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Processo n.º 1245/2019 Data do acórdão: 2020-3-26
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– crime de violação doméstica
– acórdão de louvor
– art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil
S U M Á R I O

1. Como da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, não pode ter ocorrido o vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
2. Atentas as consabidas muito prementes necessidades da prevenção geral do crime de violação doméstica, não é concebível a activação do mecanismo de atenuação especial da respectiva pena, sendo de medir a pena concreta do arguido dentro da moldura penal ordinária (cfr. o critério material vertido na parte final do n.o 1 do art.o 66.o do Código Penal, para efeitos de decisão da atenuação especial da pena).
3. O tribunal ad quem pode louvar a fundamentação da decisão recorrida como fundamentação da decisão do recurso, nos termos do art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1245/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido e demandado civil): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 506 a 527v do Processo Comum Colectivo n.° CR5-19-0007-PCC (com enxertado pedido cível de indemnização) do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos art.o 18.o, n.os 2 e 3, alínea 2), art.o 4.o, n.o 2, alínea 4), e art.o 19.o, n.o 1, alíneas 1) e 2), e n.o 3, todos da Lei n.o 2/2016, na pena principal de três anos de prisão efectiva, com penas acessórias, por três anos, de proibição de contactar, importunar e seguir a assistente (seu ex-cônjuge), e de permanecer em locais de habitação da assistente e dos dois filhos, em locais de trabalho da assistente, e em áreas próximas da instituição de ensino frequentada pelos dois filhos, e com inibição, por três anos, do exercício do poder paternal sobre os dois filhos, bem como condenado a pagar à assistente demandante a quantia indemnizatória (de danos patrimoniais e não patrimoniais) de MOP340.980,00, com juros legais desde a data desse próprio acórdão até efectivo e integral pagamento.
Inconformado, veio recorrer o arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando, na sua motivação de recurso apresentada a fls. 552 a 592 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– não praticou o próprio arguido maus tratos contra a assistente ofendida, havendo, ao invés, somente altercações entre ambos, de modo bilateral, no meio das quais proferiu ele, mas por se ter exaltado, palavras injuriosas ou ameaçadoras contra a assistente, pelo que o Tribunal sentenciador se limitou a focar em factos desfavoráveis ao arguido;
– o nervosismo e o estado ansioso demonstrado por ele na expressão de palavas na audiência de julgamento fez com que o Tribunal julgador não se tenha inteirado das circunstâncias do caso e da causa geradora do caso;
– não agiu ele com a intenção de ofender a assistente e os dois filhos de ambos;
– espera ele poder continuar a trabalhar para pagar alimentos aos dois filhos menores;
– ele próprio precisa ainda de cuidar da sua mãe idosa com diversas doenças crónicas e incoveniência na locomoção física;
– ele ama e estima muito os dois filhos;
– uma pena não privativa da liberdade atingirá as finalidades da punição;
– sendo delinquente primário, sem violação de qualquer medida de coacção no decurso do processo, com probabilidade extremamente baixa de nova delinquência, sendo baixo o grau de dolo na prática dos factos e o grau de ilicitude dos factos, deveria ele passar a ser, nos termos dos art.os 65.o a 67.o do Código Penal (CP), punido com dois anos de prisão, com suspensão da execução por quatro anos, com regime de prova, e sendo de reduzir também para tão-só dois anos o período de todas as penas acessórias e de inibição do poder paternal;
– o montante indemnizatório de danos não patrimoniais em MOP200.000,00 é demasiado alto (devendo ser reduzido para MOP50.000,00), não havendo até junção aos autos de documento médico a atestar o estado mental ou físico da ofendida, ao que acrescem a situação económica modesta do recorrente e a consideração de que o caso se deveu às altercações bilaterais.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 623 a 627, no sentido de improcedência da pretensão do arguido.
Respondeu também a assistente a fls. 628 a 637, pugnando pelo não provimento do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 669 a 670v, opinando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão recorrido consta de fls. 506 a 527v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação do recurso, pede o arguido a redução das suas penas principal e acessórias e do montante indemnizatório de danos não patrimoniais da assistente demandante, sem deixar de pretender uma pena principal não privativa da liberdade. Entretanto, para sustentar o seu pedido de redução das penas, chegou a invocar uma versão fáctica algo diversa da matéria de facto já julgada em primeira instância. Assim, embora alegado pelo arguido de modo implícito, é de aquilatar desde já se a matéria de facto foi bem julgada pela Primeira Instância.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto. Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, e até com muita minúcia, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos – cfr. o teor da mesma fundamentação probatória.
Como o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, é de apreciar a problemática da medida da pena e da fixação da quantia indemnizatória de danos não patrimoniais da demandante, tudo de acordo com a matéria de fáctica já provada e descrita no aresto recorrido.
O crime de violência doméstica por que vinha condenado o arguido em primeira instância é punível com pena de prisão de dois a oito anos.
O recorrente chegou a invocar os art.os 66.o e 67.o do CP na sua motivação do recurso.
Contudo, atentas as consabidas muito prementes necessidades da prevenção geral deste tipo de crime cometido por ele, não é concebível a activação do mecanismo de atenuação especial da pena, sendo de medir a pena concreta do arguido dentro da respectiva moldura penal ordinária (cfr. o critério material vertido na parte final do n.o 1 do art.o 66.o do CP, para efeitos de decisão da atenuação especial da pena).
Pois bem, perante todas as circunstâncias fácticas já apuradas e como tal descritas no aresto recorrido, e aos padrões dos art.os 40.o, n.o 1, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, a pena (principal) de três anos de prisão achada pelo Tribunal recorrido dentro da moldura aplicável de dois a oito anos de prisão já não é nada de excessiva para o arguido.
E quanto às remanescentes questões da suspensão, ou não, dessa pena de prisão, da duração das penas acessórias (cada uma delas em período legal abstracto de seis meses a cinco anos) e da inibição do poder paternal (em período legal abstracto de um a cinco anos), e da fixação do montante indemnizatório de danos não patrimoniais da demandante, é de louvar também a decisão recorrida nesses pontos, sem mais indagação por ociosa, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP, sendo de frisar apenas que é com o juízo de ex aequo et bono postulado no n.o 3 do art.o 489.o do Código Civil, e com base, propriamente, na matéria de facto já dada por provada, que se fixa a quantia indemnizatória de danos não patrimoniais referidos no n.o 1 do mesmo art.o 489.o.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas da parte penal do recurso pelo arguido (com oito UC de taxa de justiça), e custas da parte civil do recurso também tudo a cargo do arguido demandado.
Comunique a presente decisão ao Instituto de Acção Social de Macau.
Macau, 26 de Março de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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