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Processo n.º 14/2020
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
Data da conferência: 10 de Junho de 2020
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Lai Kin Hong

Assuntos: - Trabalho ilegal
- Excepção

SUMÁRIO
1. Salvo excepções previstas no n.º 3 do art.º 1.º da Lei n.º 21/2009, os não residentes de Macau devem obter a prévia autorização administrativa concedida ao empregador para poderem trabalhar legalmente em Macau, sob pena de prestação ilegal de trabalho.
2. Nos termos da al. 1) do art.º 2.º do Regulamento Administrativo n.º 17/2004, é considerado como trabalho ilegal aquele prestado pelo não residente da RAEM que não possua a necessária autorização para exercer actividade por conta de outrem, ainda que não remunerada, com as excepções previstas no n.º 1 do art.º 4.º do mesmo diploma.
3. Nos termos da al. 1) dos n.º 1 a 3 do art.º 4.º do Regulamento Administrativo n.º 17/2004, a prestação de trabalho ou serviço pelo não residente não é qualificada como trabalho ilegal desde que: i) haja acordo entre empresas sediadas fora da RAEM e pessoas singulares ou colectivas sediadas na RAEM; ii) a celebração do acordo vise a realização de obras ou serviços determinados e ocasionais, nomeadamente, para prestação de serviços de direcção, técnicos, de controlo de qualidade ou de fiscalização; e iii) a permanência do não residente na RAEM não possa ser superior a 45 dias, consecutivos ou interpolados, por cada período de 6 meses, a contar da data da entrada legal na RAEM.
4. Se decorrer da factualidade dada como assente nos autos que a interessada prestou trabalho em Macau, sem devida autorização para tal, na medida em que atendia e vendia produtos a clientes, recebia dinheiro e fazia a gestão de documentos, fora do âmbito de apoio técnico e de serviços relacionados com o recrutamento, supervisão e formação das funcionárias locais, referidos no acordo celebrado entre a empresa de Hong Kong e de Macau, é de considerar ilegal o trabalho por ela prestado.

A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
1. Relatório
A, melhor identificada nos autos, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Senhor Secretário para a Segurança, de 7 de Fevereiro de 2017, que indeferiu o seu recurso hierárquico necessário interposto da decisão proferida pelo Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que lhe aplicou uma medida de interdição de entrada na RAEM, por um período de 3 anos.
Por acórdão proferido em 19 de Setembro de 2019, o Tribunal de Segunda Instância decidiu negar provimento ao recurso.
Inconformada com a decisão, recorre A para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) O presente recurso tem por objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 19 de Setembro de 2019, que negou provimento ao recurso contencioso interposto pela ora Recorrente contra a decisão proferida pelo Exmo. Senhor Secretário para a Segurança do Governo de Macau, que confirmou a decisão de aplicação à ora Recorrente uma medida de interdição de entrada na Região Administrativa Especial de Macau pelo período de 3 anos.
B) A referida medida foi aplicada à ora Recorrente com fundamento no facto de a mesma ter sido detectada a trabalhar em Macau no dia 8 de Abril de 2015 sem estar autorizada para tal e de, com fundamento nesse facto, ter sido revogada a respectiva autorização de permanência, conforme estipulado no conjugadamente disposto nos artigos 11.º, n.º 1, al. 1), e 12.º, n.º 2, al. 2) e n.º 4 da Lei n.º 6/2004.
C) A entidade recorrida incorreu em grave erro de apreciação dos pressupostos de facto e direito da aplicação da medida de interdição de entrada à ora Recorrente.
D) Desde logo, porquanto nem no contexto do procedimento administrativo, nem no dos presentes autos de contencioso, a Entidade Recorrida fez (ou sequer tentou fazer) prova da existência de uma situação de trabalho carecida de autorização administrativa em Macau, cabendo-lhe, como é evidente tal ónus, tal como expressamente dispõe o artigo 87.º do Código de Procedimento Administrativo e unanimemente afirmado pela doutrina e jurisprudência citadas.
E) A Entidade o Tribunal recorridos limitam-se a considerar e valorizar a circunstância elencada na alínea K) do rol de factos assentes, segundo a qual a ora Recorrente terá prestado declarações perante o Corpo de Polícia de Segurança Pública em que afirmou (sic) “ter prestado trabalho na dita loja desse 01.01.2015, e que no âmbito do seu trabalho, atendia e vendia produtos a clientes, recebia dinheiro e fazia a gestão de documentos”.
F) Tal facto, porém, não só não pode assumir o significado que ao mesmo foi dado pelo Tribunal a quo, devendo, como tal, ser contextualizado à luz de todos os demais factos provados, como, do mesmo modo, o seu assentamento violou o disposto no artigo 437.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi o disposto no artigo 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, e, bem assim, no artigo 68.º deste último.
G) Por um lado, porquanto atentos os inúmeros elementos probatórios constantes dos autos, o Tribunal não poderia, sem mais, dar tal facto como provado:
a. Desde logo, porquanto tais declarações não podem tomar-se por decisivas. Nas declarações seguintes prestadas perante o mesmo Corpo de Polícia de Segurança Pública, em 20 de Outubro de 2016, a Recorrente esclareceu que apenas realizou tais tarefas no dia 08 de Outubro de 2015, por força de circunstâncias absolutamente excepcionais ligadas ao cumprimento defeituoso das tarefas cometidas às trabalhadoras locais e que tal não sucedeu em mais nenhum dos restantes dias e que apenas assinou o auto de interrogatório lavrado no dia 08 de Abril de 2015 sem a devida ponderação. Afirmou ainda que apresentou os mesmos esclarecimentos ao Ministério Público em declarações prestadas perante estes (cfr. documento n.º 1.5, junto com a petição de recurso);
b. Por seu turno, também as restantes testemunhas confirmaram tal versão dos acontecimentos, como mostram, designadamente, as declarações prestadas em julgamento pela testemunha Senhora B, acima transcritas (aos 20m:50s a 21m:12s da gravação do respectivo depoimento);
c. Encontra-se demonstrada a existência de um contrato de prestação de serviços entre uma entidade de Hong Kong e a sociedade sediada em Macau, proprietária do estabelecimento, para a prestação de serviços de carácter ocasional (cf. alíneas A) a I) da fundamentação de facto);
d. Por seu turno o carácter intermitente da permanência da Recorrente mostra que o propósito de deslocação da mesma à RAEM não poderia ser, pelo menos principalmente, o de prestar serviços próprios de mera vendedora da loja, porquanto o desempenho de tais tarefas corresponde a necessidades permanentes do estabelecimento.
H) Tais factos, inquestionavelmente provados impunham que o Tribunal recorrido não desse demasiado valor às declarações prestadas no dia 08 de Abril de 2015 – até porque as mesmas não foram prestadas perante o Tribunal recorrido, não podendo este invocar, sequer, qualquer especial convicção que pudesse ter resultado da sua imediação. Tais declarações não poderiam, por isso, ser mais ou menos valorizadas que as demais declarações prestadas pela ora Recorrente e que também constam dos autos.
I) Deste modo, num juízo objectivo e imparcial, impunha-se que, pelo menos, o teor da alínea K) fosse considerado duvidoso, resolvendo-se a sua prova a favor da ora Recorrente segundo a regra do artigo 437.º do Código de Processo Civil.
J) Acresce, ainda, por outro lado, que perante a existência de elementos probatórios díspares relativamente à natureza das funções exercidas pela ora Recorrente em Macau, caberia ao Tribunal a quo ter ordenado a produção das provas adicionais que considerasse necessárias para o total esclarecimento da verdade. Não o tendo feito, o Acórdão recorrido violou, relativamente ao assentamento da alínea K) da fundamentação de facto, o poder-dever que lhe estava confiado pelo artigo 67.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, razão pela qual deve, nessa parte, ser revogado.
K) Mas, em qualquer caso, atento o que acima ficou exposto, cabia ainda ao Tribunal recorrido fundamentar as razões porque valorizou as primeiras declarações e em detrimento de vários outros meios de prova carreados pela ora Recorrente em sentido diverso, acima referidos, o que sempre faz incorrer o Acórdão recorrido no vício de falta de fundamentação, gerador da respectiva nulidade, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
L) A Recorrente indicou ainda, no capítulo IV, uma súmula sistemática dos factos que resultam provados nos presentes autos e que são relevantes para a decisão quanto ao mérito do presente recurso.
M) E perante tais factos provados e indevidamente desconsiderados pelo Tribunal a quo à luz do Direito aplicável, resulta que a situação dos presentes autos não só não configura uma situação que devesse estar sujeita a autorização administrativa para a contratação de trabalhadores não residentes, como, do mesmo modo nem sequer se pode qualificar como de trabalho ilegal ao abrigo do Regulamento Administrativo 17/2004, em particular, por força da violação dos limites temporais e funcionais impostos pelo disposto no artigo 4.º do referido regulamento.
N) O artigo 4.º do Regulamento Administrativo 17/2004 apresenta-se como uma excepção à norma do artigo 2.º alínea 1) do mesmo regulamento, o que pressupõe, naturalmente que a hipótese normativa deste último preceito legal esteja verificada.
O) O artigo 2.º, alínea 1) considera como trabalho ilegal aquele que é prestado (sic) “pelo não residente que não possua a necessária autorização para exercer actividade por conta de outrem, ainda que não remunerada”.
P) A definição das situações em que se mostra necessária (e possível) a obtenção de uma autorização administrativa para a prestação de trabalho por conta de outrem encontra-se, por seu turno, cometida à Lei 21/2009, que sujeita a tal autorização as situações que que reúnem os seguintes pressupostos:
i) A existência de uma relação de trabalho que reúna as características elencadas no artigo 1079.º do Código Civil, ou seja, 1) a obrigação de uma pessoa prestar a outra a sua actividade manual ou intelectual, 2) a subordinação do obrigado à prestação do trabalho à autoridade e poder de direcção do empregador e 3) a obrigação do empregador de pagar uma remuneração como contrapartida da prestação de trabalho;
ii) Que a prestação de trabalho ao abrigo de tal contrato tenha lugar na RAEM;
iii) Que o trabalhador seja um não residente; e
iv) Que o empregador em causa seja pessoa singular com residência na RAEM ou uma pessoa colectiva com sede ou estabelecimento na mesma.
Q) O artigo 2.º, al. 1), do regulamento administrativo 17/2004, pressupõe tal situação, mas prescinde de um dos elementos tipicamente caracterizadores da relação labora: a remuneração. Assim, tal norma regulamentar considera também como trabalho ilegal as situações em que a prestação de trabalho não se mostre remunerada.
R) Contudo, trata-se do único requisito de que o Regulamento Administrativo 17/2004 prescinde, não excluindo a necessidade de verificação dos demais elementos de que depende a necessidade de autorização administrativa para a prestação de trabalho, designadamente que a relação em causa seja estabelecida com uma das entidades referidas no artigo 5.º da Lei 21/2009, ou seja, com um empregador local, o que, in casu, não se verificou.
S) Deste modo, a situação dos presentes autos, em rigor, nem sequer está abrangida pelo disposto na lei 21/2009, sendo da mesma expressamente excluída pelo disposto no artigo 1.º, n.º 3 da referida lei e, como tal, não configura uma situação que devesse (ou pudesse) estar sujeita a qualquer autorização administrativa.
T) E porque assim é, tal situação não está abrangida pelo disposto no artigo 2.º al. 1) do Regulamento Administrativo 17/2004, e, consequentemente, também não está sujeita aos limites ou requisitos impostos pelo artigo 4.º do Regulamento Administrativo, porquanto este constitui uma excepção ao – e por isso pressupõe a hipótese normativa do – artigo 2.º, al. 1) do referido Regulamento.
U) Em rigor, estando tal situação excluída da aplicação da Lei 21/2009 por força do disposto no seu artigo 1.º, n.º 3, a mesma não está sequer sujeita a quaisquer limites temporais ou funcionais.
V) Mas, mesmo que assim se não entenda, e que, como tal, a prestação de trabalho pela Recorrente devesse estar sujeita aos limites impostos pelo artigo 4.º do Regulamento Administrativo 17/2004, ainda assim resulta dos autos que tais requisitos foram integralmente cumpridos, pelas seguintes razões:
a. Foi provada a celebração de um contrato de prestação de serviços entre uma entidade sediada na RAEHK e uma sociedade sediada em Macau, que tinha por objecto a formação e supervisão dos trabalhadores da sociedade de Macau, particularmente justificada pela abertura, por esta, da sua primeira loja em Macau (cfr. documento n.º 8, junto com a Petição Inicial e alíneas A) a I) dos factos assentes);
b. Apenas se provou que a ora Recorrente permaneceu em Macau durante 56 dias no período de 6 meses anterior, não se tendo provado que a ora Recorrente trabalhou efectivamente mais do que 45 dias durante esse período. Ficou, aliás, provado que a mesma permaneceu em Macau em dias em que não prestou trabalho (cf. 20m:58s a 21m:36s da gravação do depoimento da testemunha C e 11m:21s a 12m:01s da gravação do depoimento da testemunha B);
c. O facto de a ora Recorrente ter realizado tarefas de venda de produtos, recebido dinheiro e processado documentos respeitantes a essas vendas, foi concreta e circunstancialmente exigido pela necessidade de suprimento do cumprimento defeituoso, pontual e ocasional, das trabalhadores locais na realização das tarefas que lhe cabiam e, como tal, compreendido no âmbito das respectivas funções de supervisão e controlo, sendo, por isso, ainda, trabalhos de natureza ocasional (e mesmo excepcional).
W) Mesmo que se não entenda no sentido imediatamente anterior, ainda assim, a entidade e o tribunal recorridos incorreram em erro nos pressupostos de direito de que depende a aplicação de uma medida de interdição de entrada.
X) E assim, porque ambas tomam por assente que todas as situações de trabalho ilegal, tal como definidas no Regulamento Administrativo 17/2004, consubstanciam situações de trabalho sem a necessária autorização administrativa, atribuindo-lhes, por isso, os mesmos efeitos e as mesmas consequências.
Y) E como já se anteviu supra, não é assim: o âmbito das situações consideradas pelo Regulamento Administrativo 17/2004 como trabalho ilegal é significativamente mais amplo – e por isso diferente – que as situações em que a prestação de trabalho por um não residente está sujeita a autorização administrativa.
Z) Nos termos da Lei 21/2009, a necessidade de autorização administrativa para a contratação de (i) trabalhadores residentes apenas se verifica quando (ii) a mesma tenha por objecto uma relação de trabalho, que reúna as características do artigo 1079.º do Código Civil, (iii) que vise a prestação de trabalho na RAEM e, (iv) que a mesma seja celebrada com um empregador local, tal como definido no artigo 5.º da referida lei.
AA) A falta de qualquer dos referidos requisitos, designadamente, a ausência do carácter remuneratório da actividade ou a celebração de contratos de trabalho com empregadores não locais, importa a exclusão das referidas situações da Lei 21/2009 e, como tal, da necessidade de sujeição a autorização administrativa.
BB) O regulamento administrativo 17/2004 apenas estabelece a necessidade de autorização administrativa para a realização de trabalho na RAEM em proveito próprio, nos termos do artigos 2.º, al. 4) e, 3.º daquele diploma. O mesmo não estabelece as situações em que a prestação de trabalho por conta de outrem está sujeita a autorização administrativa. Tal tarefa cabe, em exclusivo à Lei 21/2009.
CC) No entanto, o Regulamento Administrativo 17/2004, caracteriza como trabalho ilegal situações de prestação de trabalho por conta de outrem que não se acham compreendidas no âmbito da Lei 21/2009, designadamente situações em que tal prestação de trabalho não se mostra remunerada ou, situações em que se mostrem violados os limites do artigo 4.º daquele regulamento.
DD) Tal mostra que o Regulamento Administrativo 17/2004 apresenta um âmbito normativo mais amplo na caracterização das situações de trabalho ilegal, que o das situações em que a prestação de trabalho por conta de outrem está sujeita a autorização administrativa.
EE) Tal, porém, não significa, nem pode significar que a definição do que seja trabalho ilegal para efeitos do Regulamento 17/2004 imponha, para as situações não compreendidas na Lei 21/2009, a necessidade de uma autorização administrativa. Por um lado, porque nenhum regulamento administrativo, seja complementar seja independente, pode prevalecer sobre as leis, muito menos, com efeito de eficácia externa, violar, interpretar, integrar, modificar ou revogar os preceitos contantes da lei, sob pena da violação do princípio da prevalência da lei consagrado no artigo 3.º da Lei n.º 13/2009 (Regime Jurídico do Enquadramento das Fontes Legislativas Internas) e, por outro lado, a própria Lei 21/2009 revoga expressamente o Regulamento Administrativo 17/2004 em tudo o que neste contrariar aquela (cfr. 43.º, al. 3) da Lei 21/2009).
FF) Deste modo, nunca poderia resultar do Regulamento Administrativo 17/2004 a necessidade de autorização administrativa para a prestação de trabalho por conta de outrem mesmo quando no referido regulamento tais situações sejam caracterizadas como de trabalho ilegal, designadamente quando:
a) Esteja em causa a prestação de trabalho por não residente a favor de um empregador não local, nos termos definidos no artigo 5.º da Lei 21/2009;
b) Esteja em causa a prestação por não residente de trabalho não remunerado a favor de um empregador local;
GG) A primeira situação não só está expressamente excluída da necessidade – e possibilidade – de autorização administrativa para a contratação de trabalhadores não residentes, como, do mesmo modo, nem sequer configura qualquer situação de trabalho ilegal. A segunda, não obstante configurar uma situação de trabalho ilegal nos termos do artigo 2.º, al. 1) da Lei 21/2009, não configura um contrato de trabalho típico e, por isso, não se enquadra no âmbito da Lei 21/2009.
HH) O âmbito do Regulamento Administrativo 21/2009 é, pois, diferente – mais amplo – do da Lei 21/2009 e a definição do que ali é considerado trabalho ilegal apenas parcialmente coincide com o desta última lei.
II) Daí que o artigo 2.º do referido regulamento seja bem claro ao afirmar que as situações aí descritas configuram situações de trabalho ilegal apenas para efeitos daquele regulamento, estando aí previstas sanções específicas para as situações que o mesmo caracteriza como de trabalho ilegal. O que significa, por outras palavras, que os efeitos da caracterização de determinadas situações como de trabalho ilegal se circunscrevem às previsões normativas daquele diploma.
JJ) Em suma, nem todas as situações de trabalho ilegal previstas no Regulamento Administrativo 17/2004, mesmo as previstas nas alíneas 1) a 3) do seu artigo 2.º, correspondem necessariamente a uma situação de ausência de autorização administrativa devida nos termos da Lei 21/2009.
KK) Ora, a medida de interdição de entrada aplicada à Recorrente funda-se no conjugadamente disposto nos artigos 11.º, n.º 1, al. 1) e 12.º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 6/2004, ou seja, em suma, funda-se no facto de a ora Recorrente (sic) “trabalhar na RAEM sem estar autorizada para tal” (cfr. art.º 11.º, n.º 1, al. 1) da Lei 6/2004).
LL) A interpretação do preceito em causa mostra ser absolutamente inequívoco que a aplicação de uma medida de interdição de entrada com fundamento na al. 1) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei 6/2004 pressupõe, natural e necessariamente, que a situação em causa careça de uma autorização para a prestação de trabalho. Trata-se da única interpretação verdadeiramente consistente e coerente à luz do fundamento histórico-genético, sistemático e teleológico da referida norma.
MM) E vimos já supra, que as situações de necessidade de autorização administrativa para a prestação de trabalho na RAEM não coincidem com todas as situações definidas pelo Regulamento Administrativo 17/2004 como de trabalho ilegal. Para que tal autorização pudesse e devesse ter lugar, era necessário que se verificasse uma de duas situações:
a) ou que a situação da ora Recorrente cabia no âmbito da Lei 21/2009, ou seja, que a mesma tenha celebrado um contrato de trabalho com uma pessoa ou entidade prevista no artigo 5.º da Lei 21/2009, estando por isso a prestação de trabalho sujeita à autorização de contratação prevista naquela lei; ou, bem assim,
b) que a ora Recorrente prestou trabalho directamente e em proveito próprio sem observância do disposto no artigo 3.º do Regulamento Administrativo 17/2004.
Nenhuma das referidas situações ficou provada nos presentes autos.
NN) Desde logo, porque não foi demonstrado que a ora Recorrente tenha entrado em qualquer relação laboral com qualquer empregador local, nos termos definidos no artigo 5.º da Lei 21/2009, mas, antes, e apenas, que a ora Recorrente mantinha (e mantém) uma relação laboral com uma entidade sediada em Hong Kong, apenas se deslocando à RAEM para cumprir as obrigações contratuais que a sua empregadora havia contratado com uma entidade local.
OO) Tal situação encontra-se expressamente excluída do âmbito da Lei 21/2009 por força do disposto no seu artigo 1.º, n.º 3, estando, por isso, vedada a possibilidade de a mesma sequer poder estar sujeita a uma autorização administrativa emitida pelas autoridades da RAEM.
PP) Em rigor, tal situação, por ser ocasional e por ser prestado por conta de entidade não prevista no artigo 5.º da Lei 21/2009, a prestação de tal trabalho não só não carece de qualquer autorização como não estaria sujeita a qualquer limite temporal.
QQ) Do mesmo modo, tal situação também não configura qualquer actividade em proveito próprio da Recorrente, pelo que não estaria sujeito à autorização prevista no artigo 3.º do Regulamento Administrativo 17/2004.
RR) Não se demonstrou ainda que a ora Recorrente recebesse da sociedade de Macau qualquer remuneração pelos serviços prestados ou que trabalhasse sob a autoridade e direcção da mesma. Ao invés, resulta do contrato junto como documento n.º 8 com a petição inicial que respectiva remuneração era assegurada pelo seu empregador.
SS) Deste modo, mesmo que se tivesse mostrado – o que não aconteceu – que a ora Recorrente trabalhasse por conta da Sociedade de Macau, a ausência do elemento remuneratório excluiria que a referida situação pudesse caber no âmbito da Lei 21/2009.
TT) Do mesmo modo, mesmo que se pudesse entender que a mesma caberia nos limites temporais do artigo 4.º do Regulamento Administrativo 17/2004, a simples violação desses limites não tornaria a prestação de tal trabalho sujeita a qualquer autorização administrativa ao abrigo da Lei 21/2009.
UU) Tal situação não deixaria de configurar uma violação da lei e seria sancionada ao abrigo do disposto no artigo 9.º, n.º 1, al. 4) do Regulamento Administrativo 17/2004, mas não se trataria, por esse facto, de uma situação enquadrável na Lei 21/2009, porquanto a Recorrente não estabeleceu nenhuma relação laboral com qualquer entidade com sede ou estabelecimento em Macau nem, muito menos, foi pela mesma remunerada.
VV) Como tal, dos factos assentes e demais prova produzida nos autos não foi demonstrado que a actividade prestada pela ora Recorrente coubesse nos pressupostos de que depende a emissão de uma autorização administrativa e, como tal, falha o pressuposto normativo em que se pode fundar a medida de interdição de entrada aplicada à ora Recorrente, nos termos do conjugadamente disposto nos artigos 11.º, n.º 1, al. 1) e 12.º, n.º 2 al. 2), da Lei 6/2004 o que deve determinar a revogação do acórdão recorrido e a substituição por outro que determine a anulação do acto administrativo recorrido, o que desde já como a final se requer.
WW) O artigo 12.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2004 prevê que “o período de interdição de entrada deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam”.
XX) Nos termos do artigo 5.º, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo, “as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar”.
YY) O princípio de proporcionalidade constitui os limites internos do exercício do poder discricionário, por força do qual a medida de interdição de entrada tem de ser idónea ou adequada, sendo capaz de conduzir ao objecto que se visa; necessária, sendo, entre as medidas idóneas, aquela menos lesiva; e proporcional ou equilibrada, sendo aceitável em função de sacrifícios e benefícios.
ZZ) O período de interdição de 3 anos não é proporcional à gravidade, perigosidade e censurabilidade dos actos da Recorrente.
AAA) O Acórdão Recorrido deve ser revogado por violação do disposto no artigo 12.º/2, 2) e 4 da Lei 6/2004 e do artigo 5.º/2 do Código do Procedimento Administrativo, o que subsidiariamente se requer.

O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de negar provimento ao recurso jurisdicional.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos
Nos autos foi considerada assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
A) - a ora recorrente é residente na R.A.E.H.K. e trabalhadora da [Limitada], com sede em Hong Kong, – doravante designada por [Limitada (Hong Kong)], que pertence ao [Grupo] – exercendo funções de supervisão na loja explorada pelo Grupo localizada no Aeroporto Internacional de Hong Kong;
B) - a actividade do [Grupo] consiste na promoção, distribuição e venda a retalho de produtos de várias marcas de luxo, entre as quais se contam os produtos da marca “X”;
C) - em Janeiro de 2014, a sociedade [Limitada (Macau)] abriu o seu primeiro estabelecimento de venda a retalho de produtos / acessórios para o cabelo da marca X em Macau, na [Endereço];
D) - desde a sua abertura e até ao seu encerramento em Abril de 2015, a [Limitada (Macau)] dispunha de um quadro de pessoal trabalhador na referida loja constituído por cerca de 4 a 5 trabalhadores residentes em Macau, tendo-se verificado várias entradas e saídas de pessoal durante esse período;
E) - por essa razão, e pela (normal) inexperiência e desconhecimento por parte dos trabalhadores residentes recém-contratados relativamente aos produtos comercializados, a [Limitada (Macau)] celebrou, em 01.04.2014, um contrato com a sociedade [Limitada (Hong Kong)] para lhe solicitar apoio e serviços técnicos com vista a assegurar o bom funcionamento da sua actividade comercial;
F) - nos termos do referido contrato:
i) a [Limitada (Hong Kong)] obrigava-se a destacar ocasionalmente para Macau trabalhadores seus para prestar à [Limitada (Macau)] apoio técnico e serviços relacionados com o recrutamento, supervisão e formação das funcionárias locais;
ii) a sociedade [Limitada (Macau)] obrigava-se a suportar as despesas de transporte, alimentação e alojamento do(s) trabalhador(es) enviado(s) pela sociedade [Limitada (Hong Kong)];
G) - para o cumprimento do referido contrato, a [Limitada (Hong Kong)] destacou profissionais para prestação de serviços técnicos à [Limitada(Macau)];
H) - o termo inicial do referido contrato era de 01.04.2014 a 31.03.2015;
I) - em face da contínua necessidade dos referidos serviços, a [Limitada (Hong Kong)] e a [Limitada (Macau)] procederam à renovação do aludido contrato por mais um ano;
J) - no dia 08.04.2015, após uma denúncia da existência de duas pessoas de Hong Kong a trabalhar sem (a devida) autorização para tal na loja do [Endereço], guardas do C.P.S.P. para aí se deslocaram, encontrando no local a ora recorrente e B, também trabalhadora da [Limitada (Hong Kong)], (e recorrente no âmbito dos Autos de Recurso Contencioso n.º 390/2017, já findo, e que se encontra apenso aos presentes autos);
K) - nas declarações que a recorrente prestou na P.S.P., a mesma confirmou ter prestado trabalho na dita loja desde 01.01.2015, e que no âmbito do seu trabalho, atendia e vendia produtos a clientes, recebia dinheiro e fazia a gestão de documentos;
L) - atento o registo das suas entradas e saídas de Macau, no período de 01.01.2015 a 08.04.2015, a mesma permaneceu em Macau um total de 56 dias, com estadias de 5, 6, 8 e 9 dias consecutivos;
M) - foi a sua situação considerada “prestação de trabalho ilegal” para efeitos do Regulamento Administrativo n.º 17/2004, e pagou a recorrente a multa que por tal “infracção administrativa” lhe foi aplicada;
N) - por despacho do Comandante da P.S.P. de 09.04.2015, foi revogada a autorização da sua residência em Macau;
O) - por despacho de 20.04.2016, foi a mesma interditada de entrar em Macau por 3 anos;
P) - em sede do recurso hierárquico que do assim decidido interpôs, proferiu o Secretário para a Segurança o seguinte:
“DESPACHO
Assunto: Recurso hierárquico necessário
Recorrente: A
Avaliando o teor do despacho do Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, substituto, de 2016.04.20, confirmado por despacho do mesmo titular, de 2016.05.20 (após ponderação dos argumentos apresentados, ainda que extemporaneamente, pela ora Recorrente, em sede de audiência escrita) e compulsado todo o processo instrutor, mostra-se suficientemente comprovado que, em 2015.04.08, a Recorrente se encontrava na loja, denominada “X”, no [Endereço], praticando actos que configuravam prestação de trabalho no referido local. Todavia, não demonstrou possuir autorização para esse efeito (de prestação de trabalho) emitida por autoridade competente da RAEM, sendo que, por esse facto, acabou por ser punida, com multa, pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, que não impugnou.
A Recorrente alega falta de fundamentação do acto recorrido, mas sem razão, como resulta, de resto, dos próprios termos da petição de recurso. De facto, o acto administrativo deve considerar-se fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal, possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção. E, desde o início do procedimento, logo em sede de audiência prévia (cfr. n.º 62 da pronúncia, a fls. 82), ficou bem evidente que a Recorrente teve pleno conhecimento das razões de facto e de direito subjacentes à medida de interdição de entrada que acabou por lhe ser aplicada.
A Recorrente alega também que o prazo de interdição é desproporcional, mas o argumento não colhe, pois o prazo de 3 anos, que foi aplicado no caso concreto, está bem longe do limite máximo legal, que tem sido situado em 10 anos (extraído da alínea l) do n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 6/97/M, de 30 de Junho).
A Recorrente alegou, ainda, que os actos que praticou, na loja, foram de natureza pontual e que a situação não era ilegal porque estava abrangido pela excepção prevista na alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 17/2004. Porém, não logrou fazer prova adequada, inequívoca, dos requisitos de que depende a verificação de tal excepção.
Por isso, foi justificada a revogação da autorização de permanência, determinada por despacho de 2015.04.09, do Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, ao abrigo da alínea 1) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 6/2004, de que a Recorrente tomou conhecimento e que nunca impugnou (fls. 15 e 16).
E, uma vez que a lei (concretamente, a alínea 2) do n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 6/2004) determina que pode ser aplicada a medida administrativa de interdição de entrada ao não residente a quem tenha sido revogada a respectiva autorização de permanência na RAEM ao abrigo da alínea 1) do n.º 1 do artigo 11.º da mesma Lei, não merece censura a decisão contida no acto administrativo impugnado, que aplicou à Recorrente, A, a medida de interdição de entrada na RAEM por um período de 3 anos.
Assim, e considerando que da petição de recurso hierárquico não decorre nenhum outro argumento que imponha ou aconselhe a revogação do acto impugnado, concluo que este tem bom fundamento de facto e de direito, e está adequadamente motivado, pelo que, ao abrigo do artigo 161.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, decido confirmá-lo, negando provimento ao presente recurso.
Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 07 de Fevereiro de 2017.
(…)”; (cfr., fls. 66 a 66-v).

3. Direito
Imputa a recorrente o vício de erro grave de apreciação dos pressupostos de facto e direito da aplicação da medida de interdição de entrada, para além da nulidade do acórdão recorrido.
Vejamos.

3.1. Vamos começar por apreciar a questão de nulidade do acórdão recorrido.
Invoca a recorrente a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC, alegando que o acórdão recorrido incorreu no vício de falta de fundamentação, dado que não fundamentou as razões porque valorizou as suas primeiras declarações e em detrimento de vários outros meios de prova carreados pela recorrente em sentido diverso.
Nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC, verifica-se a nulidade da sentença quando esta “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Repare-se que aqui o legislador exige a especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, e não a explicação de razões que levou o tribunal a dar como provado(s) determinado(s) facto(s).
No âmbito do recurso contencioso não se encontra nenhuma norma a exigir que a sentença deve fundamentar as razões decisivas para a convicção do julgador.
Sobre a questão ora suscitada, convém chamar-se à colação o entendimento exposto no acórdão deste Tribunal de Última Instância, proferido no Proc. n.º 32/2008, de 29 de Junho de 2009, que faz consignar o seguinte:
《Como se sabe, em processo civil, na acção declarativa com forma ordinária, que constitui o paradigma para as restantes formas de processo civil e, por conseguinte, para os restantes direitos processuais, há uma cisão entre o julgamento de facto e o julgamento de direito.
O julgamento da matéria de facto tem lugar por meio de uma decisão em que o tribunal (na maior parte dos casos o tribunal colectivo) “... declara quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador” (art. 556.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
Posteriormente, tem lugar o julgamento de direito, que se consubstancia na sentença, que é sempre proferida por um juiz (singular).
A estrutura da sentença consta do art. 562.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe:
Artigo 562.º
(Sentença)
“1. A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
2. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
3. Na fundamentação da sentença, o juiz toma em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
4. ...”
Assim, em processo civil, na sentença o juiz não indica os factos não provados, mas apenas os factos provados. Deste modo, mesmo que o Código de Processo Civil fosse aplicável à sentença no recurso contencioso, estava o recorrente equivocado ao defender a aplicação de norma que se aplica à decisão de julgamento de facto e não à sentença, em que se consubstanciou o Acórdão recorrido.
Na verdade, o artigo 556.º, n.º 2 do Código de Processo Civil não se aplica à sentença.
No recurso contencioso não há uma separação entre o julgamento de facto e de direito. À semelhança do processo penal, no recurso contencioso, na sentença (ou Acórdão se se tratar do TSI), procede-se ao julgamento de facto e de direito.
O Código de Processo Administrativo Contencioso contém uma norma respeitante à sentença no recurso contencioso, que é o artigo 76.º e que dispõe:
“Artigo 76.º
(Conteúdo da sentença e acórdão)
A sentença e o acórdão devem mencionar o recorrente, a entidade recorrida e os contra-interessados, resumir com clareza e precisão os fundamentos e conclusões úteis da petição e das contestações, ou das alegações, especificar os factos provados e concluir pela decisão final, devidamente fundamentada”.
Ora, esta norma determina que a sentença especifique os factos provados, mas não os factos não provados, pelo que, tendo aplicação directa ao nosso caso, não será de aplicar subsidiariamente o artigo 562.º do Código de Processo Civil. Mas ainda que o fosse, o resultado seria o mesmo.
Ou seja, tanto em processo civil, como em processo administrativo contencioso, a sentença não indica os factos alegados pelas partes não considerados provados pelo tribunal, mas indica apenas os factos provados.
Não tem, pois, razão o recorrente nesta parte.
Já quanto à tese do recorrente, de que Acórdão recorrido é nulo porque não especificou os meios de prova usados para considerar os factos provados, nem os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, a questão é mais complexa.
O artigo 76.º Código de Processo Administrativo Contencioso, atrás transcrito, não impõe ao julgador tal obrigação, naquela norma que se refere à estrutura da sentença no recurso contencioso.
Mas já o n.º 3 do artigo 562.º do Código de Processo Civil determina que “na fundamentação da sentença, o juiz toma em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer”.
Na sentença, além dos factos considerados provados na decisão sobre a matéria de facto – factos sujeitos à livre apreciação do julgador (artigo 558.º, n.º 1) - o juiz considera, ainda, os factos cuja prova se baseia em meios de prova que escapam ao julgador da matéria de facto (factos admitidos por acordo ou não impugnados nos articulados, provados por documentos – prova plena – ou por confissão escrita).
Na sentença, quando o juiz examina criticamente as provas fá-lo “... de modo diferente de como fez o julgador da matéria de facto: não se trata já de fazer jogar a convicção formada pelo meio de prova, mas de verificar atentamente se existiram os factos em que se baseia a presunção legal (lato sensu) e delimitá-los com exactidão para seguidamente aplicar a norma de direito probatório”1.
Assim, o Acórdão recorrido não tinha de especificar os meios de prova usados para considerar os factos provados, nem os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.》
É de mantar tal posição.
Não se verifica no presente caso a nulidade invocada pela recorrente.

3.2. Relativamente ao facto relatado no ponto K) que foi considerado provado pelo acórdão recorrido, alega a recorrente que tal facto foi indevidamente dado como assente, em violação de princípios basilares do direito probatório, material e processual.
Invoca ainda a violação do disposto no art.º 437.º do CPC e no art.º 67.º do CPAC.
Pode ler-se na alínea K) dos factos provados o seguinte: “Nas declarações que a recorrente prestou na P.S.P., a mesma confirmou ter prestado trabalho na dita loja desde 01.01.2015, e que no âmbito do seu trabalho, atendia e vendia produtos a clientes, recebia dinheiro e fazia a gestão de documentos”.
Na óptica da recorrente, a entidade recorrida não fez prova da existência de uma situação de trabalho carecida de autorização administrativa em Macau, não cumprindo o ónus de prova imposto pelo n.º 1 do art.º 87.º do CPA, e o Tribunal a quo não dispunha de elementos probatórios que lhe permitiam sancionar positivamente o despacho de aplicação da medida de interdição.
Ora, tal como salienta o Digno Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer, o que a recorrente pretende é pôr em causa a matéria de facto assente naquela alínea K).
Nos termos do art.º 47.º n.º 1 da Lei de Bases da Organização Judiciária, o Tribunal de Última Instância, quando julgue em recurso correspondente a segundo grau de jurisdição, conhece de matéria de facto e de direito, excepto disposições em contrário das leis de processo.
E ao abrigo do art.º 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, o recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada.
O que decorre desta norma é que, em recurso jurisdicional de decisões de processo contencioso administrativo, o Tribunal de Última Instância aprecia, em princípio, questão de direito e não de facto.
E no que concerne ao âmbito do julgamento do recurso para o Tribunal de Última Instância, é ainda subsidiariamente aplicável, por força do disposto no art.º 1.º do Código de Procedimento Administrativo Contencioso, a norma do art.º 649.º do Código de Processo Civil, cujo n.º 2 prevê expressamente que “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
Fica assim delimitada a competência do Tribunal de Última Instância em apreciar a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto, que é, em princípio, intocável, salvo nos caso expressamente previstos na parte final do n.º 2 do art.º 649.º.
E como foi dito no acórdão deste TUI, de 27 de Novembro de 2002, no Processo n.º 12/2002, em recurso jurisdicional não pode o TUI censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de fato. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes.
O TUI tem competência para conhecer de questões relativas a matéria de facto se forrem violadas normas e princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto, como decorre do disposto no n.º 2 do art.º 649.º do Código de Processo Civil de Macau.
Mas não tem competência para apreciar o julgamento na matéria de facto quando se alegam violações que decorrem da mera livre apreciação das provas, quando não está em causa qualquer julgamento em violação de meio de prova plena.
É que, como adverte Rodrigues Bastos, em anotação à norma semelhante do Código de Processo Civil português, “repare-se, porém, que ainda aqui – e sempre – a actividade do Tribunal se situa no estrito campo da observação da lei; ele não faz a censura da convicção formada pelas instâncias quanto à prova; limita-se a reconhecer e a declarar, em qualquer dos casos, que havia obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos – e não respeita directamente à existência ou inexistência destes”.2
Esta doutrina foi reafirmada nos acórdãos posteriores.3
No caso dos autos, não se vê, nem a própria recorrente chegou a alegar, a violação de alguma disposição legal que expressamente exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, pelo que não é de alterar a matéria de facto assente.
E também não se vislumbra a invocada violação do disposto do disposto no art.º 437.º do CPC e no art.º 67.º do CPAC nem ainda no art.º 87.º do CPA, até porque a factualidade apurada nos autos permite enquadra a situação da recorrente na previsão de trabalho ilegal, que vamos demonstrar a seguir.

3.3. Na tese da recorrente, a sua situação não só não configura uma situação que devesse estar sujeita a autorização administrativa para a contratação de trabalhadores não residentes, como nem sequer se pode qualificar como de trabalho ilegal ao abrigo do RA n.º 17/2004, em particular, por força da violação dos limites temporais e funcionais impostos pelo disposto no artigo 4.º do referido regulamento, pelo que incorreram a entidade e o tribunal recorridos em erro nos pressupostos de direito de que depende a aplicação de uma medida de interdição de entrada.

Ora, a Lei n.º 21/2009 (Lei da contratação de trabalhadores não residentes) estabelece o regime geral da contratação de trabalhadores não residentes para prestarem trabalho na RAEM.
Em regra, para poderem trabalhar legalmente em Macau, os não residentes devem obter a prévia autorização administrativa concedida ao empregador (al. 7 do art.º 2.º da Lei n.º 21/2009) e tão só poderão exercer a sua actividade laboral na RAEM depois de concedida a autorização de permanência na qualidade de trabalhador e apenas enquanto essa autorização se mantiver válida (art.º 7.º do RA n.º 8/2010), sob pena de prestação ilegal de trabalho, com excepção de trabalho prestado “por não residentes ao abrigo de um contrato de prestação de serviços ou na qualidade de trabalhadores de entidade não incluída no artigo 5.º, nomeadamente aqueles que se desloquem ocasionalmente a RAEM, a convite de uma entidade local, para participar em actividades religiosas, desportivas, académicas, culturais ou artísticas, ainda que remuneradas” (n.º 3 do art.º 1 do mesmo diploma).
Não se nos afigura que, nos presentes autos, estamos perante uma situação excepcional prevista no n.º 3 do art.º 1 da Lei n.º 21/2009.
Por um lado, não obstante a celebração do contrato pela [Limitada (Macau)] com a sociedade [Limitada (Hong Kong)] para lhe solicitar apoio e serviços técnicos com vista a assegurar o bom funcionamento da sua actividade comercial, certo é que tal contrato não é contrato de prestação de serviço, que é, como se sabe, “aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição” (art.º 1080.º do Código Civil).
E não se trata da entidade não incluída no art.º 5.º da Lei n.º 21/2009, sendo [Limitada (Macau)] a sociedade “com sede ou estabelecimento comercial ou industrial na RAEM” (al. 2 do n.º 1 do art.º 5.º).
Sendo embora a recorrente trabalhadora da sociedade de Hong Kong e mesmo que não se estabeleça formalmente a relação de trabalho entre a recorrente e a sociedade de Macau, certo é que, desde 01.01.2015, a recorrente encontrava-se em Macau, tendo prestado trabalho na loja explorada por esta sociedade, até se pode dizer que existe uma relação de trabalho de facto entre ambas.
E a prestação de trabalho pela recorrente é remunerada, dado que, conforme a factualidade provada, a sociedade de Macau se obrigava a suportar as despesas de transporte, alimentação e alojamento do(s) trabalhador(es) vindos de Hong Kong.
Por outro lado, a deslocação da recorrente a Macau não se destina à participação em actividades religiosas, desportivas, académicas, culturais ou artísticas.
Daí que, no âmbito da Lei n.º 21/2009, estamos perante uma situação em que é necessária a autorização administrativa para se poder prestar trabalho em Macau.
A definição de trabalho ilegal encontra-se no RA n.º 17/2004 (Regulamento sobre a Proibição do Trabalho Ilegal), que estabelece a proibição da aceitação ou prestação ilegal de trabalho e o correspondente regime sancionário (art.º 1.º).
Nos termos da al. 1) do art.º 2.º de tal diploma, é considerado como trabalho ilegal aquele prestado pelo não residente da RAEM “que não possua a necessária autorização para exercer actividade por conta de outrem, ainda que não remunerada”.
E estão expressamente previstas no art.º 4.º do RA n.º 17/2004 as situações excepcionais em que a prestação de actividade pelo não residente não se considera ilegal, não sendo abrangidas pelo disposto na al. 1) do art.º 2.º do mesmo diploma.
“Artigo 4.º
Excepções
1. Salvo disposição legal em contrário, não são abrangidas pelo disposto na alínea 1) do artigo 2.º do presente regulamento administrativo as seguintes situações em que o não residente preste uma actividade:
1) Quando tenha sido celebrado um acordo entre empresas sediadas fora da Região Administrativa Especial de Macau, adiante designada por RAEM, e pessoas singulares ou colectivas sediadas na RAEM para realização de obras ou serviços determinados e ocasionais, nomeadamente, quando haja necessidade de utilização de trabalhadores fora da RAEM para prestação de serviços de direcção, técnicos, de controlo de qualidade ou de fiscalização;
2) Quando a pessoa singular ou colectiva sediada na RAEM convide o não residente a exercer actividades religiosas, desportivas, académicas, de intercâmbio cultural e artísticas.
2. As excepções previstas no n.º 1 para permanência do não residente para a prestação de trabalho ou serviço são limitadas a um prazo máximo de quarenta e cinco dias por cada período de seis meses, consecutivos ou interpolados.
3. O período de seis meses referido no número anterior conta-se a partir da data da entrada legal do não residente na RAEM.
4. Nas situações previstas na alínea 1) do n.º 1, deve existir um registo, permanentemente actualizado, dos dias em que o não residente exerce efectivamente a sua actividade, o qual deve ser exibido, sempre que solicitado, às entidades fiscalizadoras mencionadas no número seguinte.
5. Quando a Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), o Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) ou os Serviços de Alfândega (SA) considerarem que a actividade exercida pelo não residente não está em conformidade com a situação prevista no n.º 1, devem comunicar esse facto à pessoa singular ou colectiva da RAEM a quem o trabalhador não residente presta serviço, devendo esta, logo após tomar conhecimento da comunicação, pôr termo à actividade do não residente.”
Verifica-se na al. 1) do n.º 1 do art.º 4.º uma das excepções do trabalho ilegal quando tenha sido celebrado um acordo entre empresas sediadas fora da RAEM e pessoas singulares ou colectivas sediadas na RAEM para realização de obras ou serviços determinados e ocasionais, nomeadamente, quando haja necessidade de utilização de trabalhadores fora da RAEM para prestação de serviços de direcção, técnicos, de controlo de qualidade ou de fiscalização.
E conforme a estatuição dos n.ºs 2 e 3 do art.º 4.º, as excepções previstas no n.º 1 do art.º 4.º para permanência do não residente para a prestação de trabalho ou serviço são limitadas a um prazo máximo de 45 dias por cada período de 6 meses, consecutivos ou interpolados, a contar da data da entrada legal do não residente na RAEM.
Por outras palavras, a prestação de serviço pelo não residente não é qualificada como trabalho ilegal desde que: i) haja acordo entre empresas sediadas fora da RAEM e pessoas singulares ou colectivas sediadas na RAEM; ii) a celebração do acordo vise a realização de obras ou serviços determinados e ocasionais, nomeadamente, para prestação de serviços de direcção, técnicos, de controlo de qualidade ou de fiscalização; e iii) a permanência do não residente na RAEM não possa ser superior a 45 dias, consecutivos ou interpolados, por cada período de 6 meses.
Salientam-se a ocasionalidade e pontualidade do trabalho a prestar pelo não residente, a natureza desse trabalho (nomeadamente de direcção, técnicos, de controlo de qualidade ou de fiscalização), bem como o limite temporal da permanência do não residente na RAEM.
No caso dos autos, constata-se na matéria de facto assente os seguintes elementos:
- A recorrente é residente de Hong Kong e trabalhadora da [Limitada], com sede em Hong Kong, exercendo funções de supervisão na loja localizada no Aeroporto Internacional de Hong Kong;
- A actividade do [Grupo] consiste na promoção, distribuição e venda a retalho de produtos de várias marcas de luxo, entre as quais se contam os produtos da marca “X”;
- Em Janeiro de 2014, a sociedade [Limitada (Macau)] abriu o seu primeiro estabelecimento de venda a retalho de produtos / acessórios para o cabelo da marca X em Macau, na [Endereço];
- Desde a sua abertura e até ao seu encerramento em Abril de 2015, a [Limitada (Macau)] dispunha de um quadro de pessoal trabalhador na referida loja constituído por cerca de 4 a 5 trabalhadores residentes em Macau, tendo-se verificado várias entradas e saídas de pessoal durante esse período;
- Por essa razão, e pela (normal) inexperiência e desconhecimento por parte dos trabalhadores residentes recém-contratados relativamente aos produtos comercializados, a [Limitada (Macau)] celebrou, em 01.04.2014, um contrato com a sociedade [Limitada (Hong Kong)] para lhe solicitar apoio e serviços técnicos com vista a assegurar o bom funcionamento da sua actividade comercial;
- Nos termos do referido contrato:
i) a [Limitada (Hong Kong)] obrigava-se a destacar ocasionalmente para Macau trabalhadores seus para prestar à [Limitada (Macau)] apoio técnico e serviços relacionados com o recrutamento, supervisão e formação das funcionárias locais;
ii) a sociedade [Limitada (Macau)] obrigava-se a suportar as despesas de transporte, alimentação e alojamento do(s) trabalhador(es) enviado(s) pela sociedade [Limitada (Hong Kong)];
- Para o cumprimento do referido contrato, a [Limitada (Hong Kong)] destacou profissionais para prestação de serviços técnicos à [Limitada (Macau)];
- O termo inicial do referido contrato era de 01.04.2014 a 31.03.2015;
- Em face da contínua necessidade dos referidos serviços, a [Limitada (Hong Kong)] e a [Limitada (Macau)] procederam à renovação do aludido contrato por mais um ano;
- No dia 08.04.2015, após uma denúncia da existência de duas pessoas de Hong Kong a trabalhar sem (a devida) autorização para tal na loja do [Endereço], guardas do C.P.S.P. para aí se deslocaram, encontrando no local a ora recorrente e B, também trabalhadora da [Limitada (Hong Kong)];
- Nas declarações que a recorrente prestou na P.S.P., a mesma confirmou ter prestado trabalho na dita loja desde 01.01.2015, e que no âmbito do seu trabalho, atendia e vendia produtos a clientes, recebia dinheiro e fazia a gestão de documentos;
- Atento o registo das suas entradas e saídas de Macau, no período de 01.01.2015 a 08.04.2015, a mesma permaneceu em Macau um total de 56 dias, com estadias de 5, 6, 8 e 9 dias consecutivos;
- Foi a sua situação considerada “prestação de trabalho ilegal” para efeitos do Regulamento Administrativo n.º 17/2004, e pagou a recorrente a multa que por tal “infracção administrativa” lhe foi aplicada.
Atenta à factualidade acima transcrita, temos por presente que foi celebrado um acordo, válido à data dos factos (8 de Abril de 2015), entre a sociedade de Hong Kong e a de Macau, segundo o qual a primeira se obrigava a destacar ocasionalmente para Macau trabalhadores seus para prestar à sociedade de Macau apoio técnico e serviços relacionados com o recrutamento, supervisão e formação das funcionárias locais.
Daí decorre que a ora recorrente foi destacada pela sociedade de Hong Kong para Macau.
Será que o serviço prestado pela recorrente para empresa de Macau foi ocasional e pontual, sendo apenas de direcção, técnicos, de controlo de qualidade ou de fiscalização?
Ora, constata-se na factualidade assente que, no dia 08.04.2015 e após uma denúncia de existência de trabalhadores ilegais, os agentes da PSP se deslocaram à loja do [Endereço], encontrando no local a ora recorrente, que prestou depois declarações na P.S.P., tendo confirmado ter prestado trabalho na dita loja desde 01.01.2015 e que no âmbito do seu trabalho atendia e vendia produtos a clientes, recebia dinheiro e fazia a gestão de documentos. E no período de 01.01.2015 a 08.04.2015, a recorrente permaneceu em Macau um total de 56 dias.
Tal factualidade permite ajuizar razoavelmente que a recorrente prestou serviço que ultrapassa já o âmbito de direcção, técnicos, de controlo de qualidade ou de fiscalização, não se limitando a prestar apoio técnico e serviços relacionados com o recrutamento, supervisão e formação das funcionárias locais, tal como se estipula no acordo celebrado entre as duas empresas.
Por outro lado e quanto ao tempo de permanência em Macau, a lei fixa um limite, ao dizer que a permanência do não residente para a prestação de trabalho ou serviço é limitada a um prazo máximo de 45 dias por cada período de seis meses, consecutivos ou interpolados, a contar da data da sua entrada legal na RAEM.
No caso da ora recorrente, o período da sua permanência em Macau desde 01.01.2015 até 08.04.2015 foi de 56 dias, ultrapassando aquele limite.
Pode suscitar-se dúvida sobre a questão de saber se aquele limite temporal se refere aos dias de trabalho em que o não residente presta efectivamente o serviço ou ao tempo de sua permanência em Macau, independentemente de trabalhar ou não.
Estamos inclinados para a primeira interpretação, isto é, só os dias de trabalho se relevam para a contagem de 45 dias previstos na lei, pois a lei fala na “permanência do não residente para a prestação de trabalho ou serviço”, por um lado, e por outro, é legalmente exigido “um registo, permanentemente actualizado, dos dias em que o não residente exerce efectivamente a sua actividade”, o qual deve ser exibido, sempre que solicitado, às respectivas entidades fiscalizadoras.
Ora, não se encontra na factualidade apurada nos autos qualquer elemento que demonstre os dias em que a recorrente prestou serviço em Macau.
Tal não torna, no entanto, lícita a prestação de serviço pela recorrente, já que, como ficou provado,ela atendia e vendia produtos a clientes, recebia dinheiro e fazia a gestão de documentos, fora do âmbito do trabalho que poderá ser considerado legal.
Improcede o recurso, nesta parte.

3.4. Por último, questiona a recorrente a medida de interdição de entrada que lhe foi aplicada.
Não se nos afigura que lhe assista razão.
A medida impugnada pela recorrente tem como fundamento as disposições da al. 1) do n.º 1 do art.º 11.º e da al. 2) do n.º 2 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004, que estabelecem o aerguinte:
“Artigo 11.º
Revogação da autorização de permanência
1. A autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade criminal e das demais sanções previstas na lei, por despacho do Chefe do Executivo, quando a pessoa não residente:
1) Trabalhar na RAEM sem estar autorizada para tal;
2) Manifestamente se desvie dos fins que justificam a autorização de permanência, pela prática reiterada de actos que violem leis ou regulamentos, nomeadamente prejudiciais para a saúde ou o bem-estar da população;
3) Constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM.
2. A pessoa a quem tenha sido revogada a autorização de permanência tem de abandonar a RAEM no mais curto prazo possível, não superior a 2 dias, excepto se:
1) Permanecer legalmente na RAEM por mais de 6 meses, caso em que dispõe de um prazo para abandoná-la não inferior a 8 dias, sem prejuízo do disposto na alínea seguinte;
2) Constituir grave ameaça para a segurança ou ordem públicas, caso em que pode ser decretado o abandono imediato.
3. O despacho de revogação da autorização de permanência fixa a data até à qual a pessoa tem de abandonar a RAEM.
4. A competência prevista no n.º 1 é delegável.
Artigo 12.º
Interdição de entrada
1. As pessoas a quem seja decretada a expulsão ficam, depois de esta ser concretizada, interditas de entrar na RAEM por um período a fixar na ordem de expulsão.
2. Pode igualmente ser decretada a interdição de entrada:
1) Preventiva ou sucessivamente, quando os motivos que levam à recusa de entrada, nos termos das alíneas 1) a 3) do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003, justifiquem que essa medida seja prolongada no tempo;
2) Às pessoas a quem seja revogada a autorização de permanência nos termos do n.º 1 do artigo anterior.
3. A interdição de entrada pelos motivos constantes das alíneas 2) e 3) do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003 deve fundar-se na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM.
4. O período de interdição de entrada deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam.”
Nos termos da al. 2) do n.º 2 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004, pode ser decretada a interdição de entrada na RAEM “às pessoas a quem seja revogada a autorização de permanência nos termos do n.º 1 do artigo anterior”.
E “trabalhar na RAEM sem estar autorizada para tal” é uma das situações em que a Administração pode revogar a autorização de permanência já concedida ao não residente – al. 1) do n.º 1 do art.º 11.º.
É precisamente o caso da recorrente, pelo que foi revogada a respectiva autorização de permanência, por despacho do Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública.
Não merece censura a decisão administrativa que aplicou à recorrente a medida de interdição de entrada.
No que concerne ao período de interdição de entrada, prevê o n.º 4 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004 que “o período de interdição de entrada deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam”.
Alega a recorrente que o período de interdição de 3 anos não é proporcional à gravidade, perigosidade e censurabilidade dos seus actos.
Invoca ainda o princípio da proporcionalidade previsto no n.º 2 do art.º 5.º do CPA.
Ora, na fixação do período de duração da medida em causa, está em causa o exercício do poder discricionário por parte da Administração.
Como é sabido, a decisão de decretar a interdição de entrada “é discricionária, como também é discricionária a fixação do período de interdição de entrada, já que os conceitos a que a lei subordina o mesmo período concedem uma margem de livre apreciação à Administração”, tal como entende este Tribunal de Última Instância.4
Nos casos em que a Administração actua no âmbito do poder discricionário, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, como é o nosso caso, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos excepcionais.
Sendo entendimento uniforme e pacífico, este Tribunal de Última Instância tem afirmado que “a intervenção dos tribunais na anulação de actos exercidos no exercício de poderes discricionários, com fundamento em violação de princípios como da proporcionalidade ou da justiça, só deve ter lugar naqueles casos flagrantes, evidentes, de violações intoleráveis destes princípios”.
“Ao tribunal não compete dizer se o período de interdição de entrada fixado ao recorrente foi ou não proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam, se tal período foi o que o Tribunal teria aplicado se a lei lhe cometesse tal atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro.”5
Daí que só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável [art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC], sendo que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.6
Na determinação do prazo para interdição de entrada imposta no presente caso à recorrente, não se vislumbra qualquer erro manifesto ou total desrazoabilidade, pelo que não merece censura a decisão administrativa nem o acórdão recorrido do TSI.
É de julgar improcedente o recurso jurisdicional.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 10 UC.

                 Macau, 10 de Junho de 2020
                 
Juízes: Song Man Lei (Relatora)
                    Sam Hou Fai
                    Lai Kin Hong

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
                 
1 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 643.
2 Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 2001, vol. III, 3.ª edição, p. 278.
3 Cfr. Acórdão do TUI, de 2 de Junho de 2004, 24 de Março de 2004 e 29 de Junho de 2005, Proc. n.º 17/2003, 5/2004 e 3/2005.
4 Cfr. Ac.do Tribunal de Última Instância, de 9-5-2012, Proc. n.º 13/2012.
5 Cfr. Acórdãos do Tribunal de Última Instância, de 19-11-2014, Proc. n.º 112/2014 e de 9-5-2012, Proc. n.º 13/2012.
6 Cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância, de 15-10-2003, Proc. n.º 26/2003, entre outros.
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Processo n.º 14/2020