Processo n.º 101/2019. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Secretário para a Segurança.
Recorrida: A.
Assunto: Penas disciplinares. Aposentação compulsiva. Discricionariedade. Princípios gerais do Direito Administrativo. Princípio da proporcionalidade. Sindicância judicial.
Data da Sessão: 30 de Outubro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I - A aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
II – No âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro.
III - A intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A, Bombeira de 1.ª classe do Corpo de Bombeiros, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho de 8 de Outubro de 2018, do Secretário para a Segurança, que lhe aplicou a pena disciplinar de aposentação compulsiva
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 30 de Maio de 2019, concedeu provimento ao recurso e anulou o acto recorrido por violação do princípio da proporcionalidade e erro manifesto na escolha da medida sancionatória aplicada.
Inconformado, interpõe o Secretário para a Segurança recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), tendo imputado ao acórdão recorrido violação do disposto no artigo 20.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, defendendo não ter havido violação do princípio da proporcionalidade e erro manifesto na escolha da medida sancionatória aplicada.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
- Na sequência do processo disciplinar instaurado contra a Recorrente, foi esta punida inicialmente com a pena de demissão, depois convolada para a aposentação compulsiva;
- A Recorrente (2ª Ré do processo de crime) foi condenada pelo TJB por acórdão proferido no processo CR2-14-0310-PCC, pela prática de crime de fraude de mercadoria, p. e p. pelo artigo 28º/1-b) da Lei nº 6/96/M, de 30 de Dezembro;
- A decisão condenatória foi confirmada pelo TSI, não obstante ter sido feita qualificação jurídica diferente sobre os factos imputados.
- No acórdão do TSI consideraram-se provados os seguintes factos:
- O 1º arguido é o responsável da “Medicina B”, firma de importação, exportação e venda por grosso de produtos farmacêuticos estabelecida em Macau a 28/06/1990. O 2º arguido é o responsável pelas actividades da firma em Macau.
- A 23/12/2009, o pessoal dos Serviços de Saúde fiscalizou a Farmácia Chinesa C que se situa no [Endereço (1)], e encontrou 6 frascos de óleo medicinal chinês “Óleo de Cártamo, Tienqi, Três Tipos de Cobras de Marca Tigre (120ml)” que estavam postos à venda na sala de recepção do público, descobrindo que o número de lote indicado nas embalagens externas era de “1011” e o espaço onde se indicou a data de válida foi colocado um papel adesivo com os dígitos “5-2012”, mas o número de lote e a data de validade nas embalagens internas foram tapados com papel adesivo laser.
- Efectuada a inspecção, a parte tapada pelo papel adesivo era a verdadeira data de validade, ou seja, “7.2008”.
- As referidas mercadorias foram fornecidas à Farmácia Chinesa C pelo 2º arguido em nome da “Medicina B”.
- A 01/04/2010, o pessoal dos Serviços de Saúde fiscalizou a Farmácia Chinesa D que se situa na [Endereço (2)], onde encontrou 5 frascos de “Óleo de Salvamento de Coração de Singapura (20ml)” e 7 frascos de “Óleo Multifuncional de Centropus sinensis de Singapura (10ml)” que estavam postos à venda e nas suas embalagens externas constavam a data de validade “10/2012” e os dígitos “3/2013”, mas a data de validade original “8/2008” foi coberta. Quanto aos 7 frascos “Óleo Multifuncional de Cúrcuma de Singapura (40ml)” que estavam postos à venda, os rótulos indicando a data de validade “07/2008” nas embalagens internas foram tapados com papel adesivo e a data de validade impressa nas embalagens externas era de “5.2012”.
- Os referidos produtos medicinais foram fornecidos à Farmácia Chinesa D pelo 2º arguido em nome da “Medicina B”.
- A 08/04/2010, o pessoal dos Serviços de Saúde fiscalizou a Farmácia Chinesa E que se situa em Macau, na [Endereço (3)], onde encontrou 3 frascos “Óleo Multifuncional de Cúrcuma de Singapura (40ml)”, 3 frascos “Óleo de Bambu Verde de Singapura (40ml)”, 1 caixa de “Pomada Multifuncional para Dores (12g)” e 4 caixas de “Pomada Multifuncional para Dores (65g)” que estavam postos à venda. Embora as datas de validade indicadas nas embalagens externas destes produtos fossem 05/2012, 05/2013, 12/2012, 05/2012, respectivamente, alguns espaços nas embalagens internas e externas foram tapados com etiquetas laser. Removidas as etiquetas, descobriu-se que a verdadeira data de validade dos produtos era de “07/2008”.
- Os referidos produtos medicinais foram fornecidos à Farmácia Chinesa E pelo 2º arguido em nome da “Medicina B”.
- A 04/11/2010, o pessoal dos Serviços de Saúde fiscalizou a Farmácia de F que se situa em Macau, na [Endereço (4)], onde encontrou 6 frascos “Óleo para Dores (20ml)” de marca “Loi Leong Si” e 14 frascos “Óleo para Dores (40ml)” de marca “Loi Leong Si” que estavam postos à venda.
- Após a inspecção efectuada pelo pessoal dos Serviços de Saúde, verificou-se que o número de lote (10333) e a data de validade (10/2009) impressos nas embalagens externas dos aludidos produtos foram tapados por etiquetas laser e foram impressos nas embalagens externas as novas datas de validade “05/2012” e “03/2013”, sendo as datas de validade originais tapadas com papel adesivo laser.
- Os referidos produtos medicinais foram fornecidos à Farmácia de F pelo 2º arguido em nome da “Medicina B”.
- Os dois arguidos não conseguiram apresentar os documentos legais de importação relativos aos produtos farmacêuticos apreendidos pelos Serviços de Saúde.
- Os dois arguidos estavam bem cientes da situação, tapando as datas de validade originais dos produtos medicinais com papel adesivo laser nas embalagens e colocando etiquetas novas com novas datas de validade, confundindo os consumidores quanto às datas de validade a fim de burlar os mesmos. Os dois arguidos praticaram as condutas supra descritas com a intenção de obter para si interesses ilegítimos.
- Os dois arguidos agiram livre e conscientemente, praticando com dolo as condutas.
- Os dois arguidos sabiam perfeitamente que as suas condutas são proibidas por lei.
- O despacho punitivo tem o seguinte teor:
Despacho nº XXX/SS/2018
Processo disciplinar: D/XX/18/MAI
Arguida: A, bombeira de primeira, nº XXXXXX
Por acórdão do Tribunal de Segunda Instância que transitou em julgado em 10/05/2018, a Arguida A, bombeira de primeira, nº XXXXXX foi punida na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, pela prática do crime de fraude mercantil, p.p. pelo artº 28º, nº 1, al. b) da Lei nº 6/96/M.
O modo e as circunstâncias de tempo descritos na factualidade dada como provada no acórdão condenatório aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos - vendeu a quatro farmácias em Macau produtos medicinais chineses de uma marca cuja data de validade já expirou, alterou a data de validade por colocar um rótulo com nova data, o que fez com que os produtos ficassem dentro do prazo de validade e que dessem para vender.
É elevada a intensidade do dolo com que actuou a Arguida, violando as disposições do artº 11º (sic) - dever de correcção, nº 2, al. o) - não praticar qualquer acção ou omissão que possa constituir ilícito criminal ou contravencional, do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pela Lei nº 66/94/M, de 20 de Dezembro, cuja conduta constitui uma circunstância agravante prevista no artº 201º, nº 2, al. d) - ser a infracção comprometedora da honra, do brio ou do decoro pessoal ou da instituição - do mesmo Estatuto.
Ainda, a Arguida nunca obteve a autorização para o exercício de actividade privada, quer o trabalho por conta própria quer por conta de outrem, nem comunicou ao seu superior hierárquico, violando as disposições do artº 16º, al. b) do EMFSM.
São favoráveis à Arguida as circunstâncias atenuantes indicadas no artº 200, nº 2, als. b) O bom comportamento anterior, h) Os louvores concedidos em razão da função e f) (sic) A boa informação dos superiores de quem depende. Embora estas circunstâncias possam diminuir a censurabilidade da sua conduta, quer moral quer juridicamente, são elevadas as expectativas comunitárias quanto à moralidade e valores cívicos das Forças de Segurança, não podendo os elementos violar a lei. Sendo um elemento das Forças de Segurança e reputação das Forças de segurança, ela deve manter uma postura (sic) na sua vida pessoal, continuando a elevar a dignidade pessoal e do cargo que ocupa.
Ainda que os factos ocorressem fora do trabalho da Função Pública, a gravidade dos factos resultou numa perda de moralidade, implicando a perda da confiança necessária ao exercício da função. Tais factos, em princípio, constituem um crime que pode ser punido na pena superior a três anos. A Arguida não tem condições de manter o seu cargo nas Forças de Segurança.
Nos termos expostos, no uso da competência conferida pelo nº 1 da Ordem Executiva nº 111/2014 e da competência disciplinar concedida pelo Anexo G indicado no artº 211º do EMFSM, o Secretário para a Segurança, tendo ouvido o Conselho de Justiça e Disciplina, decide aplicar a pena de demissão:
Atenta a gravidade objectiva dos factos em apreciação e tendo em conta a censura moral do comportamento e a responsabilidade subjectiva da bombeira de primeira, nº XXXXXX, A, a pena é fixada em função dos artºs 238º, nº 2, al. n), e 240º, al. a) (pena de demissão) do EMFSM. Mas tendo considerado as circunstâncias atenuantes e o pressuposto de que a Arguido tem mais de 15 anos de tempo de serviço, decido aplicar à Arguida a pena de aposentação compulsiva ao abrigo do artº 239º do mesmo diploma legal.
Notifique a Arguida deste despacho para, querendo recorrer contenciosamente ao Tribunal de Segunda Instância no prazo de 30 dias, contado a partir da notificação.
- Foi proferido posteriormente o despacho rectificativo com o seguinte teor:
Despacho N.º XXX/SS/2018
Processo disciplinar n. ° D/XX/18/MAI
Arguido: A, Bombeira de primeira n.º XXXXXX
RECTIFICAÇÃO
Constatando existir um lapso material na subsunção da matéria de facto a uma das normas sancionatórias referidas no despacho n.º XXX/SS/2018 de 08 de Outubro de 2018, que pune a ex-bombeira de primeira, n.º XXXXXX, A com a pena de Aposentação Compulsiva, lapso que decorre do silogismo subjacente à formação da decisão e respectivo conteúdo, determino, nos termos e com os efeitos retroactivos constantes do artigo 135.° do Código do Procedimento Administrativo, o seguinte:
Onde se lê:
“Ponderada a gravidade objectiva dos factos, a respectiva censura ético-disciplinar e a responsabilidade subjectiva da arguida A, Bombeira de primeira n.º XXXXXX do Corpo de Bombeiros e não obstante a cominação que resulta das disposições conjugadas dos artigos 238.º n.º 2 al n) e 240.º al a) o citado Estatuto dos Militarizados (pena de demissão) pune-a, com a pena APOSENTAÇAO COMPULSIVA, nos termos do artigo 239.º do mesmo diploma, por consideração ao circunstancialismo atenuante e após a verificação do pressuposto de arguida contar mais de 15 anos de serviço efectivo.”
Deve ler-se:
Ponderada a gravidade objectiva dos factos, a respectiva censura ético-disciplinar e a responsabilidade subjectiva da arguida A, Bombeira de primeira n.º XXXXXX do Corpo de Bombeiros e não obstante a cominação que resulta das disposições conjugadas dos artigos 238.º n.º2 al n) e 240.º al b) do citado Estatuto dos Militarizados (pena de demissão) pune-a, com a pena de APOSENTAÇÃO COMPULSIVA, nos termos do artigo 239.º do mesmo diploma, por consideração ao circunstancialismo atenuante e após a verificação do pressuposto de arguida contar mais de 15 anos de serviço efectivo.
III – O Direito
1. As questões a resolver
Trata-se de saber se o acórdão recorrido incorreu nas violações legais imputadas pelo recorrente.
2. Violação do artigo 20.º do Código de Processo Administrativo Contencioso
Não se vislumbra, por parte do acórdão recorrido, qualquer violação do princípio de que o recurso contencioso é de mera legalidade, tendo por finalidade a anulação dos actos recorridos ou a declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica.
3. Princípio da proporcionalidade
Está em causa concluir se o acto administrativo, que aplicou a pena de aposentação compulsiva à ora recorrida, violou o princípio da proporcionalidade e adequação.
O fundamento para a punição do acto administrativo foi a condenação da bombeira, por sentença transitada em julgado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de crime previsto e punível pelo artigo 28.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 6/96/M (fraude mercantil).
O crime é punido com a penalidade de prisão até 5 anos ou com multa até 600 dias.
Recordamos aqui o que decidimos no acórdão de 4 de Novembro de 2015, proferido no Processo n.º 71/2015, em que se conheceu da punição, com a pena de demissão, de um agente das Forças de Segurança:
«De acordo com os artigos 238.º a 240.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM):
“Artigo 238.º
(Aposentação compulsiva e demissão)
1. As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional.
2. As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
a) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;
b) Usar de poderes de autoridade não conferidos por lei ou abusar dos poderes inerentes às suas funções excedendo os limites do estritamente necessário, quando seja indispensável o uso dos meios de coerção ou de quaisquer outros susceptíveis de ofenderem os direitos do cidadão;
c) Encobrir criminosos ou prestar-lhes qualquer auxílio que possa contribuir para frustrar ou dificultar a acção da justiça;
d) Por virtude de falsas declarações causar prejuízo a terceiros ou favorecer o descaminho de armamento;
e) Praticar ou tentar praticar acto demonstrativo da perigosidade da sua permanência na instituição ou acto de desobediência grave ou de insubordinação, bem como de incitamento à desobediência ou insubordinação colectiva;
f) Praticar de forma frustrada, tentada ou consumada crime de furto, roubo, burla, abuso de confiança, peculato, concussão, extorsão, peita, suborno e corrupção, associação de malfeitores, consumo e tráfico de estupefacientes, falsificação de documentos e pertença a sociedade secreta;
g) Tomar parte ou interesse, directamente ou por interposta pessoa, em qualquer contrato celebrado ou a celebrar por qualquer serviço da Administração Pública;
h) Violar segredo profissional ou cometer inconfidência de que resulte prejuízo para o Território ou para terceiros;
i) Se constituir na situação de ausência ilegítima durante 5 dias seguidos ou 10 interpolados, dentro do mesmo ano civil;
j) Aceitar, directa ou indirectamente, dádiva, gratificação ou participação em lucros ou outras vantagens patrimoniais, em resultado do lugar que ocupa, ainda que sem o fim de acelerar ou retardar qualquer serviço ou expediente;
l) Abusar habitualmente de bebidas alcoólicas ou consumir ou traficar estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;
m) For cúmplice ou encobridor de qualquer crime previsto nas alíneas anteriores:
n) Praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função.
Artigo 239.º
(Aposentação compulsiva)
1. A pena de aposentação compulsiva é especialmente aplicável nos casos em que se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
2. Em qualquer caso, a pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o militarizado reunir, pelo menos, 15 anos de tempo de serviço, sem o que lhe será aplicada a pena de demissão.
Artigo 240.º
(Demissão)
A pena de demissão é aplicada ao militarizado que:
a) Tiver praticado qualquer crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, com flagrante e grave abuso da função que exerce e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Tiver praticado, ainda que fora do exercício das funções, crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos que revele ser o seu autor incapaz ou indigno da confiança necessária ao exercício da função;
c) Praticar ou tentar praticar qualquer acto previsto nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º”.
…
Temos entendido que a inviabilização da manutenção da relação funcional, como um conceito indeterminado, é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva, sendo uma cláusula geral e não um facto que tenha de ser objecto de prova (acórdão de 21 de Janeiro de 2015, Processo n.º 26/2014, entre vários).
E também que o preenchimento da cláusula geral de inviabilidade da manutenção da relação funcional constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose efectuados com uma ampla margem de decisão (acórdão de 29 de Junho de 2005, Processo n.º15/2005, entre muitos).
Esta jurisprudência é de manter.
Assim, a conclusão da inviabilização da manutenção da relação funcional deve ser tirada pela Administração em todos os casos em que enquadre a conduta do arguido numa daquelas punidas com as penas de demissão ou aposentação compulsiva, a concretizar por juízos de prognose efectuados com uma ampla margem de decisão.
…
Princípio da proporcionalidade
Não obstante, vejamos se a Administração violou o princípio da proporcionalidade ao punir o arguido com a pena de demissão.
Este Tribunal já se pronunciou algumas vezes sobre os poderes da Administração no âmbito do seu poder disciplinar, designadamente na escolha da pena e da medida da pena.
Igualmente, já nos pronunciámos sobre o conteúdo dos poderes discricionários da Administração e dos poderes dos tribunais na sua sindicância.
Também já decidimos sobre o conteúdo do princípio da proporcionalidade e de que maneira a Administração pode afectar as posições dos particulares.
Vamos recordar alguns desses momentos, cuja pronúncia aqui reiteramos.
Em primeiro lugar, é jurisprudência firme deste Tribunal que a aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade (entre outros, os acórdãos de 28 de Julho de 2004 e 21 de Janeiro de 2015, respectivamente, nos Processos n. os 27/2003 e 26/2014).
Temos, também, entendido, sem discrepâncias, que no âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro (acórdãos de 19 de Novembro de 2014 e 28 de Janeiro de 2015, respectivamente, nos Processos n. os 112/2014 e 123/2014).
Por outro lado, também em abundantíssima jurisprudência, temos reiterado que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem (entre muitos, os acórdãos de 21 de Janeiro de 2015, 13 de Novembro de 2013, 14 de Dezembro de 2012 e 25 de Julho de 2012, respectivamente, nos Processos n. os 20/2014, 23/2013, 69/2012 e 8/2012)».
Sobre o conteúdo do princípio da proporcionalidade, dissemos o seguinte no nosso acórdão de 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000:
«O CPA prevê o princípio da proporcionalidade no seu artigo 5.º, n.º 2, estabelecendo que “as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar”.
Não cabe aqui fazer a história da génese do princípio ou a sua fundamentação filosófica.
Como refere VITALINO CANAS1 o princípio da proporcionalidade só poderá aplicar-se na apreciação de comportamentos em que o autor goze de uma certa margem de escolha.
A doutrina tem dissecado o princípio em três subprincípios, da idoneidade, necessidade e proporcionalidade, em sentido estrito, ou de equilíbrio.
A avaliação da idoneidade de uma medida é meramente empírica, podendo sintetizar-se na seguinte pergunta: a medida em causa é capaz de conduzir ao objectivo que se visa?
Aceitando-se que uma medida é idónea, passa a verificar-se se é necessária.
O centro das preocupações desloca-se para a ideia de comparação. Enquanto na máxima da idoneidade se procurava a certificação de uma relação causal entre um acto de um certo tipo e um resultado que se pretende atingir, na máxima da necessidade a operação central é a comparação entre uma medida idónea e outras medidas também idóneas. O objectivo da comparação será a escolha da medida menos lesiva.
“A aferição da proporcionalidade, em sentido estrito, põe em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo, e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto. Pretende-se saber, à luz de parâmetros materiais ou axiológicos, se o sacrifício é aceitável, tolerável. Para alguns, esta operação assemelha-se externamente à análise económica dos custos/benefícios de uma decisão. Se o custo (leia-se o sacrifício de certos bens, interesses ou valores) está numa proporção aceitável com o benefício (leia-se a satisfação de certos bens, interesses ou valores) então a medida é proporcional em sentido estrito”2 3.
O CPA determina no artigo 6.º que “no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação”».
Explicam, também, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM 4que “o princípio da proporcionalidade, ou da proibição do excesso, constitui um limite interno da discricionariedade administrativa, que implica não estar a Administração obrigada apenas a prosseguir o interesse público – a alcançar os fins visados pelo legislador -, mas a consegui-lo pelo meio que represente um menor sacrifício para as posições jurídicas dos particulares.
…
O princípio da proporcionalidade da actuação administrativa (colidente com posições jurídicas dos administrados) exige que a decisão seja:
- adequada (princípio da adequação): a lesão de posições jurídicas dos administrados tem de revelar-se adequada, apta, à prossecução do interesse público visado;
- necessária (princípio da necessidade): a lesão daquelas posições tem que se mostrar necessária ou exigível (por qualquer outro meio não satisfazer o interesse público visado);
- proporcional (princípio da proporcionalidade em sentido estrito): a lesão sofrida pelos administrados deve ser proporcional e justa em relação ao benefício alcançado para o interesse público (proporcionalidade custo/benefício)”.
4. O caso dos autos
A ora recorrida foi punida com a pena disciplinar de aposentação compulsiva por ter sido condenada judicialmente pela prática de um crime.
A tal crime cabia a penalidade de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.
Foi a ora recorrida punida judicialmente com a pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
O crime foi praticado fora do exercício das funções mas, como veremos, há alguma ligação (negativa) entre a missão dos bombeiros e a actividade privada a que se dedicava a recorrida e que deu origem à sua condenação judicial.
A ora recorrida tem louvores ou condecorações e bom comportamento anterior.
Os factos têm bastante gravidade e a recorrida foi punida com pena de prisão, embora suspensa na sua execução.
Os factos consistiram em ter fornecido, a várias farmácias de Macau, medicamentos de medicina tradicional já expirados, com a data de validade adulterada pela recorrente, para aparentarem estarem dentro da validade, actividade a que procedia juntamente com um familiar, ambos gerindo o negócio de importação e venda por grosso de produtos farmacêuticos.
O Corpo de Bombeiros tem como missão, entre outras, prestar socorro a sinistrados e a doentes, em estado de emergência, sendo atribuições do mesmo Corpo proteger e defender os cidadãos e prestar serviços de emergência médica a doentes e sinistrados [artigos 2.º, n.º 1, alínea 3) e 3.º, alínea 2) do Regulamento Administrativo n.º 24/2001].
A ora recorrida, em vez de proteger os doentes, andava a vender-lhes medicamentos expirados, portanto, potencialmente danificados.
Não se afigura que a aplicação da pena de aposentação compulsiva seja, no caso, excessiva e, portanto, desproporcionada.
Daí que se conclua que o acto punitivo não deve ser anulado por violação do princípio da proporcionalidade, nem por erro manifesto na escolha da pena, concedendo-se provimento ao recurso jurisdicional.
IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso jurisdicional e negam provimento ao recurso contencioso.
Custas pela ora recorrida com taxa de justiça fixada em 5 UC no recurso contencioso e 3 UC no recurso jurisdicional.
Macau, 30 de Outubro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1 VITALINO CANAS, Princípio da Proporcionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol VI, Lisboa, 1994, p. 616, que se seguirá de perto na exposição subsequente.
2 VITALINO CANAS, ob. cit., p. 628.
3 Sobre o emprego no princípio da proporcionalidade da contabilização custos-benefícíos (ou vantagens) pelo Conselho de Estado francês, cfr. J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 75, que enumera, a p. 114 e segs. da mesma obra, os elementos do princípio em termos semelhantes aos traçados acima.
4 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM, Código de Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 1997, p. 103 e 104.
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