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Processo nº 43/2020 Data: 05.06.2020
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “sequestro (agravado)”.
Agravação pelo resultado.
Suicídio (e morte) da vítima de “sequestro”.
“Crime preterintencional”.
Dolo e negligência.
“Nulla poena sine culpa”.
“Reformatio in pejus”.


SUMÁRIO

1. O art. 152°, n.° 1 do C.P.M. prevê o tipo (fundamental) de crime de “sequestro (simples)”, preceituando-se, nos seus restantes números, a sua forma “agravada”, (cfr., n°s 2, 3 e 4).

Tal agravação pode ocorrer em razão das “circunstâncias (da prática) do crime”, o que sucede nas alíneas a) a d) do n.° 2, “em consequência do seu resultado”, como ocorre com as situações da alínea e) do n.° 2 e n.° 3, ou em virtude da “qualidade” do ofendido, como é o caso do n.° 4.

2. Para a aludida “agravação pelo resultado”, indispensável é que entre o “sequestro” e o seu “resultado” haja uma “conexão causal”, (imputação objectiva), necessário sendo também que este mesmo resultado possa ser imputado ao(s) agente(s) do crime a título de “negligência”, (nos termos do regime do art. 17° do C.P.M.).

3. Vulgarmente, identificam-se nestes chamados “crimes preterintencionais” três elementos essenciais:
- um “crime fundamental”, praticado a título de dolo;
- um “(crime de) resultado”, mais grave do que se intencionava, (portanto, para além do dolo), imputado a título de negligência; e,
- a “fusão” dos dois crimes em causa.

4. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico – normativo uma culpa concreta: “nulla poena sine culpa”.

5. Provado estando que a “queda” que causou a morte do ofendido do crime de “sequestro” foi intencional e deliberada, (pelo próprio procurada), adequada é a condenação dos arguidos pela prática do crime de “sequestro agravado pelo (resultado do) suicídio da vítima”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 2, al. e) do C.P.M..

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 43/2020
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação pública responderam em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base, A (甲), B (乙) e C (丙), (1°, 2° e 3°) arguidos com os restantes sinais dos autos.

Realizado o julgamento, por Acórdão de 26.04.2019, (CR3-18-0434-PCC), decidiu-se julgar a acusação parcialmente procedente e – na parte que agora interessa – absolvendo-se os 3 arguidos A, B e C da prática em co-autoria do imputado crime de “sequestro (agravado)”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1 e 3 do C.P.M., condenou-se este último (3°) arguido pela prática de 1 crime de “sequestro (simples)”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1 do referido C.P.M.; (cfr., fls. 924 a 934-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Em sede do recurso que do assim decidido interpôs o Ministério Público, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão datado de 11.07.2019, (Proc. n.° 631/2019), onde, na procedência do recurso, e dando como verificado o vício de “erro notório na apreciação da prova”, decretou o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M.; (cfr., fls. 1022 a 1029-v).

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Efectuado o julgamento, em 25.10.2019, proferiu o Tribunal Judicial de Base (novo) Acórdão, condenando os (3) arguidos como co-autores da prática do (referido) crime de “sequestro (agravado)”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1 e 3 do C.P.M., fixando aos (1° e 2°) arguidos A e B, a pena de 6 anos de prisão, e ao (3°) arguido C, a de 5 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 1107 a 1126-v).

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Inconformados com o assim decidido, do mesmo recorreram os (3) arguidos para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 19.03.2020, (Proc. n.° 1274/2019), negou provimento aos recursos; (cfr., fls. 1184 a 1190 e 1302 a 1310).

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Ainda inconformados, trazem os (3) arguidos o presente recurso, pugnando tão só por uma “alteração da qualificação jurídico-penal da factualidade dada como provada” com a consequente redução das penas decretadas; (cfr., fls. 1316 a 1324).

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Na Resposta ao assim pretendido, foi o Ministério Público de opinião que o recurso não merecia provimento; (cfr., fls. 1326 a 1330).

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Em sede de vista, considerou também o Exmo. Representante do Ministério Público que o recurso devia ser julgado improcedente; (cfr., fls. 1338).

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Efectuado que foi o exame preliminar, e colhidos os vistos dos Exmos Juízes-Adjuntos, é momento de decidir.

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A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Está provada a seguinte “matéria de facto”:

«1. O 1.º arguido A, o 2.º arguido B, o 3.º arguido C, um indivíduo com o pseudónimo "E" e pelo menos 6 indivíduos de sexo masculino não identificados, com o objectivo de enriquecer-se ilegitimamente, concordaram em cooperar, emprestando dinheiro a jogadores dentro dos casinos para fim de jogo a juros fixados por eles próprios. Quando os jogadores não conseguiam pagar a dívida a tempo, então obrigavam-no liquidar a dívida contra a própria vontade, fazendo uso de todos os métodos violentos incluindo espancamentos.
2. "E" fornecia alojamento e alimentação a pessoas incluindo os arguidos, enquanto estes estavam responsáveis por encontrar jogadores. Uma vez encontrado, então chamava "E" por telefone para combinar o lugar de encontro. A seguir, "E" negociava com o jogador sobre as condições do empréstimo. Atingido o acordo, "E" descontava os 10% do montante do empréstimo, os arguidos juntamente com outras pessoas levavam o jogador ao casino e faziam-lhe companhia quando este jogava. Todas as vezes que o jogador ganhava numa partida, cobravam os 10% do montante da aposta a título de juros. Se o jogador perdia e não era capaz de pagar a dívida, "E" mandava aos arguidos e a outras pessoas levar o jogador a edifícios nas proximidades para guardá-lo e vigiá-lo, servindo-se de todos os métodos. Só depois de o jogador ter liquidado a dívida é que o deixavam ir-se embora.
3. Pelas 10h00 da noite de 25 de Abril de 2017, a vítima D pediu emprestados HKD$50000,00 ao grupo de pessoas incluindo os arguidos e foi ao [Casino(1)] para jogar Baccarat na sala do meio. O 2.º arguido e um outro indivíduo de sexo masculino não identificado "E" estavam responsáveis por cobrar juros; enquanto o 1.º arguido e outros 6 indivíduos de sexo masculino não identificados faziam turnos para vigiar. Foi assim até o dia seguinte (i.e. 26 de Abril), pelas 7h00 da manhã, quando a vítima perdeu todo o dinheiro (vd. o auto de vídeo, a fls. 345 a 379 dos autos).
4. Como a vítima não tinha conseguido logo devolver o dinheiro, O 2.º arguido e um outro indivíduo de sexo masculino não identificado "A" levaram a vítima a um apartamento duplex sito no [Endereço(1)] para o vigiarem (vd. o relatório e o auto de vídeo, a fls. 46 a 47, a fls. 404 a 407 dos autos). Na altura o arrendatário do apartamento era G.
5. Então "A" levou a vítima a um quarto sem casa de banho no andar de cima do apartamento. Uma vez entrados fechou imediatamente a porta para evitar que a vítima se fosse embora. Entretanto o 1.º arguido e o 2.º arguido chegaram e guardaram juntos a vítima.
6. Pelas 8h00 da manhã do mesmo dia (i.e. 26 de Abril), a vítima telefonou a mulher F, dizendo que tinha perdido o capital de jogo emprestado a outros no montante de 50000,00 em Macau e que estava aprisionado em um apartamento em Macau; pediu a F arranjar dinheiro o mais breve possível para poder liquidar a dívida.
7. Entretanto, o 1.º arguido usou o telemóvel da vítima para gravar um vídeo no qual "A" agredia a vítima e pelas 11h30 da manhã do mesmo dia, através da conta WeChat no telemóvel da vítima "[ContaWeChat(1)]", mandou o vídeo acima mencionado à conta WeChat da F "[ContaWeChat(2)]", para que F arranjasse dinheiro e pagasse a dívida quanto antes.
8. Até a parte da tarde do mesmo dia, pelas 5h30, por duas vezes a vítima disse a F através de WeChat que tinha sido espancado por pessoas incluindo os arguidos (vd. o auto de vídeo e o relatório de análise, a fls. 322 a 325, a fls. 516 a 519 dos autos)
9. F pagou a pessoas incluindo os arguidos uma parte das dívidas no montante de RMB5000,00.
10. Em 27 de Abril, pelas 2h00 da madrugada, depois de ter recebido a chamada de "E", o 3.º arguido chegou ao endereço acima mencionado para guardar a vítima.
11. Pelas 4h00 na mesma madrugada, o 3.º arguido, seguindo o 2.º arguido, chegou ao quarto supra mencionado e viu que o 1.º arguido também estava presente no quarto para além da vítima. Na altura, mandaram à vítima descansar em uma cama no quarto; em frente da porta estava colocada uma mesa comprida para não o deixar sair. Seguindo as instruções, o 3.º arguido ficou no quarto para guardar a vítima até este liquidar as dívidas.
12. Os arguidos e outros indivíduos não paravam de instar à vítima devolver o dinheiro o mais rapidamente possível, bateram-no e recusaram-se a deixá-lo ir-se embora.
13. A vítima pediu ir à casa de banho em frente ao quarto. Uma vez entrada na casa de banho, a vítima fechou a porta imediatamente e abriu a janela. Caiu da janela e tombou no passeio. Na altura, o 3.º arguido, observando as instruções, estava fora da casa de banho à espera. Passados uns minutos, como a vítima ainda não tinha saído, para além disso, o 3.º arguido descobriu que a porta da casa de banho já estava trancada, então o 2.º arguido pediu a G abrir a porta com a chave. O 2.º arguido entrou na casa de banho, e descobriu que a vítima já tinha caído do edifício.
14. Tenho visto a situação, os 3 arguidos e G fugiram do apartamento imediatamente e saíram da RAEM através do Posto Fronteiriço das Portas do Cerco (vd. o auto de vídeo, a fls. 189 a 208, a fls. 211 a 213 dos autos).
15. Pelas 6h30 da madrugada de 27 de Abril, tendo recebido a participação, o CPSP chegou ao sítio e descobriu a vítima, deitada no passeio perto do [Restaurante(1)] no R/C do [Endereço(1)]; os bombeiros confirmaram que a vítima já não dava sinal de vida. No mesmo dia foi levada ao hospital e declarada morta. Os polícias avisaram a PJ imediatamente para que esta começasse a investigar.
16. Os polícias encontraram uma carteira no corpo da vítima, na qual estava um pouco RMB em numerários, 7 cartões bancários e o seu Salvo-conduto Chinês para Deslocação a Hong Kong e Macau n.º CXXXXXXXX (vd. a fls. 2v dos autos). Mais tarde, os polícias chegaram ao [Endereço(1)] para investigar, consultaram o sistema de videovigilância do edifício e confirmaram a fracção X.º andar "X" como o apartamento em causa.
17. Durante a busca, a PJ encontrou no guarda-roupa do quarto do apartamento um saco de tiracolo preto pertencente à vítima, lá dentro estavam o passaporte chinês dele e um documento de residência na Província Guangdong (vd. o relatório a fls. 128 a 136 dos autos). Segundo o resultado da verificação, a casa de banho acima mencionada tinha apenas uma janela que permitia passar apenas a um indivíduo adulto. Na janela estavam instaladas grades de alumínio, mas a parte inferior das grades já se tinha soltado e estava separada do caixilho da janela. Puxando as grades de janela para trás com ligeiramente mais força, já chegava para um adulto sair da janela através do espaço; além disso, nem por cima nem por baixo da janela estavam instalados objectos adicionais que podiam servir a quem fugisse como ponto de apoio onde colocar os pés.
18. "E" prometeu pagar ao 3.º arguido RMB5000,00 a título de remuneração.
19. O 1.º arguido e o 2.º arguido, juntamente com outros indivíduos, agiram de comum acordo, planearam juntos e colaboraram entre si, emprestaram dinheiro para jogo à vítima no casino, a fim de obter interesses pecuniários não consentidos pela lei, para si ou para outrem.
20. O 1.º arguido e o 2.º arguido, juntamente com outros indivíduos, agiram de comum acordo, planearam juntos e colaboraram entre si, agrediram a vítima violentamente; contra a vontade dele, propositadamente fizeram gravações com o telemóvel da vítima e através da conta WeChat mandaram o trecho acima mencionado a F, a fim de fazer agir a outrem.
21. Sabendo perfeitamente que estavam a violar a vontade da vítima, os 3 arguidos sempre agiram de comum acordo, planearam juntos, colaboraram e partilharam as tarefas entre si, proibiram à vítima deixar o quarto acima mencionado, privaram-no da liberdade de movimento, com o resultado de que a vítima cometeu suicídio, que tinha aberto a janela da casa de banho, se tinha lançado da janela, caiu do edifício, e morreu.
22. Estando livres, voluntários e conscientes, os 3 arguidos praticaram dolosamente os actos acima mencionados.
23. Os 3 arguidos sabiam perfeitamente que os actos deles eram proibidos pela lei e que seriam punidos nos termos legais.
*
Segundo o certificado de registo criminal, os 3 arguidos são delinquentes primários na RAEM.
O 3.º arguido afirmou ter a escolaridade do 2.º ano de ensino secundário-geral, ser gerente de bar de profissão; que auferia mensalmente RMB3500,00 a 4000,00; devia alimentar uma filha e os pais».

Seguidamente, e em sede de “factos não provados”, foi como tal indicado que resultou “não provado” que:

«- Foi para poder escapar do quarto acima mencionado é que a vítima entrou na casa de banho, abriu a janela para fugir.
- Os actos dos 3 arguidos fizeram com que a vítima, com o objectivo de escapar do quarto acima mencionado, abrisse a janela para fugir»; (cfr., fls. 1305-v a 1307 e 13 a 21 do Apenso).

Do direito

3. Como se deixou relatado, com o presente recurso buscam (tão só) os arguidos ora recorrentes uma “diferente qualificação jurídico-penal da factualidade dada como provada”.

Não questionando a aludida “matéria de facto”, e não se vislumbrando qualquer “vício” em relação à sua decisão, tem-se, desde já, a mesma, como definitivamente fixada.

Nesta conformidade, e sem mais demoras, vejamos se tem os recorrentes razão.

Como se viu, foram os 3 recorrentes (acusados e) condenados como co-autores de 1 crime de “sequestro (agravado)”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1 e 3 do C.P.M..

Sob a epígrafe “sequestro”, prescreve este art. 152° que:

“1. Quem detiver, prender, mantiver detida ou presa outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2. O agente é punido com pena de prisão de 3 a 12 anos se a privação da liberdade:
a) Durar por mais de 2 dias;
b) For precedida ou acompanhada de ofensa grave à integridade física, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano;
c) For praticada com o falso pretexto de que a vítima sofria de anomalia psíquica;
d) For praticada simulando o agente a qualidade de autoridade pública ou com abuso grosseiro dos poderes inerentes às suas funções públicas; ou
e) Tiver como resultado suicídio ou ofensa grave à integridade física da vítima.
3. Se da privação da liberdade resultar a morte da vítima, o agente é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
4. Se a pessoa sequestrada for uma das referidas na alínea h) do n.º 2 do artigo 129.º e o tiver sido no exercício das suas funções ou por causa delas, as penas referidas nos números anteriores são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.

Aqui chegados, vejamos da pretensão dos ora recorrentes.

Invocando a transcrita “factualidade dada como provada” – que não questionam e motivos não existem para se alterar – assim como o preceituado no (também transcrito) art. 152° do C.P.M., reclamam os recorrentes uma alteração da decisão recorrida, no sentido de serem condenados por 1 crime de “sequestro”, mas nos termos do art. 152°, n.° 2, al. e), (e não, com referência ao n.° 3, como foram).

Ponderada a questão, e dúvidas não havendo que a conduta dos arguidos integra a prática, em co-autoria, de 1 crime de “sequestro”, constata-se que tem os recorrentes razão, passando-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista.

Pois bem, o art. 152°, n.° 1 do C.P.M. prevê, (digamos assim), o tipo (fundamental) de crime de “sequestro simples”, preceituando-se, nos seus restantes números, a sua forma “agravada”, (cfr., n°s 2, 3 e 4).

E, como de uma leitura ao estatuído nas várias “alíneas do n.° 2”, assim como ao disposto nos n°s 3 e 4 do normativo em questão se mostra de concluir, tal “forma agravada” pode ocorrer em razão das “circunstâncias (da prática) do crime”, o que sucede nas alíneas a) a d) do n.° 2, “em consequência do seu resultado”, como ocorre com as situações da alínea e) do n.° 2 e n.° 3, ou em virtude da “qualidade” do ofendido, como é o caso do n.° 4; (cfr., v.g., A. Taipa Carvalho in, “Comentário Conimbricense ao C.P.”, Tomo I, pág. 417 e segs.; M. M. Garcia e J. M. Castela Rio in, “C.P., Parte Geral e Especial”, pág. 652 a 658; P. P. de Albuquerque in, “Comentário do C.P.”, pág. 485 e segs.; e M. L. Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. III, pág. 271 e segs.).

Como, no caso, ponderaram – e bem – o Tribunal Judicial de Base e o Tribunal de Segunda Instância, para a aludida “agravação pelo resultado” – que, no fundo, é a “questão” a apreciar nos presentes autos – indispensável é que entre o “resultado” e o “sequestro” haja uma “conexão causal”, (imputação objectiva), não sendo porém de se olvidar que necessário é também que, este resultado, possa ser imputado ao(s) agente(s) do crime a título de “negligência”, nos termos do regime do art. 17° do C.P.M., onde se preceitua que, “Quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação depende sempre da possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência”.

Pronunciando-se sobre tais “situações”, tem-se vulgarmente vindo a considerar que nas mesmas se identificam três elementos essenciais:
- um “crime fundamental”, praticado a título de dolo;
- um “(crime de) resultado”, mais grave do que se intencionava, (portanto, para além do dolo), imputado a título de negligência; e,
- a “fusão” dos dois crimes em causa.

Com efeito, dúvidas não podem (nem devem) existir que admissível não é que alguém seja criminalmente responsabilizado, (ainda que verificado o pressuposto da “causalidade adequada” da sua acção relativamente ao resultado), sem que se verifique que “agiu com culpa”.

Na verdade, não nos parece que suscite dúvidas o preceituado no art. 12° do C.P.M. – integrado no Capítulo dos “pressupostos da punição” – onde claramente se estatui que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, assim se consagrando um dos princípios basilares do direito penal, (o da culpa), segundo o qual toda a pena tem de ter como suporte axiológico – normativo uma culpa concreta – “nulla poena sine culpa”, (cfr., v.g., a anotação feita ao referido art. 12° por M. L. Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. I, pág. 229 e segs., 2018, com relevantes e abundantes referências da doutrina sobre o tema).

Está assim tal matéria relacionada com aquilo que no âmbito do (anterior) C.P. de 1886 se apelidava de “crime preterintencional” ou “praeter intencionum”, (tal como sucedia com o seu art. 361°, § único e, em relação ao qual, como “exemplo de escola” desta modalidade de crime, se citava o caso de o agente ofender corporalmente outrem sem intenção homicida, mas as consequências das lesões causadas lhe ocasionar a morte).

Tal “agravação pelo resultado” chegou a ser justificada pela doutrina da “imputabilidade ou responsabilidade objectiva”, no sentido da desnecessidade de culpa relativamente ao evento agravante; (afigura-se-nos, assim ter, em tempos, entendido o Prof. Cavaleiro de Ferreira nas suas “Lições de Direito Penal”, 1941, pág. 231).

Contudo perante as distorções (e exageros) que tal posição originava em termos de resultados práticos, (identificando-se com o direito canónico mediaval, e em que o autor de um facto era, automaticamente, responsável por todos os “efeitos” pelo mesmo produzidos), desde cedo se começou também a pugnar pela erradicação desta “responsabilização automática”, (ou “responsabilidade objectiva” em direito penal), exigindo-se, em face do atrás citado princípio basilar da culpa, a negligência do agente quanto à produção do resultado; (cfr. ainda no C. P. de 1886, o art. 1°, onde se faz referência a “facto voluntário” e o n.° 7 do art. 44° em que se declarava como “não punível” os agentes que tivessem “procedido sem intenção criminosa e sem culpa”, e, claramente, na doutrina, E. Correia in, “Direito Criminal”, Vol I, 1963, pág. 439 e segs.; F. Dias in, “Pressupostos da Punição”, Jornadas de Direito Criminal, C.E.J., na sua dissertação “Responsabilidade pelo resultado e crimes preterintencionais”, 1961, pág. 123 e segs., assim como na anotação que fez ao Ac. do S.T.J. de 01.07.70, in R.D.E.S., Ano XVII, n°s 2-3-4, 1970, pág. 253 e segs.; Damião Cunha, no seu estudo “Tentativa e comparticipação nos crimes preterintencionais”, in R.P.C.C., Ano 2-4°, 1992, pág. 563 e segs.; Nicole da Costa Pacheco in, “A alegação e prova do dolo no direito processual penal: em especial, as consequências da falta da sua alegação na acusação”, podendo-se, também, sobre o tema, ver, entre outros, os Acórdãos desta Instância de 06.12.2006, Proc. n.° 41/2006, e o de 06.12.2011, Proc. n.° 58/2011).

Como, igualmente, salienta Paula R. de Faria – in Comentário Conimbricence ao Código Penal, Tomo I, pág. 245 – “a par do desvalor do resultado, terá de existir um desvalor da acção, no qual avulta a previsibilidade subjectiva e a violação do dever objectivo de cuidado”.

No caso, visto estando que o ofendido do crime de “sequestro” dos autos, acabou – infelizmente – por falecer, a questão que em essência deverá ser colocada é a seguinte: mesmo que os arguidos não tenham previsto ou agido com intenção de causar a sua morte, (doutra forma, teriam cometido, dolosamente, um crime de “homicídio”), podiam e deviam ter previsto que da sua conduta poderia resultar tal resultado ou que era a sua conduta adequada a produzir tal resultado?

Vejamos.

A “morte da vítima”, como situações idênticas várias já ocorridas o demonstram, mostra-se-nos constituir um “perigo típico” do crime de “sequestro”.

Aliás, tanto assim é que é expressamente prevista no comando legal em questão; (cfr., o n.° 3 do art. 152°).

Porém, importa equacionar “como”, (ou “porque”), a mesma ocorreu no caso dos presentes autos.

Da factualidade dada como provada resulta que o arguido caiu de uma janela da casa de banho do apartamento que se situava no 9° andar do edifício identificado nos autos e onde estava sequestrado.

Contudo, tal, para o caso, é “curto” (e insuficiente), necessário sendo precisar melhor tal “queda”.

Ora, no “ponto 13°” da decisão da “matéria de facto provada” consta que:

“A vítima pediu ir à casa de banho em frente ao quarto. Uma vez entrada na casa de banho, a vítima fechou a porta imediatamente e abriu a janela. Caiu da janela e tombou no passeio. Na altura, o 3.º arguido, observando as instruções, estava fora da casa de banho à espera. Passados uns minutos, como a vítima ainda não tinha saído, para além disso, o 3.º arguido descobriu que a porta da casa de banho já estava trancada, então o 2.º arguido pediu a G abrir a porta com a chave. O 2.º arguido entrou na casa de banho, e descobriu que a vítima já tinha caído do edifício”.

De relevo se apresenta de ter igualmente presente que, no “ponto 17°” da mesma decisão, consta também que:

“(…). Segundo o resultado da verificação, a casa de banho acima mencionada tinha apenas uma janela que permitia passar apenas a um indivíduo adulto. Na janela estavam instaladas grades de alumínio, mas a parte inferior das grades já se tinha soltado e estava separada do caixilho da janela. Puxando as grades de janela para trás com ligeiramente mais força, já chegava para um adulto sair da janela através do espaço; além disso, nem por cima nem por baixo da janela estavam instalados objectos adicionais que podiam servir a quem fugisse como ponto de apoio onde colocar os pés”.

Por sua vez, despiciendo não é, (sendo assim de referir e salientar) que, deu-se como “não provado” que:

“- Foi para poder escapar do quarto acima mencionado é que a vítima entrou na casa de banho, abriu a janela para fugir.
- Os actos dos 3 arguidos fizeram com que a vítima, com o objectivo de escapar do quarto acima mencionado, abrisse a janela para fugir”.

Do que se deixou exposto, evidente se nos apresenta que o falecimento do ofendido não foi consequência de uma “fuga” tentada, mas sim de uma “queda intencional”, “deliberada”, (pela própria vítima procurada); (atente-se, para além da factualidade dada como “não provada”, no “trancar da porta” da casa de banho, nas “grades da janela” desta que, tão só, devido ao seu “estado” foi possível – com esforço – afastar, no “espaço” existente para por aí se passar, na total ausência de qualquer “apoio para os pés”…).

Não se nega, (nem se pretende olvidar ou escamotear), que, como é óbvio, e as próprias regras de experiência e da normalidade das coisas o ditam, as “condições do encarceramento” – a privação da liberdade, as agressões, coacções, e tudo o resto … – terão colocado o ofendido em ”situação de, (no mínimo, algum) desespero” e “perturbação psicológica” que, por sua vez, contribuíram, para que viesse a “adoptar” a referida conduta.

Porém, em face do que “provado” está, (e em conformidade com o que já se referiu), não se mostra de subsumir a conduta dos arguidos no preceituado no n.° 3, mais adequado se nos apresentando de a integrar no previsto no n.° 2, alínea e), ou seja, de se considerar que do “sequestro” que levaram a cabo tenha resultado o “suicídio da vítima”; (cfr., M. L. Henriques, ob. cit., pág. 276, onde, referindo-se à “qualificação” em questão na alínea e), considera que “isto acontece quando a vítima, desesperada pela situação da privação da liberdade que lhe foi criada pelo sequestro, põe termo à vida ou provoca, em si mesmo agressões graves, como consequência directa desse mesmo sequestro…”).

De facto, importa, (como cremos ter pretendido o legislador), “distinguir as situações”.

Doutra forma, esvaziado de (qualquer) conteúdo útil ficaria a referência ao “suicídio” feita na alínea e) do n.° 2, acabando por se ter de concluir que o legislador se teria “repetido”, ao mencionar o resultado “morte da vítima” no n.° 3, o que, como é sabido, não se mostra em sintonia com as “normas da interpretação” consagradas no art. 8° do C.C.M..

Por sua vez, não se pode olvidar que o “suicídio” – do latim, sui, «de si», e caedere, «matar» – constitui o acto voluntário em que o indivíduo possui a intenção e provoca a própria morte, (ou efeito de provocar a morte a si próprio), o que, médico-legalmente se apelida de “morte intencional auto-infligida”.

E, se adequada é a “distinção” entre as situações, (ou os “resultados”), previstos na alínea e) do n.° 2 e do n.° 3, nenhuma justificação se mostra existir para de idêntico modo se proceder em relação ao próprio “suicídio”, (nomeadamente, quanto ao “meio” utilizado para o concretizar).

Por sua vez, apresenta-se-nos pois de considerar que a aplicação do n.° 3 se mostra mais adequada em situações em que a “morte” é (totalmente) “alheia à vontade da vítima”, como pode (v.g.) suceder em consequência das lesões sofridas pelas agressões a que tenha sido submetida e/ou com a falta de cuidados ou assistência médica, (e medicamentosa), a falta de alimentação, etc…

Dest’arte, e havendo que se decidir em conformidade, o que implica a reponderação da pena a aplicar aos arguidos, tendo presente a factualidade dada como provada, a moldura penal aplicável – 3 a 12 anos de prisão – os critérios legais para a determinação da pena, (cfr., os art°s 40° e 65° do C.P.M.), considerando também que, no caso, desfilam, na verdade, fortes exigências de prevenção especial, a pedirem profundo empenhamento de reinserção reeducativa e ressocializadora e também fortes imposições de prevenção geral, que se quer capaz de dissuadir e de convencer, bem como actuar positivamente sobre a sociedade, tendo em atenção o “tipo”, “natureza” e “consequências” do crime e o seu impacto na paz social da R.A.E.M., tem-se por justa e adequada a pena individual de 6 anos de prisão, (a 3 anos do mínimo legal, e a 6 anos do seu máximo, motivos não nos parecendo haver para qualquer diferenciação entre os arguidos).

Considerando que o presente recurso vem apresentado pelos arguidos, tendo-se em conta as penas em que tinham sido condenados, e em respeito ao estatuído no art. 399° do C.P.P.M., (onde se consagra o “princípio da proibição da reformatio in pejus”), vai a pena que ao (3°) arguido C devia caber reduzida em conformidade, mantendo-se-lhe assim a pena antes aplicada de 5 anos e 6 meses de prisão.

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Por fim, uma nota.

Verifica-se que não foi fixada qualquer indemnização a favor da esposa (ou outros familiares) da vítima.

Não sendo o presente recurso o meio processualmente adequado para se tratar de tal questão, mais não se consigna sobre a mesma.

Nada mais havendo a apreciar, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso dos arguidos, ficando os mesmos condenados como co-autores de 1 crime de “sequestro (agravado)”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 2, al. e) do C.P.M., mantendo-se, no restante, o decidido pelas Instâncias recorridas.

Pelo decaimento parcial – no que toca à pena – pagarão os recorrentes a taxa individual de justiça de 3 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 5 de Junho de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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