打印全文
Processo n.º 1/2020
Conflito de competência
Requerente: Ministério Público
Data do Acórdão: 25 de Março de 2020
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai
  
Assuntos: - Execução da sentença penal
     - Embargos à execução
     - Distribuição do recurso
     - Competência das secções do Tribunal de Segunda Instância
  
  SUMÁRIO
A “secção comum”, com competência para julgar as restantes causas do Tribunal de Segunda Instância, é a competente para conhecer o recurso interposto da sentença proferida nos autos de embargos deduzidos à execução instaurada, que corre por apenso ao processo penal de condenação para pagamento dos juros devidos da indemnização civil arbitrada neste processo, devendo o recurso ser distribuído à mesma secção, e não à secção de processos em matéria penal.
  Relatora,
  Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I - Relatório
O Digno Magistrado do Ministério Público requer ao Tribunal de Última Instância a “resolução do conflito de distribuição” verificado nos autos de recurso cível e laboral n.º 1101/2019 do Tribunal de Segunda Instância, por existir uma divergência negativa entre dois juízes relativamente à designação da Secção do TSI na qual o recurso há-de correr os seus termos.
O recurso foi interposto pela demandante civil A da sentença proferida no âmbito dos embargos deduzidos à execução por si instaurada, por apenso (apenso D) ao processo n.º CR2-15-0011-PCC do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base.
Admitido o recurso, os autos subiram ao TSI e foram distribuídos como autos de recurso penal, sendo Relator o Exmo. Juiz Dr. B, que proferiu o despacho no sentido de ordenar a nova distribuição do processo por entender incompetente a secção de processos em matéria criminal para julgar o recurso.
Feita a nova distribuição, os autos foram redistribuídos ao Exmo. Dr. C, Juiz da secção de processos com competência para julgar as causas não penais, que por sua vez determinou a autuação dos autos recursais em recurso penal.
Subidos os autos a este tribunal de Última Instância, foram notificados os indicados dois Juízes para responderem, tendo o Dr. B dito que mantinha a posição jurídica já veiculada no seu despacho.
Também notificado, veio a recorrente A (demandante civil nos autos n.º CR2-15-0011-PCC) pronunciar-se sobre a questão, opinando que os autos de recurso devem ser autuados como autos de recurso penal.
E o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, entendendo que “o presente conflito negativo deve ser resolvido, determinando-se a distribuição do recurso não à secção criminal mas sim à outra secção do TSI, como recurso em processo civil e laboral”.

II - Factos
Constatam-se nos autos os seguintes factos com interesse para resolver a questão em causa:
- Por acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base no processo n.º CR2-15-0011-PCC do 2.º Juízo Criminal do TJB, foi a D (Companhia de Seguros) condenada a pagar a A a quantia indemnizatória de MOP$2,384,202.00, acrescida de juros legais desde a data da decisão até ao integral pagamento da indemnização.
- Inconformada com a decisão, recorreu a D para o Tribunal de Segunda Instância, que julgou parcialmente procedente o recurso, tendo alterado para MOP$2,279,202.00 o montante arbitrado pelo TJB, acrescido de juros legais.
- A D continuou a recorrer para o Tribunal de Última Instância, recurso este que foi julgado improcedente.
- A D efectuou o pagamento de MOP$2,279,202.00, sem que tenha pago os juros.
- A intentou uma acção executiva, que corre por apenso aos autos do processo-crime, contra a D, que por seu turno deduziu a oposição à mesma por meio de embargos de executado, opondo-se à liquidação e requerendo simultaneamente que lhe fosse deferida a possibilidade de proceder a uma prestação espontânea de caução.
- O Tribunal proferiu a sentença constante de fls. 28 a 30 dos presentes autos, declarando improcedentes os embargos deduzidos pela D, mas procedente a oposição à liquidação, e determinando que a secção central proceda à contagem dos juros devidos.
- Dessa decisão recorreu A para o TSI.

III - Fundamentação
A questão suscitada reside em saber qual é a secção do TSI competente para julgar um recurso interposto da sentença proferida no âmbito dos embargos deduzidos à execução instaurada, por apenso aos autos de processo penal, para obter o pagamento dos juros devidos.
Como é sabido, no TSI há duas secções, uma de processos em matéria penal com competência para julgar as causas de natureza penal e outra com competência para julgar as restantes causas (n.º 2 do art.º 38.º da Lei de Bases da Organização Judiciária).
No entendimento do Exmo. Sr. Dr. B, Juiz da secção de processos em matéria penal, a sentença penal que conheceu do pedido de indemnização civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficiência de caso julgado às sentenças civis e a execução do caso julgado civil e os incidentes surgidos nessa execução não são de conhecimento do Tribunal penal, pelo que ordenou a nova distribuição dos autos recursórios.
Por seu turno, considera o Exmo. Sr. Dr. C, Juiz da secção de processos com competência para julgar as restantes causas, que o recurso interposto não devia ser distribuído como recurso em processo cível e laboral, determinando-se assim a autuação dos autos em recurso penal.
Fazendo-se, a título comparativo, referência à jurisprudência de Portugal, é de notar que a questão foi também discutida em casos similares, sendo que se encontram acórdãos que apontam para sentidos diferentes: uns entendem que o critério definidor da competência é o da natureza da causa, sendo irrelevante a circunstância de a decisão recorrida correr num processo apenso a um processo criminal1, enquanto outros consideram competentes as secções criminais, até se pode dizer que a competência das secções criminais é uma consequência decorrente da competência da Vara Criminal para executar as decisões de natureza cível abrangidas nas sentenças penais.2
Vejamos.

A indemnização a favor da demandante civil A foi arbitrada no processo penal.
Ao abrigo do disposto no art.º 60.º do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, em acção cível, nos casos previstos na lei.
É chamado o princípio de adesão, segundo o qual o pedido de indemnização civil deve ser deduzido no processo penal, salvo os casos excepcionais previstos no art.º 61.º do CPP.
Foi assim que sucedeu no processo n.º CR2-15-0011-PCC, tendo a demandante civil deduzido o pedido de indemnização civil no processo penal.
Quanto à execução da sentença penal, dispõe o art.º 452.º do CPP que “Salvo disposição em contrário, a execução corre nos próprios autos”.
Nos termos do art.º 14.º n.ºs 1 e 3 do CPP, para a execução da sentença penal é competente o tribunal que em primeira instância tiver proferido a decisão, salvo disposição legal em contrário. Se a decisão tiver sido proferida pelos tribunais superiores, a execução corre no tribunal de primeira instância.
A lei não fez distinção entre a parte decisória penal e a parte civil eventualmente contida na sentença.
No que concerne à indemnização civil, estabelecem os n.ºs 1 e 2 do art.º 71.º do CPP que, se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o juiz condena no que se liquidar em execução de sentença, caso em que a execução corre em acção cível separada, servindo de título executivo a sentença penal.
E ao abrigo do n.º 3 do art.º 21.º e do n.º 1 do art.º 700.º do Código de Processo Civil, a execução corre por apenso ao processo onde a decisão foi proferida e os embargos devem ser autuados por apenso à execução.
Daí que em regra a execução da sentença penal corre no tribunal de primeira instância, sendo que a execução da decisão relativa à indemnização civil corre por apenso ao processo principal de condenação, a não ser no caso de condenação na liquidação em execução de sentença, em que a execução corre em acção cível separada, enquanto os embargos correm também por apenso.
No caso, está em causa um recurso interposto da decisão proferida nos autos de embargos deduzidos à execução instaurada para obter o pagamento dos juros da quantia indemnizatória arbitrada no processo penal.
Não se está perante uma condenação na liquidação em execução de sentença, pelo que a execução (para pagamento da quantia certa), bem como os embargos à execução, correm os termos por apenso ao processo penal.
É verdade que a matéria relativa à execução para pagamento da quantia certa e ao incidente de embargos à execução tem a natureza civil, à qual se aplicam as normas de Processo Civil.
Conforme a disposição do art.º 73.º do CPP, “a sentença penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido de indemnização civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficiência de caso julgado às sentenças civis.
Mesmo assim, a execução da decisão sobre a indemnização civil contida na sentença penal corre por apenso aos autos de processo-crime, salvo a excepção prevista no n.º 2 do art.º 71.º do CPP.

O presente conflito verifica-se em relação à distribuição dos autos de recurso.
Nos termos do art.º 37.º da LBOJ, para efeitos de distribuição, existem no TSI as várias espécies, incluindo “recursos em processo civil e laboral” e “recursos em processo penal”, para além das outras aí indicadas.
A lei fala de recursos em “processo” civil e laboral e em “processo” penal, não de recursos em “matéria” ou “natureza” civil ou penal.
À primeira vista, parece que, no nosso caso concreto, o recurso deve ser distribuído como recurso em processo penal, já que foi interposto da decisão proferida nos autos de embargos deduzidos à execução, que corre por apenso ao processo de condenação, e tanto este processo principal como os seus apensos formam um processo, no seu todo.
No entanto, há que chamar à colação a disposição do n.º 2 do art.º 38.º da LBOJ, segundo a qual o TSI é composto por duas secções, uma de processos em matéria penal com competência para julgar as causas de natureza penal e outra com competência para julgar as restantes causas.
A actual redacção do n.º 2 do art.º 38.º é dada pela Lei n.º 9/2009, que introduz alteração à LBOJ,tendo criado no TSI as duas secções, face ao aumento do quadro de juízes no TSI e à necessidade de especialização dos mesmos juízes.
Como se sabe, com a Lei n.º 9/2004 foi aprofundado o grau da especialização dos tribunais de primeira instância, criando-se vários juízos com competências diferentes, consoante a natureza das causas a julgar nos juízos, a saber: Juízos Cíveis, Juízos de Pequenas Causas Cíveis, Juízos Criminais, Juízos Laborais e Juízos de Família e de Menores. E os processos passaram a ser distribuídos e julgados nos respectivos juízos, consoante a sua natureza e a matéria em causa, com vista a celeridade, eficiência do desempenho do Tribunal Judicial de Base e à qualidade das suas decisões.
E com a especialização dos juízes do TSI, concretizada com a Lei n.º 9/2009, pretende-se atingir o mesmo objectivo: a eficiência e a qualidade das decisões do TSI, que foi efectivamente atingido.
Ao abrigo do n.º 2 do art.º 38.º da LBOJ, as duas secções do TSI têm respectivamente competência para julgar as causas de natureza penal (secção de processos em matéria penal) e para julgar as restantes causas (secção de processos em matéria civil, laboral e administrativa).
Fica assim claramente evidenciada a intenção legislativa de repartir entre as duas secções do TSI as competências, atribuindo-as consoante a natureza da causa concreta que está em discussão e que cabe ao tribunal a julgar.
Mais do que vidente é que o legislador dá maior relevância à natureza da matéria que está em causa.
Daí que, não obstante a disposição legal sobre a distribuição do processo em várias espécies (art.º 37.º da LBOJ), certo é que, com a alteração posterior da lei que visa a especialização do TSI, com vista à celeridade, eficiência e qualidade das decisões, assume agora maior relevância o critério fixado no n.º 2 do art.º 38.º da LBOJ, que é a natureza da causa a julgar pelo tribunal, para definir a competência de cada secção.
Assim sendo, inclinamo-nos para adoptar a natureza da causa como critério para a distribuição dos processos de recurso.
Por outras palavras, se a matéria em discussão tiver natureza civil, não cabe à secção de processos em matéria penal para conhecer o recurso, mesmo que ele tenha origem no processo que corre por apenso aos autos de processo-crime, sendo esta circunstância irrelevante para determinar a secção competente.
E a circunstância de a execução correr por apenso ao processo de condenação não altera a natureza civil da causa a julgar.

No caso sub judice, a matéria submetida à apreciação do TSI (embargos à execução instaurada para obter o pagamento dos juros da quantia indemnizatória) tem, sem dúvida, a natureza exclusivamente civil, ainda que os respectivos autos corram por apenso ao processo penal de condenação.
Mesmo reconhecendo que tanto o processo principal de condenação como os seus apensos formam um processo, no seu todo, certo é que, mesmo assim, a execução da decisão sobre a indemnização civil tem sempre autonomia em relação à condenação penal.
Tal como entende o Digno Magistrado do Ministério Público, “na verdade, embora corra por apenso, a execução não é incidental relativamente ao processo da condenação, fruindo, antes, de autonomia em relação ao mesmo. A apensação, nesse caso, não é expressão de qualquer dependência do processo executivo relativamente ao processo da condenação”.
Por outro lado, face ao trânsito em julgado da sentença condenatória, que é o pressuposto da respectiva execução (art.º 678.º n.º 1 do CPC), tal como acontece no presente caso, e consequentemente a extinção da instância do processo em que foi proferida a sentença (art.º 229.º, al. a) do CPC), “não se justifica que um processo que na realidade está findo continue a determinar a natureza de outros processos pendentes que, embora a ele apensos, dele são autónomos”.
Ora, tendo em consideração a natureza civil, indiscutível, dos autos de execução e dos seus incidentes, a criação de duas secções no TSI com competências repartidas, na sequência da especificação dos juízes com vista à eficiência e à qualidade das decisões desse Tribunal, entendemos que não cabe à secção de processos em matéria penal para apreciar o recurso interposto da decisão tomada no âmbito dos embargos deduzidos à execução instaurada, por apenso aos autos de processo penal, para pagamento coercivo da indemnização civil (e dos juros devidos) arbitrada nesse processo, sendo competente a secção com competência para julgar as restantes causas que não criminais, que está vocacionada para tal efeito.
É que a atribuição de competência a esta secção corresponde mais à intenção legislativa da especialização dos juízes do TSI e satisfaz mais as necessidades de eficiência e de qualidade das decisões do mesmo Tribunal.
Concluindo, é de declarar competente a secção com competência para julgar as restantes causas para conhecer o recurso, devendo a distribuição dos autos ser feita em conformidade.

VI - Decisão
Face ao exposto, acordam em declarar competente a secção com competência para julgar as restantes causas do tribunal de Segunda Instância para conhecer o recurso interposto por A da sentença proferida nos autos de embargos de executado, autuados por apenso (apenso D) ao processo n.º CR2-15-0011-PCC do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, determinando a distribuição do recurso à mesma secção, e não à secção de processos em matéria penal.
Sem custas.

Macau, 25 de Março de 2020

 Juízes: Song Man Lei (Relatora) – José Maria Dias Azedo – Sam Hou Fai


1 Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2-3-2016, Proc. n.º 920/99.3TBPBL.C1; Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-4-2012, Proc. n.º 41/09.2TOLSB.L1-A.S1.
2 Cfr. Ac.s do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 9-10-2009, Proc. n.º 76/09.5YFLSB e de 17-12-2009, Proc. n.º 09P0612.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




4
Processo n.º 1/2020