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Processo n.º 187/2018 Data do acórdão: 2020-6-11 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– crime de difamação
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– art.o 174.o, n.o 2, alíneas a) e b), do Código Penal
– pressupostos de verificação cumulativa
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. Os dois pressupostos enunciados nas alíneas a) e b) do n.o 2 do art.o 174.o do Código Penal são de verificação cumulativa, como resulta inequivocamente do uso pelo Legislador da copulativa “e” entre cada um deles.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 187/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 248 a 254v do Processo Comum Singular n.° CR1-17-0365-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 1.o arguido B, o 2.o arguido C, o 3.o arguido D e o 4.o arguido E foram absolvidos da prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime continuado de difamação, p. e p. pelos art.os 174.o e 177.o, n.o 1, do Código Penal (CP), acusado pelo ofendido constituído assistente A.
Inconformado, veio recorrer o assistente para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando, na sua motivação apresentada a fls. 270 a 294 dos presentes autos correspondentes, àquela decisão absolutória penal o vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP) (por entender ele que os factos então descritos nos pontos 9 e 15 a 20 da sua acusação particular deveriam ser julgados como provados, e não como não provados), e o erro de interpretação e aplicação do art.o 174.o, n.os 1 e 2, do CP, a fim de rogar a condenação dos quatro arguidos nos termos por que vinham acusados, ou o reenvio do processo para novo julgamento.
Ao recurso respondeu o 2.o arguido C a fls. 301 a 302 dos presentes autos, no sentido de não provimento do recurso.
Respondeu também o Ministério Público a fls. 316 a 321 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 336 a 337, opinando pela existência do erro notório na apreciação da prova na sentença recorrida, com consequente reenvio do processo para novo julgamento.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– a sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 248 a 254v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida;
– a acusação particular então deduzida pelo assistente ora recorrente consta de fls. 146 a 149, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação do recurso, começou o assistente por esgrimir à decisão absolutória penal da Primeira Instância a verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No presente caso, do exame de todos os elementos probatórios dos autos, resulta, desde logo, patente que o Tribunal recorrido violou as leges artis ao dar por não provada a comparticipação dos três primeiros arguidos B, C e D nos factos de manifestações descritos no ponto 9 da acusação particular (a fl. 147), e violou as regras da experiência da vida quotidiana ao dar por não provado o ponto 15 desse libelo acusatório (a fl. 148) segundo o qual os quatro arguidos B, C, D e E, como resulta manifestamente das palavras escritas em cartazes usados nas manifestações, tiveram por visado manifestamente o próprio ofendido assistente.
É que: em diversas fotografias coloridas imprimidas e juntas aos autos demonstram que para além do 4.o arguido E, os outros três arguidos chegaram a participar também, pessoal e conjuntamente, em algumas das manifestações faladas no ponto 9 da acusação particular; e segundo as regras da experiência da vida quotidiana, para quem pertencente ao universo de pessoas que já conhecessem, na altura dos factos, o ofendido assistente por razões sobretudo familiares e profissionais, as palavras escritas (aludidas no ponto 5 da matéria de facto dada por assente na sentença recorrida) em cartazes usados nas manifestações feitas em frente do edifício onde se situava o local de trabalho do assistente ofendido, tiveram realmente por visado o próprio ofendido assistente, visto que naquelas palavras escritas se incluíram não só dois terços do nome formal completo em chinês do assistente (ou seja, com escrita da palavra “X” (X) como apelido, e da palavra “X” (X) como a segunda metade do nome próprio), como as menções de ele ser vogal da Conferência Consultiva Política da Província de Henan, ser filho de um senhor conhecido por “F” (“F”), e ser irmão de uma senhora casada com um senhor de apelido “X” (X) de uma afamada instituição de caridade de Hong Kong, chamada em chinês “保良局”.
Há, pois, que reenviar todo o objecto do processo para novo julgamento nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 2, do CPP, sendo de observar que, a propósito da segunda questão posta no recurso, os dois pressupostos enunciados nas alíneas a) e b) do n.o 2 do preceito do art.o 174.o do CP são de verificação cumulativa, como resulta inequivocamente do uso pelo Legislador da copulativa “e” entre cada um deles (neste sentido, conforme o anotado por MANUEL LEAL-HENRIQUES, in ANOTAÇÃO E COMENTÁRIO AO CÓDIGO PENAL DE MACAU, Volume III, 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, página 423), pelo que independentemente da questão de constatação efectiva, ou não, no presente caso, de a imputação ter sido feita para realizar interesses legítimos, o argumento invocado pelo Tribunal recorrido (e escrito nas 2.a e 3.a linhas do primeiro parágrafo da página 13 do texto da sentença recorrida, a fl. 254) para a decisão de absolvição penal dos quatro arguidos, mesmo em abstracto falando, não bastaria para justificar essa absolvição penal.
Procede, pois, o recurso, sem mais indagação por prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, reenviando todo o objecto do processo para novo julgamento por tribunal colectivo.
Custas do recurso pelo 2.o arguido (por ele ter defendido a improcedência do recurso), com duas UC de taxa de justiça e mil e quinhentas patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso. E fixam em setecentas patacas os honorários de cada um dos Ex.mos Defensores Oficiosos dos outros três arguidos, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 11 de Junho de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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