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Processo nº 9/2020 Data: 01.07.2020
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Acidente de viação.
Erro notório na apreciação da prova.
Percentagem de culpa pelo acidente.
Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, (F.G.A.M.).
Responsabilidade solidária.
Indemnização.
Danos patrimoniais.
Danos não patrimoniais.



SUMÁRIO

1. Não se vislumbrando que a decisão da matéria de facto padeça de “erro notório na apreciação da prova”, e se daquela se mostrar de concluir que o ofendido do acidente de viação em nada contribuiu para a sua eclosão, nenhuma censura merece a decisão que com base na dita matéria de facto atribui ao arguido a “culpa exclusiva” pelo acidente.

2. As obrigações, quando exista pluralidade de sujeitos, podem ser “conjuntas” e “solidárias”.

Na primeira modalidade, e no caso da existência de um só credor e de vários devedores, aquele só pode exigir de cada um destes o cumprimento de uma parte da obrigação.

À pluralidade de sujeitos, corresponde aqui uma igual “pluralidade de vínculos”.

No caso das obrigações solidárias, o credor pode exigir de cada um dos devedores a satisfação integral da obrigação.

Existe aqui “um vínculo de mútua representação entre os devedores”.

Em caso de “pluralidade de devedores”, a regra é a da “conjunção”, já que o art. 506° do C.C.M. estatui que a “solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes”.

Não sendo o caso, não se pode dar por verificada a “responsabilidade solidária do F.G.A.M. e do arguido, (demandado civil)”.

3. Ao F.G.A.M. cabe satisfazer as “indemnizações por morte ou lesões corporais” referidas no art. 23°, n.° 2 do D.L. n.° 57/94/M.

E, nesta conformidade, tanto os “danos não patrimoniais”, como os “patrimoniais” resultantes de “lesões corporais”, como é o caso das “perdas salariais”, integram a dita obrigação de indemnização.

4. A indemnização por “danos não patrimoniais” tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer, visando pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu, sendo também de considerar que nestas matérias inadequados são “montantes simbólicos ou miserabilistas”, não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”, exigindo-se aos tribunais, com apelo a critérios de equidade, um permanente esforço de aperfeiçoamento atentas as circunstâncias (individuais) do caso.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 9/2020
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Colectivo do Tribunal Judicial de Base de 19.07.2017, (CR3-16-0243-PCC), decidiu-se:
- condenar o arguido A (甲), como autor da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 1 e 3 e 138°, al. c) do C.P.M. e art. 93°, n.° 1 e 94° da Lei n.° 3/2007, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses; e,
- condenar a demandada civil “FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL E MARÍTIMO”, (汽車及航海保障基金), a pagar ao demandante B, a quantia total de MOP$938.478,20 e juros, que incluem:
- a título de “despesas hospitalares e medicamentosas” e de “deslocações”: MOP$18.745,20;
- a título de “perda de salário”: MOP$11.733,00;
- a título de “despesas com a reparação do motociclo”: MOP$8.000,00;
- a título de “incapacidade parcial permanente”: MOP$500.000,00; e,
- a título de “danos não patrimoniais”: MOP400.000,00; (cfr., fls. 518 a 529 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformados com o assim decidido, do mesmo recorreram o arguido A e o “FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL E MARÍTIMO”; (cfr., fls. 551 a 588 e 592 a 612).

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Apreciando os ditos recursos, por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 25.07.2019, (Proc. n.° 1034/2017), decidiu-se negar provimento ao recurso do arguido, concedendo-se parcial provimento ao recurso do FUNDO, absolvendo-se o mesmo no que toca à sua condenação no pagamento das despesas com a reparação do motociclo, no montante de MOP$8.000,00, e reduzindo-se o montante indemnizatório respeitante a “despesas hospitalares e medicamentosas” e de “deslocações” para MOP$18.070,70; (cfr., fls. 668 a 684-v).

*

Ainda inconformado, vem o FUNDO recorrer para este Tribunal.

Motivou para concluir nos termos seguintes:

“I. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância nos presentes autos, restrito à parte cível, no que respeita (i) à culpa exclusiva do Demandado/culpabilidade da Demandante B pela produção do acidente; (ii) à absolvição, na parte cível, do Arguido-Demandado A; (iii) à condenação do FGAM no pagamento de danos patrimoniais pela perda salarial; e (iv) ao montante indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais.
II. Ora, salvo o devido respeito, incorreu-se no dito acórdão em erro de julgamento e violação de lei, no primeiro caso, do disposto no n.° 2 do artigo 480.°, no artigo 564.°; e, ainda, no artigo 361.°, todos do Código Civil de Macau, particularmente atento o disposto no n.° 2 do artigo 18.°, no n.° 1 do artigo 30.°, no artigo 31.°, nas alíneas 1) e 5) do n.° 1 do artigo 32.° e no artigo 98.°, todos da Lei do Trânsito Rodoviário;
III. No segundo caso, face ao disposto no n.os 1 e 2 do artigo 358.° do Código de Processo Penal de Macau; no n.° 2 do artigo 23.°, no artigo 25.° e nos n.os 2 e 3 do artigo 45.°, todos do Decreto-Lei n.° 57/94/M, de 28 de Novembro (regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) e, bem assim, nos artigos 477.°; 480.°, n.° 2; 496.°; 556.° a 560.° e, ainda, 587.°, todos do Código Civil de Macau;
IV. No terceiro caso, atento o prescrito no n.° 2 do artigo 23.° do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e no n.° 2 do artigo 477.° do Código Civil de Macau;
V. No quarto e último caso, atento o disposto no artigo 564.° e, bem assim, na primeira parte do n.° 3 do artigo 489.°, em conjugação com o artigo 487.°, todos do Código Civil de Macau.
VI. Daqui resulta que o mencionado acórdão é ilegal, devendo consequentemente ser parcialmente revogado e substituído por outra decisão em que (i.) seja dada como comprovada a culpa do Demandante na fixação da responsabilidade, atentas as provas resultantes dos autos e da audiência, conjugadas com as regras de experiência comum e, por consequência, fixada uma contribuição de cada um dos veículos, bem como uma repartição da culpa de cada um dos co-responsáveis pelo acidente na proporção de 70% para o Demandante e de 30% para o Arguido-Demandado; (ii.) seja o Arguido-Demandado, responsável pelo acidente, também condenado no pedido cível; (iii.) o FGAM seja absolvido do pagamento dos danos patrimoniais por perda salarial; e, ainda, (iv.) seja arbitrada indemnização consentânea, a título de danos não patrimoniais, que leve em consideração a situação económica do agente e do lesado e as demais circunstâncias da lide, bem como os valores atribuídos em casos semelhantes aos dos autos.
VII. Para tanto, e como seguidamente se demonstrará, na apreciação da prova – com todo o respeito pelos Tribunais a quo – houve erro notório, porquanto a simples verificação de determinados factos, decorrentes das provas resultantes dos autos e da audiência, designadamente as imagens captadas pelas câmaras de vídeo-vigilância no momento do acidente, os croquis do acidente e as medições realizadas no local do acidente, assim como os documentos apresentados pelo Demandante, impunham que a decisão tivesse sido outra na fixação da culpabilidade das partes envolvidas no acidente, assim como, do montante indemnizatório a título de danos patrimoniais.
VIII. A fazer fé nas imagens captadas pelas câmaras no momento do acidente, conjugadas com as medições feitas nos croquis do acidente, o Demandante percorreu cerca de 61.2 metros em 2 segundos, com o que circulava a velocidade superior a 110 km/h (61.2m/2s x 3600/1000 = 110.16 km/h);
IX. De acordo com o croquis a fls. 384 e 414 e a fotografia junta pelo Arguido-Demandado como Doc. 1, a travagem efectuada pelo Demandante provocou um rasto de cerca de 2 metros no local de acidente, o que só é consentâneo com circulação de veículos a alta velocidade;
X. O Demandante não moderou jamais a sua velocidade, seja quando se aproximou da passagem de peões em frente do [Loja(1)], seja do cruzamento onde se permite a inversão de marcha;
XI. Por outro lado, o motociclo do Arguido-Demandado percorreu cerca de 30.7 metros em 5 segundos, o que significa que este circulava em velocidade reduzida e adequada, não superior a 22.1 km/h (30.7m/5s x 3600/1000 = 22.104 km/h); só com tal velocidade seria possível sustentar o veículo pela mão a fim de evitar a sua queda após o embate;
XII. O acidente ocorreu numa via recta composta por duas faixas de rodagem, com uma largura de cerca de 7 metros cada, pelo que, não havendo qualquer veículo a circular à frente do Demandante, para além do motociclo do Arguido-Demandado, aquele dispunha de um campo de visão muito amplo, sem qualquer bloqueio, o qual lhe permitia, se estivesse atento às circunstâncias da via e do trânsito, notar perfeitamente o trajecto enviesado realizado pelo motociclo do Arguido-Demandado;
XIII. Qualquer condutor medianamente diligente e cauteloso facilmente compreende que um motociclo irá transpor o eixo da faixa de rodagem se este segue à sua frente num trajecto enviesado e a aproximar-se daquele eixo;
XIV. Se o Demandante circulasse a velocidade adequada para o local e estivesse atento às circunstâncias da via e do trânsito, teria conseguido reagir à manobra efectuada pelo Arguido-Demandado, evitando assim o acidente;
XV. Porém, não fazendo, o acidente ocorreria mesmo que o Arguido-Demandado tivesse sinalizado devidamente a manobra de mudança de via, não só porque o Demandante não estava atento às circunstâncias da via e trânsito, mas também porque o mesmo circulava a velocidade superior a 110 km/h;
XVI. A luz traseira do motociclo conduzido pelo Demandante mostra de modo inquestionável que o mesmo estava já inclinado para direita após o motociclo do Arguido-Demandado ter passado a linha longitudinal que divide a faixa e quando ainda existia uma distância entre os dois veículos em causa;
XVII. No momento em que o Arguido-Demandado tinha já terminado a manobra de mudança de faixa e circulava já na faixa direita, o motociclo conduzido pelo Demandante estava já desequilibrado;
XVIII. Antes de embater no motociclo conduzido pelo Arguido-Demandado, o motociclo do Demandante caiu desequilibrado e, em acto contínuo, derrapou para frente até embater no motociclo daquele;
XIX. Perante todas as provas produzidas e em cumprimento das regras de experiência comum, impunha-se que o Tribunal a quo tivesse julgado no sentido de dar como provados, pelo menos, os seguintes factos:
a) Que «a velocidade em que o Arguido-Demandado circulava era inferior a 22.1 km/h»;
b) Que «o motociclo MI-XX-XX, conduzido pelo Lesado-Demandante, circulava a velocidade superior a 110 km/h, tendo percorrido cerca de 61.2 metros no período de 2 segundos»;
c) Que «o Lesado-Demandante circulava numa zona de passadeiras e ao aproximar-se de um cruzamento não moderou especialmente a sua velocidade»;
d) Que «no momento em que o Arguido-Demandado já tinha terminado a manobra de mudança de faixa e circulava já na faixa direita, o motociclo conduzido pelo Lesado-Demandante estava já desequilibrado»;
e) Que «após a queda, por desequilíbrio, do Lesado-Demandante, o seu motociclo derrapou para frente e embateu no motociclo do Arguido-Demandado»; e
f) Que «a queda do Lesado-Demandante foi provocada pela velocidade inadequada e/ou excessiva em que o mesmo circulava».
XX. A velocidade a que o Demandante circulava ultrapassava em 50 km/h o limite geral imposto, constituindo contravenção ao abrigo do artigo 98.° da LTR;
XXI. O Demandante deveria ter regulado a velocidade do seu veículo tal como se determina no disposto no n.° 1 do artigo 30.° da LTR e nas alíneas 1) e 5) do n.° 1 do artigo 32.° da LTR;
XXII. Resulta das imagens captadas que não havia qualquer veículo na via mais à esquerda daquela em que o Demandante circulava, pelo que, atento o disposto no n.° 2 do artigo 18.° da LTR, querendo aquele seguir em frente – cfr. croquis e declarações a fls. 82 verso –, impunha-se que o mesmo seguisse sempre pela via de trânsito mais à esquerda da faixa de rodagem;
XXIII. Face ao exposto, considerando que ambos concorreram para a produção do acidente, crê-se ser mais adequada a repartição da culpa entre cada um dos co-responsáveis pelo acidente na proporção de 70% para o Demandante, e de 30% para a Arguido-Demandado, respectivamente.
XXIV. Sem prejuízo do exposto, o FGAM apenas responde de forma subsidiária e não na qualidade de responsável directo;
XXV. O FGAM mais não é do que um garante, um responsável "subsidiário", já que o principal obrigado é sempre o responsável civil. E só se este último se furtar ao cumprimento do seu dever é que o FGAM entra em acção, satisfazendo a indemnização arbitrada;
XXVI. Ao estabelecer a garantia de satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais, nos casos previstos pelo artigo 23.° do Decreto-Lei n.° 57/94/M, de 28 de Novembro, em que o FGAM é demandado, o legislador prescreveu a subsidiariedade, tendo em vista três objectivos evidentes:
a) Tornar acessível ao FGAM, pela via mais autêntica do próprio interveniente no acidente, a versão deste e todo o material probatório a que doutro modo não acederia;
b) Facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, permitindo-lhe optar entre o património do lesante faltoso e a indemnização do FGAM;
c) Tirando partido da presença do responsável, definir de imediato, na medida do possível e sem mais dispêndio processual, os pressupostos de facto e jurídicos em que há-de basear-se o direito de sub-rogação do FGAM;
XXVII. Nos referidos casos, existe uma solidariedade imprópria, imperfeita ou "impura";
XXVIII. Enquanto no plano externo o lesado pode exigir de qualquer um dos responsáveis-obrigados – do lesante ou do FGAM – a satisfação do seu crédito, já no plano interno, só se for o último a pagar a indemnização é que fica sub-rogado nos direitos lesados, podendo, depois, exigir do lesante tudo aquilo que pagou, acrescido dos juros legais de mora e das despesas efectuadas com a liquidação e cobrança;
XXIX. Daí que na sentença final deva o Arguido ser condenado solidariamente a pagar a quantia reclamada, sendo que a responsabilidade do FGAM é meramente subsidiária daquele;
XXX. No âmbito do processo crime no qual resultou a condenação do FGAM deve também condenar-se solidariamente o, ou os responsáveis civis;
XXXI. Conforme decorre do n.° 2 do artigo 23.° do Decreto-Lei n.° 57/94/M, de 28 de Novembro, sobre o FGAM impende unicamente a obrigação de satisfazer indemnizações «por morte ou lesões corporais» decorrentes de acidentes causados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, quando o responsável não beneficie de seguro válido ou eficaz.
XXXII. Na realidade, a expressão "lesões corporais" a que alude o n.° 2 do artigo 23.° do referido diploma, visa apenas os danos não patrimoniais ou morais, neles se incluindo o dano morte ou os ferimentos sofridos em consequência do acidente, enquanto que a expressão "lesões materiais" se refere a danos exclusivamente patrimoniais – neste sentido, vd. Acórdão do S.T.J. – Revista n° 2900/01 – 1.ª Secção, publicado nos sumários de circulação interna de 1996 a Fev. de 2003, sobre o Dano Morte.
XXXIII. Nessa medida, é possível retirar do estabelecido no n.° 2 do artigo 23.° do citado diploma que a obrigação de indemnizar que impende pobre o FGAM não garante o pagamento de indemnização por perdas salariais, em virtude do acidente.
XXXIV. Tendo as vítimas direito a uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, pelos padecimentos sofridos, sendo tal lesão ainda passível de reparação pecuniária, a fixação do respectivo montante há-de ser operada equitativamente, atendendo-se à situação económica do lesante e do lesado, estando assente que a indemnização nestes casos visará proporcionar ao lesado um prazer capaz de neutralizar a angústia, dor ou contrariedade sofridas;
XXXV. O montante de indemnização há-de ser, pois, proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida;
XXXVI. São desajustados e extremamente elevados, se se atentar ao prescrito no artigo 489.°, em conjugação com o disposto no artigo 487.°, e no artigo 564.° do Código Civil de Macau, à matéria de facto provada e aos valores constantes na jurisprudência da RAEM, para situações semelhantes, os montantes arbitrados pelo Tribunal a quo à Demandante, a título de danos não patrimoniais;
XXXVII. Mostra-se outrossim adequada ao circunstancialismo do caso em apreço a indemnização de MOP$400.000,00, pela incapacidade e de MOP$250.000,00, pelos danos morais, equitativamente proporcionada face à gravidade dos danos, grau de culpa do agente e do lesado, vistas ainda a situação económica de ambos e demais factualidade descrita nos autos”.

A final, pede que a decisão recorrida seja substituída por outra decisão que “julgue comprovados os factos relativos à culpa do Demandante na produção do acidente, fixando uma repartição da culpa de cada um dos co-responsáveis pelo acidente na proporção de 70% para o Demandante e de 30% para o Arguido-Demandado e; condene o Arguido-Demandado A, responsável pelo acidente; e, bem assim, absolva o FGAM do pagamento dos danos patrimoniais por perda salarial; mais arbitrando indemnização consentânea, de valor não superior a 650.000,00 Patacas, a título de danos não patrimoniais, (…)”; (cfr., fls. 699 a 735).

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Contra-alegando, pede o ofendido e assistente B a total improcedência do recurso; (cfr., fls. 765 a 771).

*

Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos constantes a fls. 675-v a 677 do Acórdão recorrido que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Insurge-se o recorrente FUNDO, trazendo à apreciação desta Instância questões que identifica da maneira seguinte:

“(i) culpa exclusiva do Demandado/culpabilidade da Demandante B pela produção do acidente;
(ii) absolvição, na parte cível, do Arguido-Demandado A;
(iii) condenação do FGAM no pagamento de danos patrimoniais pela perda salarial; e,
(iv) montante indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais”; (cfr., conclusão 1ª).

–– Comecemos pela alegada “culpa do ofendido e demandante”.

Pois bem, entende o ora recorrente que adequada não é a decisão que considerou o arguido dos autos o “único e exclusivo culpado” pelo acidente de viação, sendo de opinião que o decidido é consequência de “erro notório na apreciação da prova” aquando da decisão da matéria de facto, pugnando pela sua alteração, nomeadamente, no que toca à “conduta” do referido ofendido, pugnando no sentido de se dar como “provado” que o mesmo circulava a uma “velocidade superior a 110km/h”, “tendo percorrido cerca de 61.2 metros no período de 2 segundos”, daí se devendo retirar que teve culpa na eclosão do acidente, que deve ser fixada em 70%; (cfr., conclusões VII a XXIII).

Analisados os autos, o Acórdão do Tribunal Judicial de Base e o do Tribunal de Segunda Instância agora recorrido, e ponderando nas razões pelo recorrente avançadas para justificar o assacado “erro notório”, cremos que não se lhe pode reconhecer razão.

Vejamos, (muito não se mostrando necessário escrever para o demonstrar).

Diz o recorrente que “A fazer fé nas imagens captadas pelas câmaras no momento do acidente, conjugadas com as medições feitas nos croquis do acidente, o Demandante percorreu cerca de 61.2 metros em 2 segundos, com o que circulava a velocidade superior a 110 km/h (61.2m/2s x 3600/1000 = 110.16 km/h)”; (cfr., conclusão VIII).

E, logo aí se verifica que labora em equívoco.

De facto, e antes de mais, não se pode olvidar que o Tribunal, atento o “princípio da livre apreciação da prova” consagrado no art. 114° do C.P.P.M., deu (expressamente) como “não provado” que o demandante “percorreu cerca de 61,2 metros”, o mesmo sucedendo com os igualmente pelo recorrente considerados “2 segundos”, havendo que ter presente que nem as ditas “imagens captadas” nem o aludido “croquis”, (nem ambos), impõem decisão contrária ou diversa.

Cabe pois notar que se nem mesmo uma planta cadastral, emitida pelo competente departamento público, constitui prova plena da delimitação dos prédios constantes da mesma e da sua confrontação com as vias públicas, (cfr., v.g., o Ac. de 26.06.2019, Proc. n.° 5/2015), claro parece de concluir que não se pode atribuir tal “qualidade probatória” a um “croquis”, elaborado com base em meras declarações de supostas testemunhas, com base no qual pretende o recorrente provar a referida distância percorrida pelo demandante, (e consequentemente, a sua velocidade).

Nesta conformidade, atento o que se deixou consignado, e ponderando na matéria de facto dada como “provada”, de onde se retira, efectivamente, que o acidente se deveu a “culpa exclusiva do arguido”, há que se negar provimento ao recurso na parte em questão.

–– Da “condenação solidária do arguido/demandado”; (cfr., conclusões XXIV a XXX).

O Acórdão recorrido pronunciou-se sobre esta questão, negando a pelo recorrente pretendida condenação solidária do arguido.

Ora, sabendo-se que a questão pode comportar diversos entendimentos, não nos parecendo que em relação à mesma tenha esta Instância emitido pronúncia, e da reflexão que sobre a mesma nos foi possível efectuar, cremos ser a solução pelo Tribunal de Segunda Instância adoptada a que se apresenta em maior sintonia com letra e o espírito do regime legal previsto no D.L. n.° 57/94/M, em especial no estatuído nos art°s 23° e 25°.

Na verdade, em conformidade com o art. 23°, “(…) 2. Ao FGA compete satisfazer as indemnizações por morte ou lesões corporais consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, quando: a) O responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz; (…)”, sendo de atentar também que no art. 25°, n.° 1, se estatui que, “Satisfeita a indemnização, o FGA fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito aos juros de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança”.

Assim, se ao aludido FUNDO “compete satisfazer as indemnizações” (como no caso sucede), e tão só (após) “satisfeita” – ou paga – a indemnização, fica “subrogado nos direitos do lesado”, cremos pois que a solução pelo ora recorrente pretendida, de uma “condenação solidária” se não apresenta em harmonia com o preceituado.

Seria, porventura, uma “solução mais prática”, obter-se a dita “condenação solidária”, nem se alcançando especiais motivos para se isentar o verdadeiro responsável pelo acidente de uma condenação solidária.

Porém, em face do regime a que se fez referência, não nos parece de censurar a decisão recorrida.

Na verdade, e como sabido é, as obrigações, quando exista pluralidade de sujeitos, podem ser “conjuntas” e “solidárias”. Na primeira modalidade e no caso da existência de um só credor e de vários devedores, aquele só pode exigir de cada um destes o cumprimento de uma parte da obrigação. À pluralidade de sujeitos, corresponde aqui uma igual “pluralidade de vínculos”. No caso das obrigações solidárias o credor pode exigir de cada um dos devedores a satisfação integral da obrigação. Existe aqui “um vínculo de mútua representação entre os devedores”; (cfr., P. Lima e A, Varela in, “Noções elementares de Direito Civil”, vol. I, pág. 247).

Todavia, havendo “pluralidade de devedores”, a regra é a da “conjunção”, já que o art. 506° do C.C.M. estatui que a “solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes”.

Não sendo o caso, também aqui improcede o recurso.

–– Passemos para a questão da “condenação do FUNDO no pagamento de danos patrimoniais por perda salarial”; (cfr., conclusões XXXI a XXXIII).

Na opinião do ora recorrente, ao mesmo não compete o pagamento das aludidas “perdas salariais”.

E, apresenta como razão de tal entendimento, o n.° 2 do atrás referido art. 23° onde apenas se refere às: “(…) indemnizações por morte ou lesões corporais consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, (…)”.

Cremos porém que, de igual forma, também aqui não se pode reconhecer razão ao recorrente.

A argumentação do ora recorrente assenta na distinção entre “lesões materiais” e “lesões corporais”.

Porém, como “aquelas” deve-se apenas entender os danos resultantes da lesão de “interesses materiais”, ou seja, de um “dano real” que revista a forma de destruição, subtracção ou deterioração de uma coisa.

E, desta forma, há que se concluir que, tanto os “danos não patrimoniais”, como os “patrimoniais” resultantes de “lesões corporais”, como é o caso das referidas “perdas salariais”, integram a obrigação de indemnização do ora recorrente.

–– Por fim, entende o recorrente que excessivo é o quantum fixado a título de indemnização pelos “danos não patrimoniais” do lesado, demandante civil; (cfr., conclusões XXXIV a XXXVII).

Pois bem, em sede de “danos não patrimoniais”, adequado parece o de considerar que a indemnização por danos não patrimoniais tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer, visando pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu, sendo também de considerar que nestas matérias inadequados são “montantes simbólicos ou miserabilistas”, (vd., M. Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, II, Direito das Obrigações, III, pág. 755, onde se afirma que “há que perder a timidez quanto às cifras…”), não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”, exigindo-se aos tribunais, com apelo a critérios de equidade, um permanente esforço de aperfeiçoamento atentas as circunstâncias (individuais) do caso.

Na verdade, a reparação dos “danos não patrimoniais” não visa uma “reparação directa” destes, pois que estes – “danos não patrimoniais” – são insusceptíveis de serem “contabilizados em dinheiro”, sendo pois que com o seu ressarcimento se visa tão só viabilizar um lenitivo ao lesado, (já que é impossível tirar-lhe o mal causado).

Trata-se de “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar aqueles danos não patrimoniais, compensando as dores, desgostos e contrariedades com o prazer derivado da satisfação das referidas necessidades.

Visa-se, no fundo, proporcionar à(s) pessoa(s) lesada(s) uma satisfação que, em certa medida possa contrabalançar o dano, devendo constituir verdadeiramente uma “possibilidade compensatória”, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se, na sua fixação, todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.

Porém, e como sabido é, o C.C.M., não enumera os “danos não patrimoniais”, confiando ao Tribunal a tarefa de os apreciar no quadro das várias situações concretas e atento o estatuído nos seus art°s 489° e 487°, sendo de ponderar circunstâncias várias, como a natureza e grau das lesões, suas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas eventualmente sofridas e o grau de risco inerente, os internamentos e a sua duração, o quantum doloris, o dano estético, o período de doença, situação anterior e posterior da vítima em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspectivas para o futuro, entre outras…

Nos temos do n.° 3 do art. 489° do dito C.C.M.: “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; (…)”.

Outrossim, prescreve o art. 487° deste mesmo Código que: “Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.

Aqui chegados, e (cremos nós), clarificada a natureza, sentido e alcance dos “danos não patrimoniais” assim como das razões para a sua “indemnização”, importa ter ainda em conta que se mostra de considerar que quando o cálculo da indemnização assente em juízos de equidade, não deve caber ao Tribunal ad quem a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, devendo centrar a sua censura na verificação dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo de equidade tendo em conta o caso concreto.

Não se pode pois olvidar que (na ausência de uma definição legal) o “julgamento pela equidade” é sempre o produto de uma “decisão humana”, que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas, distinguindo-se, do puro “julgamento jurídico”, por apresentar menos preocupações sistemáticas e maior empirismo e intuição; (cfr., M. Cordeiro in, “O Direito”, pág. 272 e o Ac. da Rel. do Porto de 21.02.2017, Proc. n.° 2115/04, in “www.dgsi.pt”).

Por sua vez, importa ponderar que na fixação da compensação por danos não patrimoniais, há que ter presentes os valores habitualmente atribuídos pela jurisprudência e em especial os atribuídos a situações de gravidade próxima nas decisões mais recentes e paradigmáticas, de forma a harmonizar os valores a arbitrar com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, vêm sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis.

Em face de todo o exposto, ponderando no “tipo de acidente”, (em que o ofendido/demandante cai de um motociclo em movimento), nas lesões que sofreu, nomeadamente no seu joelho direito, as complicações que teve após intervencionado, o período de tempo que teve de suportar para tratamento, (12 ou mais meses), padecendo agora de uma incapacidade de 40%, e nas dores, angústias, e desgostos que sofreu e irá sofrer em consequência desta(s) sua(s) limitação(ções), (e sem se olvidar que o demandante é nascido em 1973), excessivo não é o quantum pelo Tribunal a quo fixado.

Tudo visto, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Sem tributação (dada a isenção do recorrente).

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 01 de Julho de 2020

[Notando que mudei de posição quanto à questão da “responsabilidade solidária”].


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 9/2020 Pág. 22

Proc. 9/2020 Pág. 5