controlos remotos e usava-os.
     10. Como F queria usar o seu motociclo (n.º ML-XX-XX) enquanto meio de interligação, então colocava também o seu motociclo (n.º ML-XX-XX) no auto-silo acima mencionado a fim de poder usar o motociclo acima mencionado como interligação antes o depois de usar o veículo ligeiro acima mencionado.
     11. Então, em Abril de 2012, a recorrente tomou a iniciativa de alugar, em nome da DSAJ, um lugar vago atrás do lugar de estacionamento acima mencionado à associação dos proprietários do Edifício "X PLAZA", contra o pagamento da renda mensal de MOP$200,00. Mais tarde, F entrava no lugar vago conduzindo o seu motociclo, para que pudesse utilizar os 2 veículos acima mencionados de forma alternativa.
     12. Mais tarde, receando que o pessoal de administração do "X PLAZA" ficasse a saber do facto de que o veículo ligeiro acima mencionado não era veículo público do governo, que alguém apresentasse queixa e que o caso ficasse revelado, então a recorrente utilizou o computador público no escritório na DSAJ e em um papel timbrado da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça (no qual estavam impressos o brasão de armas da RAEM e os nomes em chinês e em português da DSAJ da RAEM) imprimiu "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado MJ-XX-XX", timbrou o papel com o selo da DSAJ; e depois fez colocar o papel dentro de uma capa em plástico com cola.
     13. Aproximadamente em Julho do mesmo ano, a recorrente entregou o "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado" acima mencionado feito por ela própria ao marido da irmã mais nova G e à irmã mais nova E. Disse-lhes que deviam colocar o "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado" acima mencionado perto do pára-brisa da parte da frente do veículo ligeiro acima mencionado quando eles ou F estacionavam o veículo ligeiro acima mencionado no lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "X PLAZA"; para induzirem o pessoal de administração do "X PLAZA" em engano que pensasse que o veículo tivesse sido especialmente autorizado pelo governo para poder ser estacionado no lugar de estacionamento acima mencionado.
     14. Mais tarde, ao estacionar o seu veículo ligeiro no lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "X PLAZA", F colocava o "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado" acima mencionado perto do pára-brisa da parte da frente do veículo ligeiro.
     15. Era assim até Janeiro de 2013, quando o CCAC recebeu uma queixa segundo a qual o veículo ligeiro acima mencionado estava estacionado no lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "X PLAZA" possuído pelo governo, e suspeitava-se um caso de uso indevido de bem público por particulares. Então foi aberta a investigação e em Fevereiro do mesmo ano foram pedidas à DSAJ informações sobre o lugar de estacionamento gerido pela DSAJ.
     16. Como era a recorrente que estava responsável pela administração das informações acima mencionadas, ao saber que o CCAC estava a pedir as informações, a recorrente calculou que os seus actos tinham sido denunciados; então no último terço de Março do mesmo ano, através da irmã mais nova E, disse a F que não continuasse a estacionar o veículo ligeiro no lugar de estacionamento acima mencionado. A partir de então, F deixou de estacionar lá.
     17. Após isso, ao preparar as informações em resposta ao CCAC, a recorrente não enumerou deliberadamente as informações sobre o lugar de estacionamento acima mencionado. Só quando o CCAC pediu expressa e explicitamente informações sobre o lugar de estacionamento acima mencionado é que a recorrente forneceu as informações ao superior para responder ao CCAC.
     18. Depois o CCAC tomou acções e encontrou através da busca o "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado" em causa dentro do compartimento em uma das portas do veículo ligeiro acima mencionado; e apreendeu 2 controlos remotos da recorrente e de F, respectivamente.
     19. Na altura, enquanto chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ, a recorrente tinha a responsabilidade de cumprir os seus deveres de administrar os bens da DSAJ, de fazer propostas ao superior e prestar contas em relação à utilização dos bens; no entanto, a fim de obter para si própria e para outrem benefícios ilegítimos, a recorrente fez uso dos seus poderes profissionais, enganou o seu superior e os subordinados e escondeu-lhes a verdade, não só não cumpriu o seu dever de comunicar o superior da situação da utilização o lugar de estacionamento acima mencionado e de devolver os controlos remotos, bem pelo contrário, utilizou ou fez com que outrem utilizasse indevidamente o lugar de estacionamento acima mencionado. Mais tarde, tendo recebido a ordem e os requerimentos legítimos, não providenciou propositadamente as informações relativas ao lugar de estacionamento acima mencionado ao seu superior e ao CCAC, com a intenção de esconder os factos.
     20. Na altura, enquanto chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ, a recorrente fez uso dos seus poderes profissionais para roubar o papel timbrada e o selo da DSAJ, falsificou um documento que parecia um documento oficial emitido pelo governo da RAEM, com a intenção de obter para outrem interesses ilegítimos.
     21. A recorrente sabia perfeitamente que os actos acima mencionados eram proibidos e seriam punidos pela lei.
     22. Por causa dos actos acima mencionados, a arguida ficou envolvida no processo penal comum colectivo n.º CR2-15-0338-PCC do TJB; após o julgamento, o tribunal confirmou o conteúdo dos pontos 1 e 21 acima mencionados. Já em 29 de Janeiro de 2018, o processo transitou em julgado. A arguida foi condenada pelo tribunal por ter cometido, em autoria material, de formas dolosa e consumada, 1 "crime de abuso de poder" p. e p. pelo art.º 347.º do CP, a 9 meses de pena de prisão; por ter cometido, em autoria material, de formas dolosa e consumada, 1 "crime de falsificação de documento de especial valor por funcionário" p. e p. pelo art.º 244.º, n.º 1, alínea a) conjugado com o art.º 245.º e o art.º 246.º, n.º 1 do CP, a 1 ano e 3 meses de pena de prisão; em cúmulo jurídico, a arguida foi condenada na totalidade à pena única de prisão de 1 ano e 6 meses e foi-lhe autorizada a suspensão da execução da pena por 2 anos, com a condição de que a arguida devia pagar a contribuição no valor de 10.000,00 à RAEM dentro de 1 mês depois do trânsito em julgado da decisão.
     23. De acordo com os factos provados na sentença proferida pelo tribunal, o instrutor redigiu o relatório n.º 03/DSAJ/DAT/2018, tendo considerado as circunstâncias atenuantes e agravantes, propôs aplicar à recorrente a pena de demissão, à luz do art.º 315.º, n.º 2, alínea n) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (doravante designado simplesmente por "Estatuto"), "com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar".
     24. Em 25 de Julho de 2018, a entidade recorrida proferiu o despacho. Como a recorrente acabou por ser condenada pelo tribunal por ter cometido o "crime de abuso de poder" e o "crime de falsificação de documento de especial valor por funcionário", decidiu aplicar recorrente a pena de demissão; porque o caso faria com que os cidadãos duvidassem da honestidade dos funcionários ao exercerem as funções e impactaria enormemente a imagem em geral do governo da RAEM.
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A decisão punitiva notificada contém o seguinte teor em chinês:

事由:法務局第03/DSAJ/DAT/2013號紀律程序
嫌疑人:A
根據法務局第03/DSAJ/DAT/2013號紀律程序預審員的第03/DSAJ/DAT/2018號報告書以及本辦顧問對該事由補充的第150/CSH/GSAJ/2018號建議書,以及根據十二月二十一日第87/89/M號法令核准的《澳門公共行政工作人員通則》(下稱“《通則》”)第322條、第337條至339條的規定,結合第109/2014號行政命令的授權,本人決定如下:
一、A,本紀律程序的嫌疑人,在擔任法務局財政暨財產處處長職務期間,不但沒有盡心履行職務,及時向行政暨財政管理廳X廳長報告社會重返廳已返還X中心停車場6號車位的情況,反而隱瞞該車位已空置的事實,並且偽造“特准泊車證”,嫌疑人的行為嚴重違反《通則》第279條第2款b)及d)項規定的熱心及忠誠的一般義務,以及第15/2009號法律《領導及主管人員通則的基本規定》第11條第2款規定的特別義務。
二、嫌疑人以故意的方式實施違紀行為,意圖為自己或他人取得不法利益而隱瞞局方交託其管理的財產的真實狀況,令局方原本可安排使用的車位不能繼續使用,從而導致出現局方財產利益受損的結果。
三、事件被揭發後經傳媒報道,嫌疑人的行為明顯已對法務局的部門形象產生負面影響。而嫌疑人最終被法院裁定觸犯“濫用職權罪”和“公務員偽造具特別價值之文件罪”,更會導致市民對公務人員履行職務的誠信產生質疑,對澳門特區政府的整體形象產生重大影響。
四、《通則》第315條第2款n)項的規定:“基於為本人或第三人取得任何不法利益之意圖,不及時進行適當程序而造成不履行其職務之義務,又或在法律行為中或以純事實行為使全部或部分交託其管理、監察、維護或謀求之財產利益受損害者”,可被科處強迫退休或撤職處分。嫌疑人的行為符合上述構成要件。
五、但基於嫌疑人屬公務人員公積金制度的供款人,不可科處強迫退休的處分。
六、根據《通則》第316條第1款及第2款的規定,處分係根據在個案中存在之減輕或加重情節,並尤其考慮違紀者之過錯程度及人格而酌科。經衡量在程序中證實之減輕或加重情節之特別價值後,得特別減輕或加重處分,科處比原來可科處於該個案者較低或較高之處分等級。
七、本人不把嫌疑人違紀行為造成的損害再一次考慮為嫌疑人的加重情節,即《通則》第283條第1款b)項規定的加重情節:“損害公共部門或一般利益之結果確實發生,而公務員或服務人員係可以預見或應該預見其行為必然產生此後果”。
八、根據其個人資料紀錄,嫌疑人具有及符合《通則》第282條a)項規定的減輕情節:“工作十年以上,且工作評核均為‘良’”。
九、但是,嫌疑人被法院裁定以直接正犯、故意及既遂的方式觸犯《澳門刑法典》第347條所規定及處罰的一項“濫用職權罪”及第244條第1款a項配合第245條及第246條第1款所規定的一項“公務員偽造具特別價值之文件罪”。因此,可見到嫌疑人的過錯程度非常嚴重。雖然有上述減輕情節,亦達不到特別減輕處分的程度,更不能因這減輕情節而把預審員建議的撤職處分減輕為處罰緊接低一級別的停職處罰。
十、綜上所述,並根據《通則》第316條第1款及第2款的規定,經考慮嫌疑人的過錯程度、人格、違紀行為的嚴重性,減輕情節等等,本人決定對嫌疑人科處撤職處分。
十一、如不服本決定,可於三十日內向中級法院提起司法上訴。
十二、交法務局依法作出通知。

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    IV – FUNDAMENTOS
A resolução do presente recurso passa pela análise e resolução das seguintes questões, por a Recorrente entender que a decisão ora posta em crise padece dos seguintes vícios:
   1) – Erro nos pressupostos de facto e de direito;
   2) –Violação do artigo 315º/1 do ETAPM;
   3) - Violação do princípio de proporcionalidade.
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Comecemos pela primeira questão.
A Recorrente argumentou da seguinte forma: depois ter sido instaurado o respectivo processo disciplinar contra ela por ter sido imputados factos constitutivos da infracção disciplinar, ela chegou a trabalhar mais de 4 anos e depois, por iniciativa própria, ela saiu da função pública mediante exoneração voluntária. O que é suficiente para demonstrar que os factos a ela imputados não eram suficientes para concluir pela inviabilidade da manutenção da relação laboral com a Administração Pública.
Neste ponto, o Digno. Magistrado do MP junto deste TSI bem posicionou a questão e teceu argumentos bem fundamentados que merecem a nossa concordância:
“(…) A invocação da inviabilização da manutenção da relação funcional deve feita no acto de aplicação da pena e mediante ponderação do acervo de elementos que venham a ser recolhidos no processo disciplinar. Até à aplicação da pena, e salvo caso de suspensão preventiva, a que é alheia qualquer ideia de inviabilização da relação funcional, o arguido num processo disciplinar mantém-se em funções. Foi o que sucedeu, tendo-se a situação prolongado por vários anos devido à demora do processo- crime, sendo certo que o prazo para ultimação do processo disciplinar esteve suspenso até ao trânsito em julgado da sentença proferida no processo penal. Portanto, a permanência em funções não pode, só por si, significar que os factos infraccionais investigados em processo disciplinar não irão conduzir a um veredicto de inviabilização da manutenção da relação jurídico-funcional. (…)”.
Nesta óptica, são infundados os argumentos da Recorrente e como tal é de julgar improcedente o recurso por ela interposto nesta parte.
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Relativamente à 2ª questão, que é a de saber se a decisão recorrida violou ou não o artigo 315º/1 do ETAPM.
Ora, o artigo 315º (Aposentação compulsiva ou demissão) o ETAPM dispõe:
1. As penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.
2. As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos funcionários e agentes que, nomeadamente:
a) Agredirem, injuriarem ou desrespeitarem gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, nos locais de serviço ou em serviço;
b) Praticarem actos de insubordinação ou de indisciplina graves ou incitarem à sua prática;
c) No exercício das suas funções praticarem actos manifestamente ofensivos das instituições e princípios constitucionais;
d) Praticarem ou tentarem praticar qualquer acto que lese ou contrarie os superiores interesses do Estado ou do Território;
e) Participarem infracção disciplinar de algum funcionário ou agente, com falsidade ou falsificação, quando daí resulte a injusta punição do denunciado;
f) Dentro do mesmo ano civil derem 20 faltas seguidas ou 30 interpoladas, sem justificação;
g) Revelem comprovada incompetência profissional;
h) Violarem segredo profissional ou cometerem inconfidências de que resultem prejuízos materiais ou morais para a Administração ou para terceiro;
i) Em resultado do lugar que ocupem, aceitarem ilicitamente ou solicitarem, directa ou indirectamente, dádivas, gratificações, participações em lucros ou outras vantagens patrimoniais, ainda que sem o fim de acelerar ou retardar qualquer serviço ou expediente;
j) Comparticiparem ilicitamente em oferta ou negociações de emprego público;
l) Forem encontrados em alcance ou desvio de dinheiros públicos;
m) Tomarem parte ou interesse, directamente ou por interposta pessoa, em qualquer contrato celebrado ou a celebrar com qualquer organismo ou serviço da Administração;
n) Com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar;
o) Forem condenados, por sentença transitada em julgado em que seja decretada pena de demissão ou, por qualquer forma, revelem indignidade ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
3. A pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o funcionário ou agente reunir o período mínimo de 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, na ausência do que lhe será aplicada a pena de demissão. (*)
É de ver que o legislador enumera várias situações em que pode ser aplicada a pena de demissão. O aplicador do direito tem o dever de indicar expressa e correctamente os fundamentos para tomar a respectiva decisão, expondo com clareza e lógica o seu raciocínio.

Compulsados os elementos constantes dos autos, a decisão sancionatória foi tomada com base nos seguintes argumentos:
“(…)
1. A arguida praticou dolosamente a infracção disciplinar, ocultou a situação verdadeira do património que lhe cumpre administrar, com intenção de obter para si ou para outrem benefício ilícito, impediu a DSAJ de usar o lugar para estacionamento que pudesse ter usado, resultando em prejuízo patrimonial da DASJ.
2. O incidente foi revelado e divulgado pelos órgãos de comunicação social, a conduta da arguida exerceu obviamente influências negativas à imagem da DSAJ. A arguida foi condenada pelo Tribunal pela prática do crime de abuso de poder e do crime de falsificação de documentos de valor especial por funcionário público, levando os cidadãos a duvidar a honestidade de cumprimento das funções pelos funcionários públicos e influenciando a imagem global do Governo da RAEM. (sublinhado nosso)
3. Dispõe o art.º 315.º n.º 2 alínea n) do Estatuto que: àqueles que “Com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar” são aplicáveis as penas de aposentação compulsiva ou de demissão. No caso da arguida, estão preenchidos os requisitos referidos. (sublinhado nosso)
4. Porém, a arguida é contribuinte do Regime de Previdência dos Trabalhadores dos Serviços Públicos, não lhe é aplicável a pena de aposentação compulsiva.
5. Dispõe o art.º 316.º n.º 1 e 2 do Estatuto que, As penas graduar-se-ão de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes que no caso concorram e atendendo nomeadamente ao grau de culpa do infractor e à respectiva personalidade. Ponderado o especial valor das circunstâncias atenuantes ou agravantes que se provem no processo, poderá ser especialmente atenuada ou agravada a pena, aplicando-se pena de escalão mais baixo ou de escalão superior do que ao caso caberia.
6. Não considero de novo os danos causados pela infracção disciplinar da arguida como circunstância agravante, isto é, a circunstância agravante prevista pelo art.º 283.º n.º 1 alínea b) do Estatuto: “A produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta”.
7. Conforme o seu registo das informações pessoais, existe circunstância atenuante prevista pelo art.º 282.º alínea a) do Estatuto: “A prestação de mais de 10 anos de serviço classificados de «Bom»”.
8. Entretanto, a arguida foi condenada pelo Tribunal pela prática em autoria material e da forma dolosa e consumada dum crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 347.º do Código Penal, e dum crime de falsificação de documentos de valor especial por funcionário público, p. e p. pelo art.º 244.º n.º 1 alínea a), em conjugação com os art.º 245.º e 246.º n.º 1. Pode-se ver que, é muito grave o grau de culpa da arguida, embora haja a circunstância atenuante referida, a pena não pode ser especialmente atenuada, nem se pode, como propôs o instrutor, atenuando, aplicar a pena de suspensão de funções, pena de escalão mais baixo do que ao caso caberia.
9. Pelo exposto, nos termos do art.º 316.º n.º 1 e 2 do Estatuto, ponderando o grau de culpa da arguida, a sua personalidade, a gravidade da infracção disciplinar e a circunstância atenuante, decido aplicar à arguida a pena de demissão.
10. Se não se conformar com a decisão, pode interpor recurso contencioso ao TSI dentro de 30 dias. (…)”.

Ora, na aplicação das penas, deve atender-se a um conjunto de factores:
- A natureza e a gravidade dos factos;
- A categoria do funcionário ou agente;
- A sua personalidade;
- O grau de culpa do infractor;
- Os danos e prejuízos causados;
- A perturbação produzida no normal funcionamento dos serviços;
Em geral, a todas as circunstâncias em que a infracção tiver sido cometida que militem contra ou a favor do arguido.
A decisão acima transcrita faz referência aos factos cometidos pela Recorrente que põe em causa a imagem do serviço a quem a mesma pertencia, o que, tendo em conta a natureza e a gravidade dos factos, determina a inviabilidade da manutenção da relação de emprego público com a arguida/Recorrente.

É ideia dominante que “as penas de inactividade ou de aposentação compulsiva e demissão são aplicáveis às infracções a seguir indicadas, conforme, ponderadas todas as circunstâncias atendíveis, inviabilizem ou não a manutenção da relação funcional”, o que significa que não basta a prática de “conduta constitutiva de crime…que possa atentar contra o prestígio e dignidade da função” ou que traduza a “violação de segredo profissional e omissão de sigilo devido relativamente aos assuntos conhecidos em razão do cargo ou da função, sempre que daí resulte prejuízo para o desenvolvimento do trabalho policial ou para qualquer pessoa” (Ac. do STA de 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Há-de haver, além disso, um “quid” perturbador da relação de confiança recíproca que inviabilize a manutenção do vínculo profissional. Como ainda recentemente se disse em aresto do STA, a pena de demissão aplica-se «a comportamentos que atinjam um grau de desvalor de tal modo grave que mine e quebre, definitiva e irreversivelmente, a confiança que deve existir entre o serviço público e o agente» (Ac. do STA de 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Como se decidiu no Ac. de 01.04.2003 do mesmo Supremo – Rec. 1.228/02, “A valoração das infracções disciplinares como inviabilizantes da manutenção da relação funcional tem de assentar não só na gravidade objectiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do acto e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções” (no mesmo sentido, os acórdãos de 18.6.96, proc.º nº 39.860, de 16.5.02, proc.º nº 39.260, de 5.12.02, proc.º nº 934/02, de 24/03/2004, Proc. nº 0757/03; e 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Quer dizer, se é certo que ao órgão com competência disciplinar se reconheça «no preenchimento dessa cláusula geral, ampla margem de liberdade administrativa, tal tarefa está limitada pelos princípios da imparcialidade, justiça e proporcionalidade – além de ficar, depois, sujeita ao poder sindicante dos tribunais administrativos, se forem detectáveis erros manifestos» (cf. o cit. 24/03/2004, Proc. nº 0757/03; tb. AC. do STA/Pleno de 19/03/99, Proc. nº 030896).
Ou, como é dito noutro aresto do STA do Portugal, “…o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, (…) constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante um juízo de prognose. Contudo, a jurisprudência do STA, tem realçado que tais juízos têm de assentar em pressupostos como a gravidade objectiva do facto cometido, o reflexo no exercício das funções e a personalidade do agente se revelar inadequado para o exercício de funções públicas. Confrontar, a título meramente exemplificativo, os Acs. de 6-10-93 – Rec. 30463 e de 18-6-96 – Rec. 39860” (Ac. do STA de 2/12/2004, Proc. nº 01038/04).

A aplicação de uma medida expulsiva - quer se trate de demissão quer de aposentação compulsiva - só pode ter lugar quando a conduta do infractor atinge de tal forma grave o prestígio e a credibilidade da instituição de que faz parte que a sua não aplicação não só iria contribuir para degradar a imagem de seriedade e de isenção dessa instituição como também poderia ser considerada pela opinião pública como chocante ou escandalosa.
É o caso dos autos. Pois, neste ponto foram tecidos os seguintes argumentos:
《通則》第315條第2款n)項的規定:“基於為本人或第三人取得任何不法利益之意圖,不及時進行適當程序而造成不履行其職務之義務,又或在法律行為中或以純事實行為使全部或部分交託其管理、監察、維護或謀求之財產利益受損害者”,可被科處強迫退休或撤職處分。嫌疑人的行為符合上述構成要件。
Sendo certo que a fundamentação podia ser aperfeiçoada, mas pela forma da argumentação e pelos factos invocados, entendemos que a fundamentação cumpriu as exigências mínimas, expondo com clareza o raciocínio de quem tinha a competência para decidir, invocando os factos básicos que levam à conclusão da impossibilidade de manutenção da relação laboral entre a arguida/Recorrente e a Administração Pública.
Ora, nesta matéria, é do entendimento que a aplicação daquelas penas expulsivas aos funcionários ou agentes da função pública depende da prática de “infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional” (art.º 315º/1 do ETAPM), isto é, de comportamentos capazes de minar de forma inapagável não só a imagem de prestígio e de credibilidade daquela instituição como também a confiança que nelas depositam os cidadãos e que, por isso, impossibilitem a relação de confiança indispensável à manutenção do vínculo funcional.

No caso, estão verificados os requisitos exigidos para aplicar tal pena de demissão tal como afirmou a Entidade Recorrida na decisão recorrida.
Pelo que, é de julgar improcedente o recurso nesta parte por não se verificar o alegado vício da violação do artigo 315º/1 do ETAPM.
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Finalmente, resta ver a última questão que é a violação do princípio da proporcionalidade.
O princípio de proporcionalidade, entendido, em sentido amplo, como proibição do excesso, postula que a Administração prossiga o interesse público pelo meio que represente um menor sacrifício para as posições dos particulares. Incorpora, como subprincípio constitutivo, o princípio da exigibilidade, também conhecido como princípio da necessidade ou da menor ingerência possível, que destaca a ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível.
Para maior operacionalidade deste princípio, a doutrina acrescenta, entre outros elementos, o da exigibilidade espacial, que aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção na esfera jurídica das pessoas cujos interesses devam ser sacrificados (vd. J. J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 266, ss.).
Os factos imputados à Recorrente integram na infracção prevista no artigo 315º/2-n) do ETAPM, por ter sido condenada criminalmente pela prática de factos integradores do crime de abuso de poder e do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 244º/1-a), 245º e 246º/1, e, ainda 347º, todos do CPM, circunstâncias estas que levaram a Entidade Recorrida a aplicar-lhe a pena de demissão, por entender que tais factos causaram impacto negativo na instituição que albergava a Recorrente e se revelou susceptível de atingir a dignidade de que é credora e o prestígio do organismo governamental em que se integra; entendendo também que se mostra suficientemente justificada a inviabilidade da manutenção da relação funcional, o que justificava, no entender da Entidade Recorrida, o recurso à sanção radical de demissão.
Sopesando as vantagens e os inconvenientes da aplicação de uma pena expulsiva, afigura-se-nos que esta aplicação é necessária para atingir os fins de reposição do prestígio da instituição abalado com a conduta da Recorrente, tendo em conta a gravidade dos factos cometidos.
Somos, pois, de opinião que a aplicação de uma pena expulsiva não é, no caso, excessiva e, portanto, é proporcionada, tanto para os interesses do particular como para o interesse público. Daí que se conclua que o acto punitivo deve ser mantido por não violar o princípio da proporcionalidade.
Julga-se, deste modo, improcedente o recurso nesta parte.
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Síntese conclusiva:
    I - As penas de inactividade ou de aposentação compulsiva e demissão são aplicáveis às infracções graves que, ponderadas todas as circunstâncias atendíveis, inviabilizem a manutenção da relação funcional, o que significa que não basta a prática de conduta constitutiva de crime que possa atentar contra o prestígio e dignidade da função.
    II - Há-de existir um “quid” perturbador da relação de confiança recíproca que inviabilize a manutenção do vínculo profissional. O preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante um juízo de prognose, assente em pressupostos como a gravidade objectiva do facto cometido, o reflexo no exercício das funções e a personalidade do agente que se revela inadequado para o exercício de funções públicas, factores estes que devem ser base da decisão administrativa, como elementos concretizadores do referido conceito inderdeterminado.
III – A decisão ora posta em crise invoca os factos assentes que constituem pressupostos da aplicação do artigo 315º/1 do ETAPM, e também concluiu pela inviabilidade de manutenção da relação laboral entre a Recorrente e a Administração Pública, tendo em conta a gravidade dos factos cometidos, é de manter a decisão punitiva uma vez que não se verificam os alegados vícios invalidantes.
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Tudo visto, resta decidir.
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    V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente, que se fixam em 6 UCs.
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Notifique e Registe.
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RAEM, 16 de Janeiro de 2020.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Joaquim Teixeira de Sousa
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