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Processo n.º 1217/2019 Data do acórdão: 2020-9-3 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– co-autoria
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. Em caso de co-autoria, não se exige que todos os co-autores tenham que participar em todos os elos do plano delinquente.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1217/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: 2.o arguido A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 218 a 223v dos autos de Processo Comum Singular n.° CR3-19-0223-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), o 2.o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado como co-autor material de um crime consumado de usura para jogo, p. e p. sobretudo pelos art.os 13.o e 15.o da Lei n.o 8/96/M, na pena de nove meses de prisão efectiva e na interdição de entrada nos casinos por três anos, e, em cúmulo jurídico dessa pena de prisão com a pena principal de seis meses de prisão por que já tinha sido condenado no Processo Sumário n.o CR1-19-0051-PSM do TJB (por prática de um crime de condução em estado de embriaguez), finalmente na pena única de um ano de prisão efectiva, com manutenção daquela sanção acessória de interdição de entrada nos casinos, e manutenção também da pena acessória, já aplicada nesse Processo Sumário, de inibição de condução por um ano e três meses (suspensa essa inibição na execução por dois anos, sob condição de apresentação, em dez dias, de documento comprovativo de se tratar de condutor profissional).
Inconformado, veio esse 2.o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, e rogando o seguinte, na sua motivação de fls. 240 a 257 dos presentes autos correspondentes:
– a sentença recorrida fundou-se principalmente nas declarações dos dois alegados ofendidos, para chegar à conclusão de que o próprio 2.o arguido ora recorrente praticou o crime de usura para jogo em co-autoria com o 1.o arguido;
– no entanto, parece manifesto que tais declarações não podiam levar à imputação desse crime ao ora recorrente;
– também é referida na sentença, como fundamentação para a condenação, a prova resultante do sistema de videovigilância da sala VIP (reproduzido por imagens estáticas a fls. 97 a 102 dos autos);
– mas, das imagens não se retira absolutamente nada que incrimine o ora recorrente pela prática do crime (porque a única coisa que se retira é que de facto ele próprio estava perto da mesa onde os dois supostos ofendidos estavam a jogar, enquanto também apenas houve troca de dinheiro entre o 1.o arguido e os ofendidos);
– ademais, todos os elementos apontados pelo Tribunal recorrido para condenar o ora recorrente demonstram precisamente o oposto: ele próprio não teve qualquer participação no empréstimo de dinheiro para jogo, nem teve domínio do facto ilícito típico para efeito de ser considerado co-autor do crime nos termos do art.o 25.o do Código Penal (CP);
– sendo certo que o facto provado 1 (correspondente ao facto acusado 1) deveria ser considerado também como um juízo conclusivo, e como tal um facto não provado;
– em suma, padeceu a decisão condenatória recorrida do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), com simultânea violação do princípio de in dubio pro reo;
– e fosse como fosse, sempre haveria que considerar que o Tribunal recorrido teria andado mal, ao condenar o próprio recorrente em pena de prisão efectiva;
– com efeito, a não confissão dos factos não pode ser usada como argumento para não se suspender a execução da pena de prisão aplicada, e quanto aos antecedentes criminais, é mister notar que as anteriores condenações do recorrente (a saber, duas condenações por condução sob o estado de embriaguez e uma condenação por consumo ilícito de estupefacientes) foram por crimes de natureza totalmente diferente da do crime de usura para jogo, sendo líquido que a existência de antecedentes criminais não é, por si só, um obstáculo à suspensão da execução da pena;
– não deixaria de ter violado, pois, a sentença recorrida, o disposto no art.o 48.o do CP;
– termos em que deveria o recorrente passar a ser absolvido do crime de usura para jogo, ou, pelo menos, passar a ter a sua pena de prisão suspensa na execução.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 266 a 269v, pugnando pela manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 287 a 288v, opinando pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida se encontrou proferida a fls. 218 a 223v, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui inteiramente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
Da análise da argumentação principal do recorrente, resulta claro que ele estava a fazer sindicar da livre convicção do Tribunal recorrido sobre os factos por que ele vinha condenado na sentença recorrida.
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto. Aliás, esse Tribunal já expôs suficiente e congruentemente as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos – cfr. o teor da mesma fundamentação probatória, tecida nas páginas 6 (a partir da 3.a linha) a 7 (até à 12.a linha desta) do texto do aresto ora impugnado, a fls. 220v a 221 dos autos, tendo explicado, em sede da análise crítica das provas, o sentido da sua livre convicção nas 8.a a 12.ª linhas da mesma página 7. Como o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, improcede a tese de alegada existência do vício de erro notório na apreciação da prova, e de alegada violação do princípio de in dubio pro reo.
No caso dos autos, ante a matéria de facto provada em primeira instância, é nítido que o 1.o arguido, mais um outro indivíduo de sexo masculino (mas de identidade não apurada) e o 2.o arguido ora recorrente, em conjugação de esforços e por divisão de tarefas entre os três, acabaram por facultar, não gratuitamente, mas sim onerosamente, fichas de jogo ao ofendido B para este jogar em casino, pelo que ficou acertada a ora recorrida decisão condenatória do recorente como co-autor do tipo-de-ilícito de usura para jogo, sem violação sequer do art.o 25.o do CP (sendo certo que o facto provado 1 tem suporte concreto na restante matéria de facto descrita como provada na sentença). Nota-se que a singela comparticipação de dinheiro ou fichas de jogo para jogar não conduz à incriminação a nível de usura de jogos. Só que no caso dos autos, a matéria de facto provada demonstrou que não se tratou de uma genuína comparticipação de dinheiro ou fichas de jogo para jogar, mas sim um autêntico empréstimo de fichas de jogo para aquele referido ofendido jogar em casino, com cláusula de cálculo de juros, sendo de frisar que em caso de co-autoria penal, não se exige que todos os co-autores tenham que participar em todos os elos do plano delinquente.
E agora da questão da rogada suspensão da execução da pena de prisão, não sendo o recorrente um delinquente primário, mas sim com condenações anteriores por crimes dolosos, e sendo prementes as necessidades de prevenção geral do crime de usura jogo em Macau, afigura-se que a simples censura dos factos e a ameaça da execução da prisão não bastem para assegurar a prossecução, em termos adequados, das finalidades da punição, quer a nível de prevenção especial quer a nível da prevenção geral, pelo que não deixa de naufragar o recurso nesta última parte.
Improcede, pois, o recurso in totum, sem mais indagação, por ociosa ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo recorrente, com quantro UC de taxa de justiça.
Macau, 3 de Setembro de 2020.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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