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Processo nº 1160/2019
Data do Acórdão: 17SET2020


Assuntos:

Responsabilidade civil em actividades médicas
Serviços de Saúde
Junção tardia de documentos
Inutilidade superveniente do recurso interlocutório
Factos conclusivos
Factos instrumentais
Impugnação da matéria de facto
Princípio da livre apreciação de provas
Erro na apreciação da matéria de facto
Nexo de causalidade


SUMÁRIO

1. Do estatuído no artº 5º/2, in fine, do CPC, à luz do qual “o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 434.º e 568.º e da consideração oficiosa dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” decorre que insistindo o nosso CPC na predominância do princípio da verdade formal no processo civil, o nosso legislador admite que o Tribunal vá para além disto quando for necessário investigar factos instrumentais, resultantes da instrução e discussão da causa, para esclarecimento de um facto essencial alegado ou para avaliação da consistência de uma prova produzida.

2. Ao contrário do que sucede no processo penal, onde o juízo técnico, científico e artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador – artº 149º/1 do CPP, inexiste, na matéria civil e laboral, idêntica norma que predetermina a superioridade da força probatória da perícia, em relação às outras provas.

3. Tal como sucede com outros meios de impugnação, o recurso ordinário, incluindo o da matéria de facto, funda-se na falibilidade humana e na possibilidade de erro por parte dos juízes, gerador de decisões injustas e portanto, visa justamente à simples eliminação da decisão, inválida, injusta ou não conforme à lei, ou ainda à sua substituição por outra a proferir pelo Tribunal ad quem, na sequência do reexame da matéria controvertida.

4. Desde que seja formada com observância das regras relativas à produção e à valoração das provas, motivada e recondutível a critérios lógicos, a convicção íntima do Tribunal a quo é válida, e portanto, em princípio, insindicável pelo Tribunal superior em sede de recurso, e só é susceptível de controlo jurisdicional por via de recurso ordinário se a convicção tiver sido formada em violação do direito probatório, não motivada ou irrecondutível a critérios lógicos, ou seja, erradamente formada.

5. Para que o Tribunal ad quem possa revogar a decisão sobre a matéria de facto fixada na primeira instância, é preciso que o convença da existência de erro na apreciação de provas por parte do Tribunal a quo.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 1160/2019


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

A, B, C, D e F, todos devidamente identificados nos autos, intentaram uma acção para a efectivação da responsabilidade civil extracontratual contra os Serviços de Saúde da RAEM (doravante simples designados por Saúde), G e H, devidamente identificados nos autos, acção essa que veio a ser registada sob o nº 242/15-RA e correu os seus termos no Tribunal Administrativo.

No âmbito da acção, mais concretamente na audiência de julgamento realizada em 23JAN2019, foi proferido o seguinte despacho indeferindo o pedido, formulados pelos 2º e 3º Réus, da requisição e da junção de dois documentos aos autos:
---- “第二被告及第三被告要求將死者兩份實驗室血液報告附入卷宗,目的為質疑醫療活動申訴評估中心之分析及專家意見。---------------------------
---- 法院於2018年10月結束庭審後,本合議庭在商議過程中,鑒於醫療事故鑑定委員會所提及之一名專科醫生EXX醫生之意見,法院認為有必要考慮此名醫生所提供之意見內容,因此,本合議庭於同年11月7日作出決議,要求衛生局附入相關資料,以查明該醫生之專業意見。法院此決定在於考慮該醫生之意見以核實醫療活動申訴評估中心對最終結論所作之分析。經審閱該醫生在有關行政卷宗中所提供之意見,當中並沒有就兩名被告所提交之實驗室血液報告作出任何論述,故法院不認為此文件對於查閱EXX醫生之醫學意見具有重要性。再者,就這份文件所載之數值資料,法院亦無條件作出任何評估。因此,本合議庭議決不接納上述文件,本附隨事項之訴訟費用由第二被告及第三被告共同承擔,司法費訂為2個計算單位(2UC)。” --------------------------------------------------------------------

Inconformados com o despacho, vieram os 2º e 3º Réus recorrer dele para esta segunda instância, concluindo e pedindo:
a) O presente recurso vem interposto do douto despacho que indeferiu o requerimento de junção de dois documentos relativos a relatórios do Laboratório de Hematologia e Banco de Sangue do Serviço de Hematologia do Centro Hospitalar Conde de S. Januário.
b) O Tribunal a quo não considerou que os documentos fossem relevantes para validar as opiniões do Dr. E, e o próprio Tribunal não tem condição para fazer qualquer avaliação sobre os valores constantes destes documentos, assim indeferiu a junção dos documentos.
c) O Código de Processo Civil prevê a hipótese de junção tardia de documento no n.º 2 do seu artigo 450.º, no sentido de se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância.
d) O requerimento dos Recorrente foi feito no início da sessão de julgamento do dia 23 de Janeiro de 2019, e antes do encerramento da discussão em primeira instância, deveria o Tribunal ter admitido a junção dos documentos.
e) Em situações normais, o Tribunal a quo não devia indeferir o pedido de juntar tais documentos, salvo se este entendesse que tais documentos eram impertinentes.
f) Os documentos em causa são relatórios laboratoriais nos quais constam expressa e claramente os valores laboratoriais de hemoglobina do paciente após e antes de operações, que contrariam os valores errados que foram indicados para as perguntas do CAQ colocadas ao Dr. E.
g) Ficou claramente mencionado que antes da reunião, o resumo do caso, os respectivos anexos e a lista de problemas foram entregues ao Dr. E, e com base destes documentos, o Dr. E veio falar sobre as suas opiniões perante a comissão do CAQ.
h) As respostas do Dr. E assentam no resumo do caso clínico facultado pelo CAQ, de fls. 39 e ss. do proc. n.º 001/CAQ/2013, especialmente de fls. 41 do proc. n.º 001/CAQ/2013, foram mencionados que pelas 14h45, a hemoglobina é 10.5, comparando com a hemoglobina 13.6 após a primeira cirurgia, a hemorragia no interior da cavidade abdominal é considerada como choque hemorrágico e pelas 21h09, a hemoglobina baixou de 6,1 para 5,4.g.
i) No requerimento da apresentação dos documentos, os Recorrentes explicaram que os documentos visam corrigir a indicação de valores errados de hemoglobina do paciente após e antes das cirurgias, registados no processo administrativo, e que afectaram a análise e as conclusões do Dr. E.
j) De acordo com os relatórios laboratoriais, os valores de hernoçlobine do paciente, concretamente no dia 22/12/2011 às 14:58 (após a 1.ª e antes da 2.a cirurgia) e no dia 22/12/2011 às 21:59 (após a 2.a cirurgia e antes da 3.a) eram de 11.3g/dL e 7.7g/dL respectivamente.
k) Esses valores cientificamente correctos e precisos, realizados no Laboratório, de hemoglobina mais altos mostram, de forma clara e compreensível para o homem médio, que não existiu a queda significativa de hemoglobina que foi erradamente indicada pelo CAQ ao Dr. E.
l) As opiniões do Dr. E e a própria análise do CAQ têm por fundamento valores incorrectos de hemoglobina que necessariamente viciaram as conclusões do Dr. E.
m) Importa dizer que o Dr. E, consultou valores incorrectos e imprecisos, e partindo dos valores de hemoglobina, totalmente errados, que constam de fls. 41, chegou às conclusões de fls. 168 e 169 do proc. n.º 001/CAQ/2013.
n) Os valores de hemoglobina registados nos relatórios que os Recorrentes pretendiam juntar nos autos são referências muito importantes para conhecer e analisar, com rigor científico, a situação clínica do paciente durante todo percurso clínico.
o) Contudo, o Tribunal a quo não analisou devidamente a importância dos documentos a apresentar pelos Recorrentes.
p) Os dados nos relatórios de sangue foram registados de forma clara, expressa e directa, e a sua leitura não exige qualquer conhecimento científico, pois é manifesto, mesmo para o homem médio, que as indicações fornecidas pelo CAQ estão erradas e que não existiu uma queda acentuada dos valores de hemoglobina nem, consequentemente, choque hemorrágico.
q) Precisamente por se tratarem de relatórios de laboratório, os valores de hemoglobina ali registados devem ser incluídos nos autos, por serem pertinentes para a formação de convicção do Tribunal a quo, no sentido de abalarem as conclusões extraídas no proc. n.º 001/CAQ/2013, junto aos autos.
r) Nesta forma, o Tribunal a quo violou o n.º 2 do artigo do 450.º do CPC por não ter admitido a junção dos documentos.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis que V. Exas. doutamente suprirão, deverá dado provimento ao recurso ora interposto e, em consequência, revogado o despacho recorrido.
Assim, mais uma vez, será feita a habitual JUSTIÇA!

Notificados das alegações do recurso, os demandantes não responderam.

Admitido o recurso e fixado a ele o regime de subida diferida, continuou a marcha processual na sua tramitação normal e veio a final a ser proferida a seguinte sentença, absolvendo os 2º e 3º Réus da instância e julgando parcialmente procedente a acção condenando o Réu Saúde:
I. Relatório
  1. ª Autora A (A), 2.ª Autora B (B), 3.º Autor C (C), 4.ª Autora D (D) e 5.º Autor F (F), melhor id. nos autos,
  Vêm intentar a presente
Acção para Efectivação da Responsabilidade Civil Extracontratual
  Contra
  1.º Réu Serviços de Saúde da R.A.E.M., 2.º Réu G (G) e 3.º Réu H (H)
com os fundamentos apresentados constantes da p.i. de fls. 2 a 24,
  concluem pedindo que seja julgada procedente por ser provada a presente acção e, em consequência, ser os Réus condenados a pagar a quantia global de MOP$4,619,301.44, sendo MOP$1,139,301.44 à 1.ª Autora e MOP$870,000.00 a cada um dos 2.º a 5.º Autores, acrescida de juros contados à taxa legal supletiva, desde a data da sentença e até integral pagamento.
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  O 2.º Réu e o 3.º Réu contestam a acção com os fundamentos de fls. 148 a 185 dos autos, concluiu pedindo que seja julgada improcedente a acção e em consequência, absolvido o 2.º Réu e o 3.º Réu do pedido.
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  O 1.º Réu contesta a acção com os fundamentos de fls. 478 a 512 dos autos, concluiu pedindo que seja julgada improcedente a acção e em consequência, absolvido o 1.º Réu do pedido.
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  Os Autores apresentam a sua réplica com os fundamentos de fls. 849 a 856 dos autos.
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II. Saneamento
  Não obstante serem demandados, ao lado dos Serviços de Saúde enquanto o 1.º Réu, os dois médicos como os 2.º e 3.º Réus, afigura-se-me que estes não podem ser partes legítimas nesta acção, pelos motivos que se passa a expor no seguinte:
  Como se sabe, o Decreto-Lei n.º 28/91/M de 22 de Abril estabelece o regime próprio da responsabilidade civil extracontratual da Administração do Território (ou RAEM), pessoas colectivas públicas, seus titulares e agentes por actos de gestão pública, com as suas especificidades face ao regime geral da responsabilidade solidaria entre comitente e comissário consagrado nos art.ºs 493.º e 500.º do CCM.
  Desde logo, por força da norma do art.º 2.º do referido regime, a RAEM e demais pessoas colectivas públicas respondem sempre perante os lesados, pelos actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
  Por sua vez, nos termos do art.º 3.º do mesmo regime, os titulares dos órgãos e agentes administrativos só respondem civilmente pela prática de actos ilícitos fora dos limites das suas funções ou dentro do âmbito das suas funções mas dolosos.
  Neste último caso, estando em causa a actuação dolosa, e de acordo com o disposto do art.º 5.º do mesmo regime, os titulares dos órgãos e agentes administrativos respondem solidariamente ao lado da pessoa colectiva pública demandada, e esta goza do direito de regresso contra aqueles.
  
  Assim como ainda resultante do disposto das normas dos art.º s 2.º e 5.º, se os titulares dos órgãos e agentes administrativos agem sem ter demonstrado o dolo, mas apenas com a culpa grave ou a negligência grosseira, isto é, “com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo”, não responderão directamente perante o lesado, tão-só perante a Administração em via de regresso.
  Nesta hipótese, carecem os titulares dos órgãos e agentes administrativos da legitimidade passiva para ser parte principal, no entanto, podendo os mesmos, intervir no processo como parte acessória no lado passivo, nos termos do art.º 272.º, n.º 1 do CPC.
  Num ou noutro caso, o facto de ser interveniente a título principal ou acessório, não deverá prejudicar o exercício do direito de regresso por parte da Administração, e dependente essencialmente da relação material controvertida configurada pelos Autores na petição inicial, de ter qualificado a actuação dos responsáveis como dolosa ou negligente.

  Em síntese conclusiva:
   - Na matéria da responsabilidade civil extracontratual da pessoa colectiva pública, esta responde sempre, no plano externo e por via regra, perante os lesados, quando demonstrados os respectivos pressupostos;
   - Os titulares e agentes podem intervir como parte principal passiva e respondem ao lado da pessoa colectiva pública, directamente perante os lesados, quando agem com dolo, ou sozinhos, quando actuam fora dos limites das suas funções;
   - Os titulares e agentes respondem tão-só perante a pessoa colectiva pública, no plano interno e em via de acção de regresso, no caso de agirem com culpa grave ou negligência grosseira. Neste caso, há apenas lugar à intervenção acessória destes.
  
  No caso em apreço, certo é que os Autores, na sua p.i., nunca qualificaram a execução das cirurgias pelos 2.º e 3.º Réus como uma actuação dolosa, antes entendendo que é a actuação resultante da negligência destes.
  Assim sendo, é evidente que os médicos não podiam ser demandados como parte principal neste processo ao abrigo do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, devem, por consequência, ser absolvidos da instância por falta da legitimidade passiva, nos termos do art.º 230.º, n.º 3 do CPC, ex vi o art.º 99.º, n.º 1 do CPAC.
  Nesta conformidade, decide-se absolver os 2.º Réu G (G) e 3.º Réu H (H) da instância.
*
  Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
  As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
  O processo é o próprio.
  Inexistem outras nulidades, ou questões prévias que obstem a apreciação “de meritis”.
*
  Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
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  A Digna Magistrada do M.º P.º junto deste Tribunal após vista final emitiu parecer com os fundamentos de fls. 2881 a 2887.
***
III. Factos:
  Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
  Da Matéria de Facto Assente:
- A 1.ª A. é viúva e os 2.º a 5.º AA1. são os filhos de I, o qual faleceu em 10-01-2012, com 71 anos de idade (alínea A) dos factos assentes).
- Em resultado de um exame anatomopatológico feito ao I no Centro Hospitalar Conde de S. Januário (C.H.C.S.J.) em 18-11-2011, foram encontradas células de adenocarcinoma e consequentemente diagnosticado que este sofria de colangiocarcinoma (cancro das vias biliares) (alínea B) dos factos assentes).
- Em 20-12-2011, I foi internado no Serviço de Cirurgia Geral (S.C.G.) do C.H.C.S.J. para ser submetido a uma cirurgia Whipple laparoscópica (ou procedimento de Whipple com laparoscopia) com o fim de cortar o tecido cancerígeno (alínea C) dos factos assentes).
- A cirurgia foi realizada pelos 2.º e 3.º RR., com anestesia total, em 21-12-2011, entre as 13H00 e as 23H20 (alínea D) dos factos assentes).
- Às 01H30 de 22-12-2011 o paciente foi para a enfermaria com os sinais vitais estáveis até às 14H00 (alínea E) dos factos assentes).
- Às 14H00 o paciente passou subitamente a sentir fortes dores no abdómen e teve uma queda da pressão arterial (alínea F) dos factos assentes).
- Em consequência do choque hemorrágico, o paciente foi submetido a outra cirurgia laparoscópica com anestesia total realizada pelos 2.º e 3.º RR., em 22-12-2011, entre as 15H50 e as 19H10 (alínea G) dos factos assentes).
- Depois desta cirurgia foram novamente colocados tubos de drenagem no paciente e este foi transferido para a sala de anestesia e recuperação (alínea H) dos factos assentes).
- O paciente foi submetido a terceira cirurgia laparoscópica, realizada pelos 2.º e 3.º RR. com anestesia total, em 22-12-2011 às 22H05 até às 00H50 de 23-12-2011 (alínea I) dos factos assentes).
- Às 01H25 de 23-12-2011, I foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos, ainda anestesiado, onde ficou novamente entubado e com respiração assistida (alínea J) dos factos assentes).
- O paciente prestou consentimento escrito somente para a primeira e a segunda cirurgias (alínea K) dos factos assentes).
- Em 10-05-2012 o 2.º e o 3.º AA. apresentaram junto do Centro de Avaliação das Queixas relativas a Actividades de Prestação de Cuidados (C.A.Q.) uma queixa contra o S.C.G. do C.H.C.S.J., para o qual foi elaborado um parecer a fls. 51 a 59 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito (alínea L) dos factos assentes).
- Depois da terceira cirurgia o paciente recuperou a consciência total e apresentava sinais vitais estáveis e o abdómen liso (alínea M) dos factos assentes).
- Foram as primeiras deste tipo de cirurgias realizadas na R.A.E.M. (alínea N) dos factos assentes).
   *
  Da Base Instrutória:
- Em 20-12-2011, exames de radiografia, de ultra-sonografia modo-B do abdómen e uma tomografia computadorizada ao abdómen de I revelaram que não havia tecido circundante atacado nem sinais de metástases (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- Antes das cirurgias o paciente tinha uma condição física favorável, os sinais vitais dele estavam estáveis e não havia doenças secundárias (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
- Durante a cirurgia referida no facto assente D), o paciente perdeu 1,8 litros de sangue e recebeu uma transfusão (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
- Durante a segunda cirurgia foram encontrados no abdómen do paciente 2,3 litros de sangue e de coágulos de sangue e verificou-se que o choque hemorrágico tinha sido provocado por ressecção na veia esplénica (vaso sanguíneo que drena sangue do baço) feita durante a primeira cirurgia, o qual foi suturado (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
- Durante a segunda cirurgia foi ferida a superfície do baço (ou do pâncreas) de I, que forçou a um tratamento hemostático para sustar a hemorragia (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
- Durante a segunda cirurgia o paciente perdeu 2,5 litros de sangue e recebeu nova transfusão (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
- Pouco depois da segunda cirurgia o paciente sofreu uma queda violenta da pressão arterial e novo choque hemorrágico (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
- Durante a terceira cirurgia verificou-se no abdómen 1,0 litro de sangue mas sem pontos de hemorragia evidente, porém encontraram-se sangramentos na cápsula do pedaço S6 do fígado e na gordura do perinefrio e no compartimento fascial, a que foram feitos o tratamento hemostático com biofilmes (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- A terceira laparoscopia não é uma técnica mais adequada atenta a situação clínica do doente (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- Depois da terceira cirurgia, o paciente tinha febre, perdeu a consciência e os sinais vitais ficaram instáveis (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
- Várias tomografias computadorizadas ao abdómen revelaram a existência de gás no sistema dos ductos biliares, de ascites (acumulação de fluidos) em diferentes locais do abdómen e o vazamento do pâncreas (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
- Revelaram ainda que os pedaços S5 e S6 do lado direito do fígado apresentavam sombras irregulares de baixa densidade e não se encontraram sombras claras (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- Apesar de alguns tratamentos de drenagem realizados, a condição do paciente foi piorando inexorável e progressivamente, tendo sobrevindo um choque circulatório infeccioso e a síndroma de disfunção múltipla dos órgãos, nomeadamente insuficiências agudas respiratória e renal (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- Antes das intervenções cirúrgicas o falecido tinha uma condição física favorável (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
- As três laparoscopias seguidas, os choques hemorrágicos, o vazamento do pâncreas, a hemorragia contínua no abdómen durante e depois das cirurgias e a situação de stress do doente determinaram uma baixa imunidade do organismo do paciente que provocou a agravação das inflamações secundárias e determinaram a agravação da doença, provocando um choque inflamatório e a síndroma de disfunção múltipla de órgãos, com insuficiência respiratória aguda e insuficiência renal aguda (resposta ao quesito 17º da base instrutória).
- A cirurgia laparoscópica (ou procedimento de Whipple com laparoscopia) é um procedimento inovador e uma das cirurgias de maior porte e mais complexas no universo da cirurgia geral, pelo que a sua realização deve ser dirigida por médicos com experiência nesse tipo de intervenção (resposta ao quesito 18º da base instrutória).
- O 2.º R., que dirigiu a cirurgia, tinha formação em cirurgia laparoscópica mas não tinha experiência neste procedimento médico e o 3.º R. tinha formação em cirurgia geral (resposta ao quesito 19º da base instrutória).
- Em nenhuma das cirurgias realizadas ao paciente esteve presente um médico experiente na realização de laparoscopias (resposta ao quesito 20º da base instrutória).
- A realização da segunda laparoscopia depois de o paciente ter sofrido uma queda violenta da pressão arterial e um choque hemorrágico é opção menos razoável para tratamento de sangramento na cirurgia geral (resposta ao quesito 26º da base instrutória).
- Nem o paciente nem os seus familiares souberam que a terceira cirurgia ia ser realizada (resposta ao quesito 27º da base instrutória).
- O paciente e os seus familiares não foram informados de que era a primeira vez que se realizava na R.A.E.M. a cirurgia de Whipple com uso de laparoscopia, nem sabiam que os cirurgiões que as iam realizar o faziam pela primeira vez (resposta ao quesito 29º da base instrutória).
- Antes das operações o falecido era activo, alegre, tomava conta de si próprio, auxiliava a família, viajava, exercia actividades para ocupar o tempo, intervinha socialmente e tinha a expectativa de viver mais anos (resposta ao quesito 30º da base instrutória).
- O paciente sentiu dores fortes depois das operações a que foi submetido, por efeito destas e dos tratamentos que teve de receber, perdeu enormes quantidades de sangue, fez diversas transfusões, foi sujeito a três anestesias gerais, esteve longos períodos entubado, sentiu com desespero o seu estado de saúde se vindo a degradar dia a dia rápida e inexoravelmente (resposta ao quesito 31º da base instrutória).
- Face a este processo de degradação, durante o qual esteve quase sempre consciente, o falecido apercebeu-se de que não sobreviveria à situação, anteviu dolorosamente a sua morte e sentiu-se profundamente angustiado por isso (resposta ao quesito 32º da base instrutória).
- Sempre existiu entre o falecido e todos os AA. um relacionamento estreito, de amor e de profunda afectividade (resposta ao quesito 34º da base instrutória).
- A 1.ª e o 5.º AA. sempre coabitaram com o seu marido e pai e os restantes AA. sempre o visitaram com frequência ou eram visitados por este (resposta ao quesito 35º da base instrutória).
- Todos os AA., especialmente a 1.ª A., viveram angustiados durante todo o período de internamento do falecido, vendo a degradação gradual e inexorável do seu estado de saúde (resposta ao quesito 36º da base instrutória).
- Os AA. ficaram amargurados com a morte do seu marido e pai, sentem profundamente a sua morte e a sua falta e sentem-se revoltados com a causa inútil do decesso (resposta ao quesito 38º da base instrutória).
- A 1.ª A. sente a vida vazia e sem sentido (resposta ao quesito 39º da base instrutória).
- Chora pela perda do marido e a situação em que esta ocorreu (resposta ao quesito 40º da base instrutória).
- As cerimónias fúnebres de I começaram na R.A.E.M., o corpo foi cremado em Zhuhai e finalizaram em cidade da Província de Cantão (resposta ao quesito 43º da base instrutória).
- Com as cerimónias fúnebres, caixão, casa mortuária, oferendas para antepassados, objectos religiosos, lugar no templo, cremação, jazigo, manutenção do jazigo, transporte e outros - a 1.ª A. despendeu a quantia de MOP$28,500.00 e de RMB¥31,950.00 (resposta ao quesito 44º da base instrutória).
- O paciente sofria de uma forma de cancro na fase ou estádio T3N1, e caso não tivesse sido operado a sua expectativa de vida era não superior a 18 meses de vida (resposta ao quesito 45º da base instrutória).
- Uma pancreatoduodenectomia, ou procedimento whipple, consiste na ressecção de parte do estômago, vesícula biliar, da via biliar principal, da cabeça do pâncreas, do duodeno e respectiva reconstrução (resposta ao quesito 46º da base instrutória).
- As vantagens da laparoscopia são as seguintes: i) ampliação do campo de visão operatório; ii) recuperação mais rápida; iii) menor trauma; iv) pode ser mais precisa; v) menor afectação do sistema imunitário; vi) menor sofrimento; e vii) não implica as consequentes cicatrizes de grandes dimensões (resposta ao quesito 47º da base instrutória).
- Em 21-12-2011, para além da explicação verbal sobre o procedimento laparoscópico whipple, o 2.º R. desenhou num papel as partes dos órgãos que iam ser removidos, tendo dado esse papel ao 3.º A. (resposta ao quesito 48º da base instrutória).
- A expressão em inglês “laparoscopic vs. open whipple operation”, que consta do termo de consentimento assinado no dia 20-12-2011, foi escrita pelo Dr. JXX, que a mesma significava que a laparoscopia podia ser convertida em laparotomia, se alguma situação o justificasse durante a cirurgia (resposta ao quesito 49º da base instrutória).
- Durante uma cirurgia as transfusões de plasma e de glóbulos vermelhos são decisões normais que competem ao médico anestesista (resposta ao quesito 50º da base instrutória).
- Durante a primeira cirurgia, desde o seu termo às 23H20 em 21-12-2011 até às 14H00 em 22-12-2011, o paciente esteve sempre com os níveis de hemoglobina e com os sinais vitais normais (resposta ao quesito 54º da base instrutória).
- O paciente assinou, juntamente com o 2.º R., o termo de consentimento da 2.ª cirurgia (resposta ao quesito 56º da base instrutória).
- A pancreatoduodenectomia implica, necessariamente, a ressecção de ramos pancreáticos da veia esplénica, pelo que a ressecção desses ramos não é uma lesão, mas um procedimento cirúrgico que tem de ser feito durante um pancreatoduodenectomia (quer se trate de uma laparoscopia ou de uma laparotomia) (resposta ao quesito 57º da base instrutória).
- Durante a segunda laparoscopia de urgência foi definitivamente estancada a hemorragia verificada num pequeno ramo da veia esplénica, utilizando o efeito de tampão de compressão e coagulação, tendo sido aplicado localmente um coagulante com o nome comercial de “Floseal” (resposta ao quesito 58º da base instrutória).
- O pequeno aranhão superficial do baço (“tear of spleen”), sobre o qual foi aplicado cola biológica (bioglue), foi um resultado da segunda cirurgia de urgência, e não teve consequências para a saúde do paciente (resposta ao quesito 59º da base instrutória).
- Durante a terceira cirurgia não foi verificado um foco de hemorragia activa, mas uma “active oozing at liver capsule (S6) and retroperitoneal space” (perirenal fáscia), ou seja, hemorragia não activa na cápsula do fígado e na zona retroperitoneal (fáscia perirenal) (resposta ao quesito 61º da base instrutória).
- Ocorrência que, denota sintomas de falência do sistema de coagulação do paciente (resposta ao quesito 61º-A da base instrutória).
- Para estancar essa hemorragia não activa, foi aplicada cola biológica e foi administrado “Novoseven”, por existir uma insuficiência de factores de coagulação (resposta ao quesito 62º da base instrutória).
- Os episódios de febre são naturais após as cirurgias e, no caso do paciente, esses episódios foram sempre esporádicos, controlados e apenas durante um pequeno período de tempo após a terceira cirurgia (resposta ao quesito 64º da base instrutória).
- A deficiência no sistema de coagulação foi resolvida com a administração de “Novoseven”, ficando a tensão arterial tendencialmente elevada do doente controlada por medicação, uma vez que a tensão alta pode provocar hemorragias (resposta ao quesito 65º da base instrutória).
- Os RR. utilizaram medicamentos para diminuir os sofrimentos do paciente, entre a data das intervenções cirúrgicas e a da sua morte, o sofrimento do doente foi mitigado (resposta ao quesito 66º da base instrutória).
- A Whipple ou Duodenopancreatectomia Cefálica é a única técnica possível para tratar este tipo de carcinoma (resposta ao quesito 69º da base instrutória).
- A Whipple pode ser executada através de duas abordagens diferentes - a laparoscopia e a laparotomia (resposta ao quesito 70º da base instrutória).
- O choque hemorrágico depois da segunda cirurgia é uma situação emergente, caso a hemorragia não fosse contida, o paciente morreria (resposta ao quesito 73º da base instrutória).
***

IV. Fundamentos:
  Pela presente acção, pretendem os Autores que sejam indemnizados dos danos resultantes da morte da vítima I, na sequência da intervenção cirúrgica executada pelos médicos do CHCSJ, nomeadamente G e H.
  
  Para o efeito alegam que a morte da vítima foi consequência das três cirurgias de laparoscopia, inadequadas e desaconselhadas atenta à situação clínica do doente, consecutivas em curto espaço de tempo, de que resultaram a perda de grande quantidade de sangue e choques hemorrágicos e que acabaram por determinar a baixa imunidade do organismo da vítima, o agravamento das inflamações secundárias, a síndroma de disfunção múltipla de órgãos com insuficiência respiratória e renal aguda.
  E que existiu por parte dos dois médicos a negligência na execução das referidas cirurgias e a sua culpa na assunção das tarefas para as quais não tinham preparação.
  Além do mais, não existia o consentimento por parte da vítima falecida ou dos seus familiares para a execução da terceira operação, sendo também deficiente o consentimento prestado para as primeiras duas cirurgias.
  No que se refere aos danos, alegam os danos de morte, os danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima falecida e pelos Autores, bem como os danos patrimoniais, como as despesas com os funerais, de cerimónia fúnebre, de caixão, da casa mortuária, etc.
  Contestando a acção, vêm os Réus pugnar pela improcedência da acção por não provada.
*
  Tendo em conta a exposição feita, julgamos que devem ser equacionadas as seguintes questões relevantes para a decisão no caso concreto:
1. As causas da morte da vítima e a adequação das três laparoscopias executadas.
2. A culpa dos médicos na assunção das tarefas de laparoscopia.
3. O consentimento para a execução das cirurgias.
4. A responsabilidade do 1.º Réu.
5. O direito de indemnização que assiste aos Autores.
*
1. As causas da morte da vítima.
  Logo à partida, no que respeita às causas da morte da vítima, foram dados como provados os seguintes factos:
   - “Antes das intervenções cirúrgicas o falecido tinha uma condição física favorável” (resposta ao quesito 16º da base instrutória);
  - “As três laparoscopias seguidas, os choques hemorrágicos, o vazamento do pâncreas, a hemorragia contínua no abdómen durante e depois das cirurgias e a situação de stress do doente determinaram uma baixa imunidade do organismo do paciente que provocou a agravação das inflamações secundárias e determinaram a agravação da doença, provocando um choque inflamatório e a síndroma de disfunção múltipla de órgãos, com insuficiência respiratória aguda e insuficiência renal aguda” (resposta ao quesito 17º da base instrutória);
  assim como os outros factos relevantes resultantes da respostas dadas aos quesitos 3 º a 7 º, 12 º, 15 º, 61 º e 61º-A.
  Daí, parece ser evidente que a morte da vítima é consequência da uma séria de complicações (os choques hemorrágicos, o vazamento do pâncreas a hemorragia contínua no abdómen baixa imunidade do organismo agravação das inflamações secundárias choque inflamatório e a síndroma de disfunção múltipla de órgãos com insuficiência respiratória aguda e insuficiência renal aguda), provocadas pelas três cirurgias de laparoscopias executadas pelos médicos do CHCSJ.
  Sendo certo que o nexo de causalidade da morte da vítima se verifica em relação às três cirurgias seguidamente executadas, a questão passa por saber se eram ilícitas as mesmas intervenções cirúrgicas com a utilização da técnica de laparoscopia, nos aspectos que respeitam à adequação dos meios escolhidos e à necessidade de cada intervenção.
  Cumpre dizer que não foi posta em causa pelos Autores a necessidade das intervenções efectuadas, nem existem factos comprovados que patenteiem que algumas das intervenções realizadas eram desnecessárias tendo em conta a situação clínica revelada da vítima falecida.
  Agora em relação à questão da adequação dos meios escolhidos pelos médicos do CHCSJ, importa dizer antes que a laparoscopia, como uma alternativa da laparotomia, quando considerada em abstracto, não é uma técnica desaconselhada para tratar a adenocarcinoma sofrida pela vítima falecida.

  Por um lado, sabemos que:
  - “A Whipple ou Duodenopancreatectomia Cefálica é a única técnica possível para tratar este tipo de carcinoma” (resposta ao quesito 69º da base instrutória) e que “A Whipple pode ser executada através de duas abordagens diferentes - a laparoscopia e a laparotomia” (resposta ao quesito 70º da base instrutória);
  - além disso, que “A pancreatoduodenectomia implica, necessariamente, a ressecção de ramos pancreáticos da veia esplénica, pelo que a ressecção desses ramos não é uma lesão, mas um procedimento cirúrgico que tem de ser feito durante um pancreatoduodenectomia (quer se trate de uma laparoscopia ou de uma laparotomia)” (resposta ao quesito 57º da base instrutória).
  E durante a execução o procedimento Whipple, a laparoscopia em comparação com a abordagem tradicional de laparotomia, tem suas vantagens comprovadas, como demonstrado na resposta ao quesito 47º da base instrutória “As vantagens da laparoscopia são as seguintes: i) ampliação do campo de visão operatório; ii) recuperação mais rápida; iii) menor trauma; iv) pode ser mais precisa; v) menor afectação do sistema imunitário; vi) menor sofrimento; e vii) não implica as consequentes cicatrizes de grandes dimensões”.
  Por outro lado, ainda em termos abstractos, a vantagem da técnica de laparotomia, em contraste com a laparoscopia, não chegou a ser demonstrada, já que não se deu como provado que “a laparotomia (ou celitomia) terapêutica é uma manobra ou técnica cirúrgica mais simples, menos invasiva e que permite os mesmos objectivos e resultados” (resposta ao quesito 23º da base instrutória).
  Embora sendo verdade que “A cirurgia laparoscópica (ou procedimento de Whipple com laparoscopia) é um procedimento inovador e uma das cirurgias de maior porte e mais complexas no universo da cirurgia geral, pelo que a sua realização deve ser dirigida por médicos com experiência nesse tipo de intervenção” (resposta ao quesito 18º da base instrutória), o mesmo não pode ser visto como uma desvantagem da laparoscopia, na perspectiva da avaliação dos seus efeitos pós-operatórios para os seus destinatários.
  A questão diversa é saber se atenta à situação clínica da vítima falecida demonstrada naquela data da operação, era impróprio ou até erradamente adoptado o método de laparoscopia na execução do procedimento Whipple.
  Para este efeito, passaremos a ver, com base na matéria de facto provada e pela ordem cronológica, todas as cirurgias que foram executadas no caso vertente, a fim de poder apreciar a adequação de cada uma:
Em relação à primeira cirurgia executada entre as 13h00 e as 23h20 do dia 21 de Dezembro de 2011, não houve nenhum facto quesitado muito menos comprovado que indicie a inadequação da laparoscopia. Pese embora ser verdade que “Durante a cirurgia referida no facto assente D), o paciente perdeu 1,8 litros de sangue e recebeu uma transfusão” (resposta ao quesito 3º da base instrutória), inexistem mais outros factos comprovados que nos permitam a concluir, com base nisso, que o sangue tivesse sido perdido em quantidade maior do que numa cirurgia executada em casos normais e que este resultado devesse ser atribuído à utilização da primeira laparoscopia.
  A conclusão que se extrairia já seria diferente face a segunda cirurgia executada entre as 15h50 e as 19h10 no dia 22 de Dezembro de 2011, uma vez que foi dado como comprovado que durante a segunda cirurgia o seguinte:
  - “…foram encontrados no abdómen do paciente 2,3 litros de sangue e de coágulos de sangue e verificou-se que o choque hemorrágico tinha sido provocado por ressecção na veia esplénica (vaso sanguíneo que drena sangue do baço) feita durante a primeira cirurgia, o qual foi suturado” (resposta ao quesito 4º da base instrutória);
  - “…foi ferida a superfície do baço (ou do pâncreas) de I, que forçou a um tratamento hemostático para sustar a hemorragia” (resposta ao quesito 5º da base instrutória);
  - “…o paciente perdeu 2,5 litros de sangue e recebeu nova transfusão” (resposta ao quesito 6º da base instrutória);
  Além disso pouco depois da segunda cirurgia “…o paciente sofreu uma queda violenta da pressão arterial e novo choque hemorrágico” (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
  Face às circunstâncias fácticas acima expostas, o Tribunal Colectivo concluiu considerando como provado “A realização da segunda laparoscopia depois de o paciente ter sofrido uma queda violenta da pressão arterial e um choque hemorrágico é a opção menos razoável para tratamento de sangramento na cirurgia geral” (resposta ao quesito 26º da base instrutória).
  A mesma se deve concluir em relação à terceira cirurgia executada entre as 22h05 do dia 22 e as 00h50 do dia 23 de Dezembro de 2011, de acordo com o que vem sendo provado:
  - “Durante a terceira cirurgia verificou-se no abdómen 1,0 litro de sangue mas sem pontos de hemorragia evidente, porém encontraram-se sangramentos na cápsula do pedaço S6 do fígado e na gordura do perinefrio e no compartimento fascial, a que foram feitos o tratamento hemostático com biofilmes” (resposta ao quesito 9º da base instrutória);
  - “Durante a terceira cirurgia não foi verificado um foco de hemorragia activa, mas uma “active oozing at liver capsule (S6) and retroperitoneal space (perirenal fáscia), ou seja, hemorragia não activa na cápsula do fígado e na zona retroperitoneal (fáscia perirenal)” (resposta ao quesito 61º da base instrutória).
  Neste caso, entendeu o Tribunal Colectivo que também “A terceira laparoscopia não é uma técnica mais adequada atenta a situação clínica do doente” (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
  
  Convém lembrar que a referida convicção do Tribunal Colectivo era baseada especialmente na ponderação do parecer emitido pelo médico especialista Dr. EXX, em contrapartida das opiniões dadas pelos médicos-especialistas locais, o qual chegou a afirmar não ser uma opção razoável a intervenção pela laparoscopia nas 2.ª e 3.ª cirurgias, face à regra de laparotomia que deveria ter sido utilizado aquando do tratamento hemostático no caso grave.
  Nesta conformidade, afigura-se-nos não ser difícil perceber que, apesar de não ser comprovada a laparotomia como uma abordagem abstractamente mais vantajosa que a laparoscopia, não se deixaria de ser aquela estabelecida como legis artis que deveria ter sido cumprida atenta a situação clínica da vítima falecida e esta legis artis, que nos parece ser claro, foi violada pelos médicos do CHCSJ.
  Além do mais, se concluímos que na situação concreta deveria ter sido utilizada a abordagem de laparotomia, por ser mais adequada e com o melhor efeito terapêutico no tratamento da hemorragia da vítima ocorrida após a primeira operação, nas segunda e terceira cirurgias. E se também está provado que a consequência lesiva e mortal da vítima foi justamente provocada pela execução seguida das cirurgias do mesmo género num curto período do tempo. O respectivo nexo de causalidade, ao que parece, se deve considerar verificado, para além de sê-lo em relação à sucessão temporal das cirurgias, como também em relação à inadequação das cirurgias escolhidas.
  Por outro lado, e nesta linha de consideração, cremos que tem pouca pertinência a tese do 1.º Réu segundo a qual, “nem que, caso os Réus tivessem optado pela abordagem laparoscópica2, tal resultado não se teria verificado” (conforme se defende na alegação a fls. 2861 dos autos).
  Como se sabe, o chamado “comportamento lícito alternativo” – mesmo que os agentes tivessem adoptado um comportamento lícito actuando conforme legis artis exigido para o caso concreto, o resultado danoso não teria sido evitável – a ter-se por verificado, poderia afastar a conexão entre os riscos consumados de dano e a conduta praticada.
  Porém, entendemos que deve caber ao lesante o ónus de alegar e comprovar da existência deste “comportamento lícito alternativo”, pela mesma razão que sucede com a questão da prova dos factos relativos à existência da causalidade virtual ou hipotética, nos termos dos art.ºs 484.º, 485.º, n.º 1 e 486.º, n.º 1 do CCM.
  Não tendo este ónus sido cumprido pelo Réu, não se considera relevante o seu argumento no sentido de negar a presença do nexo de causalidade no caso vertente.
  
  2. A culpa dos médicos na assunção das tarefas de laparoscopia.
  Considera-se, como atrás referido, demonstrada a inadequação do método da abordagem escolhida pelos médicos do CHCSJ na segunda e terceira cirurgia, e daí se revela, por consequência, uma actuação culposa e negligente por parte dos médicos G e H que violaram as normas de cuidado na opção dos meios para tratar a hemorragia pós-operatória da vítima falecida.
  Contudo é algo diferente dizer que eles revelaram culpa na assunção da tarefa para a qual os mesmos não tinham preparação.
  Julgo que a tese da culpa na assunção das tarefas só interessa à solução do caso concreto apenas quando os riscos inerentes às tarefas de alta perigosidade e complexidade chegam a concretizar-se no resultado danoso por falta da preparação de quem executa estas tarefas. Mas, não foi o que sucedeu no caso, pois que nenhum facto provado nos tenha ilustrado a falha no decurso da execução das laparoscopias - como foram demonstrados nos factos comprovados (respostas aos quesitos 58º, 59º, 61º, 64º, 65º e 66º da base instrutória), ou seja, a execução das cirurgias, afinal de contas, foi bem sucedida.
  Nestes termos, se o erro médico não se situava na execução das cirurgias que foram escolhidas, mas sim no momento anterior, na escolha do tipo de cirurgia para o caso clínico, então não se vê, independentemente da comprovação dos factos relevantes à qualificação académica ou profissional dos médicos cirurgiões nas respostas aos quesitos 19º e 20º da base instrutória, a relevância da tese dos Autores para sustentar o seu pedido indemnizatório.
  
  3. O consentimento para a execução das cirurgias.
  Por outro lado, no que concerne à questão do consentimento, de acordo com os factos assentes:
  - “O paciente prestou consentimento escrito somente para a primeira e a segunda cirurgias” (alínea K) dos factos assentes);
  - “Em 21-12-2011, para além da explicação verbal sobre o procedimento laparoscópico whipple, o 2.º R. desenhou num papel as partes dos órgãos que iam ser removidos, tendo dado esse papel ao 3.º A.” (resposta ao quesito 48º da base instrutória);
  - e além disso “O paciente assinou, juntamente com o 2.º R., o termo de consentimento da 2.ª cirurgia” (resposta ao quesito 56º da base instrutória).
  É evidente que não foi provado que houve consentimento para a execução da terceira cirurgia. Contudo por outro lado, foi dado como provado que “O choque hemorrágico depois da segunda cirurgia é uma situação emergente, caso a hemorragia não fosse contida, o paciente morreria” (resposta ao quesito 73º da base instrutória).
  Parece-nos justo afirmar que a situação acima demonstrada revelou uma circunstância de especial urgência, enquadrável nos termos do art.º 8.º, n.º 1 da Decreto-Lei n.º 111/99/M, de 13 de Dezembro, a qual ao ter-se por verificada, dispensa o consentimento do lesado, afastando, portanto, a ilicitude da actuação médica pela falta de consentimento.
  Por outro lado, no que diz respeito ao alegado consentimento deficiente para a execução das primeira e segunda cirurgias, foi apenas dado como provado que:
  - “O paciente e os seus familiares não foram informados de que era a primeira vez que se realizava na R.A.E.M. a cirurgia de Whipple com uso de laparoscopia, nem sabiam que os cirurgiões que as iam realizar o faziam pela primeira vez (resposta ao quesito 29º da base instrutória);
   - “A expressão em inglês “laparoscopic vs. open whipple operation”, que consta do termo de consentimento assinado no dia 20-12-2011, foi escrita pelo Dr. JXX, que a mesma significava que a laparoscopia podia ser convertida em laparotomia, se alguma situação o justificasse durante a cirurgia” (resposta ao quesito 49º da base instrutória).
  Julgamos que esta factualidade por si só não é suficiente para invalidar os consentimentos feitos com base na vontade deficiente de quem consentiu – quanto ao primeiro facto, não se revela que tenha sido alegado até que ponto as informações faltosas relevassem para a formação da vontade de consentir e pudessem portanto determinar a sua anulação; e quanto ao segundo, se é verdade que a vítima falecida foi informada, antes de dar o seu consentimento, de ambos os métodos de abordagem como alternativamente possíveis, não se conseguiria saber qual seria a razão para não considerar esta possibilidade alternativa como também coberta pela mesma vontade de consentir.
  Nestes termos, consideramos irrelevante a alegada falta de consentimento ou consentimento deficiente para as cirurgias.
 
  4. A responsabilidade do 1.º Réu.
  Tudo visto, veremos em que termos deve o 1.º Réu ser responsabilizado pelos danos reclamados.
  Dispõe o Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, o art.º 2.º, “a Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante os lesados, pelos actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”
  
  Mais dispõe o art.º 3.º, “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os titulares dos órgãos e agentes administrativos da Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente pela prática de actos ilícitos, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.”
  
   Quanto à ilicitude, nos termos do art.º 7.º do referido DL:
  “1. Para os efeitos deste diploma, a ilicitude consiste na violação do direito de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger os seus interesses.
  2. Serão também considerados ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”
  
   Por sua vez, em relação ao requisito da culpa, o artigo 4.º do mesmo DL determina o seguinte:
  “1. A culpa dos titulares dos órgãos ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 480.º do Código Civil.
  2. Se houver pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 490.º do Código Civil.”
  
  Dessas normas, depreende-se que os Serviços de Saúde respondem civilmente perante os lesados nos termos que se responsabilizam os seus órgãos e agentes, e que para impor qualquer obrigação de indemnizar ao respectivo órgão ou agente, é preciso que haja actos materiais ilícitos culposos dos respectivos órgãos ou agentes. Além disso, é indispensável que haja um nexo de causalidade entre os actos ilícitos e a lesão sofrida pela vítima.
  Recapitulando o que foi dito atrás, os médicos G e H na escolha do meio de laparoscopia para as segunda e terceira cirurgias, infringiram o legis artis, que segundo os conhecimentos da medicina ao tempo em que os actos foram praticados, o procedimento a adoptar deveria ter sido a técnica de laparotomia para o tratamento hemostáctico durante procedimento de Whipple e não a laparoscopia que foi utilizada no caso vertente.
   Para além disso, os dois médicos têm culpa ou mera negligência, na medida em que estes, perante as graves hemorragias que a situação clínica da vítima apresentava na altura, acompanhadas de choque hemorrágico e da queda violenta da pressão arterial na sequência da primeira cirurgia e da segunda, não actuavam com o dever de cuidado na ponderação do meio adequado para suster a hemorragia com uma maior eficácia possível.
  E o cumprimento deste dever de cuidado é-lhes exigível atentas as circunstâncias do caso concreto e segundo a medida do seu poder individual.
  Por último, tem-se por verificado o nexo de causalidade adequado, isto é, da sua actuação ilícita e negligente resultaram as consequências lesiva e mortal para a vítima falecida, assim como os danos daí derivados e suportados pela própria vítima e pelos seus familiares.
  Nas linhas desta consideração, afigura-se-nos serem preenchidos os requisitos para a responsabilização do 1.º Réu, estabelecidos no disposto do art.º 2.º do Decreto-Lei supradito.
   
  5. Direito de indemnização que assiste aos Autores.
  Nos termos do art.º 557.º do CCM, “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.” Segundo a teoria da causalidade adequada, um facto será causa jurídica de um dano quando é em concreto uma causa natural ou sine qua non, e igualmente em abstracto uma causa adequada para a produção daquele resultado danoso, partindo do momento da prática do facto e das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis para o agente como pessoa normalmente experimentada.
  No que diz respeito aos danos de morte da vítima, nos termos do acima exposto, considera-se que estes constituam o resultado adequado da intervenção médica em causa, nomeadamente, da opção pelo método de laparoscopia na segunda e na terceira cirurgias executadas.
  Para a quantificação do dano, resultou provado nomeadamente a seguinte factualidade que respeita às condições físicas da vítima falecida, a sua idade e sobretudo à sua expectativa de vida por ter sofrido do cancro antes da operação cirúrgica:
  - A 1.ª A. é viúva e os 2.º a 5.º AA. são os filhos de I, o qual faleceu em 10-01-2012, com 71 anos de idade (alínea A) dos factos assentes);
  - Antes das cirurgias o paciente tinha uma condição física favorável, os sinais vitais dele estavam estáveis e não havia doenças secundárias (resposta ao quesito 2º da base instrutória);
  - Antes das intervenções cirúrgicas o falecido tinha uma condição física favorável (resposta ao quesito 16º da base instrutória);
  - O paciente sofria de uma forma de cancro na fase ou estádio T3N1, e caso não tivesse sido operado a sua expectativa de vida era não superior a 18 meses de vida (resposta ao quesito 45º da base instrutória).
     Nesta conformidade, com referência ao montante habitualmente fixado pelas anteriores jurisprudências3 do TUI para a indemnização do dano desta espécie, afigura-se excessiva a quantia de MOP$1,750,000.00 peticionada pelos Autores, sendo portanto mais equilibrado fixar a quantia de MOP$700,000.00.
  
  No que diz respeito aos danos não patrimoniais, a quantia indemnizatória deve ser arbitrada de acordo com o disposto do art.º 489.º do CCM:
“Artigo 489.º
(Danos não patrimoniais)
  1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
  2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
  3. O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.”
   Além do mais, na quantificação dos danos não patrimoniais, é sempre necessário atender ao grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
  
  Voltemos ao caso vertente. No que toca aos danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima falecida, de acordo com a matéria de facto provada:
  - Antes das operações o falecido era activo, alegre, tomava conta de si próprio, auxiliava a família, viajava, exercia actividades para ocupar o tempo, intervinha socialmente e tinha a expectativa de viver mais anos (resposta ao quesito 30º da base instrutória);
  - O paciente sentiu dores fortes depois das operações a que foi submetido, por efeito destas e dos tratamentos que teve de receber, perdeu enormes quantidades de sangue, fez diversas transfusões, foi sujeito a três anestesias gerais, esteve longos períodos entubado, sentiu com desespero o seu estado de saúde se vindo a degradar dia a dia rápida e inexoravelmente (resposta ao quesito 31º da base instrutória);
  - Face a este processo de degradação, durante o qual esteve quase sempre consciente, o falecido apercebeu-se de que não sobreviveria à situação, anteviu dolorosamente a sua morte e sentiu-se profundamente angustiado por isso (resposta ao quesito 32º da base instrutória);
  - Os RR. utilizaram medicamentos para diminuir os sofrimentos do paciente, entre a data das intervenções cirúrgicas e a da sua morte, o sofrimento do doente foi mitigado (resposta ao quesito 66º da base instrutória);
  - A vítima faleceu em 10 de Janeiro de 2012 e a última intervenção cirúrgica foi em 23 de Dezembro de 2011 (alínea A) dos factos assentes).
  
  Perante esta factualidade comprovada, tendo em consideração a mera negligência dos agentes médicos na sua actuação, entente o Tribunal ser mais justo reduzir o valor peticionado de MOP$600,000.00, fixando a quantia indemnizatória em MOP$200,000.00.
  
  Ainda em relação aos danos não patrimoniais sofridos por cada Autor familiar da vítima falecida, foram dados como provados o seguinte:
  - Sempre existiu entre o falecido e todos os AA. um relacionamento estreito, de amor e de profunda afectividade (resposta ao quesito 34º da base instrutória);
  - A 1.ª e o 5.º AA. sempre coabitaram com o seu marido e pai e os restantes AA. sempre o visitaram com frequência ou eram visitados por este (resposta ao quesito 35º da base instrutória);
  - Todos os AA., especialmente a 1.ª A., viveram angustiados durante todo o período de internamento do falecido, vendo a degradação gradual e inexorável do seu estado de saúde (resposta ao quesito 36º da base instrutória);
  - Os AA. ficaram amargurados com a morte do seu marido e pai, sentem profundamente a sua morte e a sua falta e sentem-se revoltados com a causa inútil do decesso (resposta ao quesito 38º da base instrutória);
  - A 1.ª A. sente a vida vazia e sem sentido (resposta ao quesito 39º da base instrutória);
  - Chora pela perda do marido e a situação em que esta ocorreu (resposta ao quesito 40º da base instrutória).
  
  Atenta a idade da vítima de 71 anos à data da morte, a sua estreita relação com a sua cônjuge e com os seus filhos, o sentimento e as dores sofridas por estes e ainda os montantes habitualmente fixados por TUI, julgo equitativa a quantia de MOP$200,000.00 para cônjuge do falecido e MOP$100,000.00 para cada um dos filhos.
  Por último, quanto à indemnização pelos danos patrimoniais, nomeadamente, as despesas feitas com as cerimónias fúnebres, caixão, casa mortuária, oferendas para antepassados, objectos religiosos etc, fixa-se o montante em conformidade com a resposta aos quesitos 43.º e 44º da base instrutória, no valor de MOP$69,301.44, tal como reclamado.
  Nestes termos, deve o 1.º Réu ser condenado a pagar a indemnização no valor total de MOP$1,569,301.44, sendo MOP$449,301.44 à 1.ª Autora e MOP$280,000.00 a cada um dos 2.º a 5.º Autores.
***
V. Decisão:
  Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga parcialmente procedente a acção e em consequência, decide:
  - condenar o 1.º Réu Serviços de Saúde da R.A.E.M., a pagar aos Autores o montante global de MOP$1,569,301.44 (um milhão quinhentos e sessenta e nove mil trezentas e uma patacas e quarenta e quatro avos), sendo MOP$449,301.44 (quatrocentos e quarenta e nove mil trezentas e uma patacas e quarenta e quatro avos) à 1.ª Autora e MOP$280,000.00 (duzentos e oitenta mil patacas) a cada um dos 2.º a 5.º Autores, acrescido de juros a taxa legal desde a data da sentença até o seu integral pagamento.
*
  Custas na proporção de decaimento.
*
  Fixa-se em 4 UC a pagar a favor de cada perito, a ser adiantado pelo GPTUI.
*
  Registe e notifique.

Não se conformando com o decidido, veio a Ré Saúde recorrer da mesma para este Tribunal de Segunda Instância.

Para o efeito formulou as seguintes conclusões:
I O Tribunal a quo concluiu que "antes das cirurgias, o paciente tinha uma condição física favorável, os sinais vitais dele estavam estáveis e não havia doenças secundárias" (Quesito 2.°) e que "antes das intervenções cirúrgicas, o falecido tinha uma condição física favorável" (Quesito 16.°).
II Tal conclusão não corresponde à realidade pois I sofria, à data das cirurgias, de cancro das vias biliares em fase avançada (estádio T3N1) e de várias outras patologias, nomeadamente, hipertensão e Hepatite B, para além de ser um homem de 71 anos de idade, ex-fumador e consumidor crónico de álcool.
III O paciente não gozava de uma condição física favorável, desde logo porque tinha uma expectativa máxima de dezoito meses de vida sem tratamento adequado (Quesito 45.°).
IV A testemunha KXX referiu que o falecimento do paciente, mesmo após uma intervenção cirúrgica bem-sucedida, terá sido uma consequência directa do tipo de cancro diagnosticado, "porque uma das causas de morte dos tumores da via biliar, da cabeça do pâncreas e daquela região é, justamente, a hemorragia secundária", que corresponde tão só à "evolução da doença. Porque o facto de se tirar o tumor não significa que se tenha curado a doença ".
V O Tribunal a quo considerou "que a terceira laparoscopia não é uma técnica mais adequada [sic] atenta a situação clínica do doente" (Quesito 10.°) e "que a realização da segunda laparoscopia depois de o paciente ter sofrido uma queda violenta da pressão arterial e um choque hemorrágico é opção menos razoável para tratamento de sangramento na cirurgia geral" (Quesito 26.°).
VI Mas, aquele Tribunal considerou, simultaneamente, não provado que a laparotomia seja uma técnica cirúrgica "mais simples" e "menos invasiva" do que a laparoscopia (Quesito 23.°), i.e., o recurso à laparotomia é mais complexo e, em particular, mais invasivo para o paciente,
VII O que permite deduzir que, face à situação clínica instável do paciente e às várias doenças de que este padecia, o recurso à laparotomia seria o menos indicado atenta a sua situação clínica, na medida em que, em consequência da sua agressividade, iria apenas contribuir para o agravamento de uma condição que acabou por ser resolvida, com sucesso, por laparoscopia,
VIII Dedução esta que foi expressa pelo LXX e pelo KXX em sede de audiência de julgamento, ao declararem, respectivamente, que, "se um doente está mal [...] para sofrer uma laparoscopia exploradora, com uma laparotomia exploradora provavelmente ficaria bem pior [...]. Se for possível resolver qualquer situação cirúrgica por laparoscopia, o beneficio para o doente é óptimo, é enorme",
IX E que "a técnica laparoscópica [...] tem tanto mais indicação quanto piores são as condições do doente ".
X A Recorrente discorda também da resposta dada ao Quesito 19.º da Base Instrutória, na parte em que considera provado que o 2.º Réu, que conduziu a cirurgia ao paciente I, "não tinha experiência neste procedimento médico" (leia-se, procedimento Whipple),
XI E da resposta ao Quesito 20.º da Base Instrutória, na qual se afirma que "em nenhuma das cirurgias realizadas ao paciente esteve presente um médico experiente na realização de laparoscopias", pois que estas são manifestamente erradas.
XII Da prova documental junta aos autos, resulta explícito que o 2.º Réu frequentou vários cursos de formação cirúrgica, tanto em Portugal, como na República Popular da China e, à data dos factos, já tinha realizado cerca de oitocentas e cinquenta cirurgias laparoscópicas e quinze pancreatoduodenectomias por laparotomia.
XIII O 3.º Réu, para além de ter frequentado diversas acções de formação, à data dos factos já tinha realizado ou assistido na realização de quatrocentas e dezasseis laparoscopias.
XIV A excelente capacidade técnica do 2.º Réu, Dr. G é destacada pelos seus pares: inquirido em sede de audiência de julgamento, o MXX (MXX) afirmou que este é um dos melhores cirurgiões do Centro Hospitalar Conde de São Januário e "um médico relativamente experiente neste tipo de operação".
XV Também o Dr. NXX (NXX) confirmou a experiência do 2.° Réu na realização do procedimento Whipple por via laparotómica e, bem assim, na realização de laparoscopias aos vários órgãos que são intervencionados durante aquele procedimento.
XVI Nas palavras do LXX, "O Dr. G é um dos dois melhores cirurgiões laparoscópicos do nosso departamento [...], efectivamente um virtuoso, é um indivíduo muito competente", destacando a irrelevância do facto de a intervenção realizada ao paciente ter sido o seu primeiro procedimento Whipple por via laparoscópica, na medida em que "um cirurgião que não se sente capaz parafazer uma cirurgia dessas nem tenta [...], porque isso seria uma atitude de kamikaze".
XVII Para quem, como o 2.° Réu, já realizou "toda a cirurgia abdominal [...], a todas as estruturas que estão envolvidas no procedimento de Whipple - o procedimento Whipple acaba por ser, para um cirurgião desses, só um somatório de várias técnicas, relativamente ao estômago, às vias biliares, ao pâncreas, baço, por vezes necessário também, todas em conjunto.", afirmou ainda a testemunha referida,
XVIII Entendimento partilhado pelo KXX: "o facto de ser a primeira cirurgia Whipple [por laparoscopia] não significa que o cirurgião que pratica essa técnica não esteja preparado para a fazer. E porquê? Primeiro, porque a cirurgia Whipple feita por via laparoscópica tecnicamente é exactamente igual à cirurgia Whipple feita por laparotomia, ou seja, por via aberta. [...] Do ponto de vista técnico, tanto faz ser o primeiro como o décimo. É igual, porque tecnicamente é igual do ponto de vista Whipple. Do ponto de vista laparoscópico, também é irrelevante, na medida em que uma operação de Whipple é a soma de vários procedimentos. É um procedimento de uma gastrectomia, é um procedimento de uma colecistectomia com exploração da via biliar e é um procedimento de cirurgia sobre o intestino delgado",
XIX Mais referindo que tanto o 2.º como o 3.º Réus possuíam "ampla experiência em qualquer dessas cirurgias", incluindo na realização desses diversos procedimentos com recurso à via laparoscópica, sendo o Dr. G em particular "a pessoa mais habilitada do serviço [...] para fazer um procedimento Whipple, quer laparoscôpico, quer por laparotomia".
XX Colocado perante a questão de se, tomando em conta que a intervenção realizada ao paciente seria a primeira do seu género realizada pelos Réus com recurso à via laparoscópica, não deveria, por isso, ter sido escolhida a via laparotómica, o LXX reitera: "Se estamos a falar de um cirurgião com uma grande experiência no tratamento de patologias de qualquer um e de todos os órgãos interessados na dissecção de uma operação de Whipple, é basicamente um somatório. Alguma vez qualquer cirurgião tem que fazer pela primeira vez uma técnica. [...] É importante perceber que estamos a falar [...] de uma técnica cirúrgica que, para o cirurgião que a fez, é o somatório de dissecções, de intervenções em órgãos com os quais ele já lidava por laparoscopia".
XXI A situação impunha uma resposta ao Quesito 20.º da Base Instrutória em sentido inverso, visto que ficou cabalmente demonstrada a vasta formação profissional e experiência em cirurgia laparoscópica do 2.º e 3.º Réus,
XXII O Tribunal a quo considerou não provado que, "seja qual for a abordagem - laparoscápica ou laparotómica - a técnica cirúrgica é exactamente a mesma, ou seja, o procedimento Whipple [...] é o mesmo" (Quesito 71.º).
XXIII Todavia, da prova documental junta aos autos, resulta expresso que o procedimento Whipple, a única técnica existente para o tratamento do tipo de carcinoma de que sofria o paciente, pode ser executado através de duas abordagens distintas, a laparoscopia e a laparotomia.
XXIV O procedimento é apenas um, consistindo na recessão de parte do estômago, vesícula biliar, via biliar principal, cabeça do pâncreas, duodeno e na sua respectiva reconstrução, podendo ser realizado com recurso a dois métodos alternativos, a laparoscopia ou a laparotomia, cuja escolha vai depender do médico cirurgião e da sua equipa, de acordo com as suas convicções e experiência,
XXV Como esclareceu o LXX: "a técnica cirúrgica é basicamente a mesma; a abordagem é que é diferente. Na [laparotomia] nós temos o abdómen aberto e fazemos a dissecção directamente com as mãos e com pinças. Por laparoscopia [...] a câmara está dentro do doente - o que permite até uma muito melhor visibilidade das estruturas - e faz-se a mesma dissecção",
XXVI E o KXX: "a cirurgia Whipple feita por via laparoscópica [em termos técnicos] é exactamente igual à cirurgia Whipple feita por laparotomia, ou seja, por via aberta. Tecnicamente, o procedimento é igual. "
XXVII As várias doenças de que sofria o paciente não eram impeditivas da realização do procedimento Whipple, como assegura o KXX: "nada disso é impeditivo da cirurgia, quer laparoscópica, quer por laparotomia. Sendo que a cirurgia por laparoscopia é muito menos agressiva do que a cirurgia por laparotomia, e havendo a hipótese de realizar essa cirurgia por via laparoscópica, em benefício do doente, é sempre de optar por cirurgia laparoscópica".
XXVIII A recessão da veia esplénica é uma necessidade incontornável para a remoção do tumor em qualquer procedimento Whipple, como resultou provado na resposta ao Quesito 57.º da Base Instrutória.
XXIX O pequeno corte na superfície do baço corresponde a uma lesão não-intencional sem consequências directas para a saúde do paciente, corolário incidental deste tipo de cirurgia, como resultou provado na resposta ao Quesito 59.º da Base Instrutória.
XXX Aplicada cola biológica no local de sangramento, o paciente I foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, onde veio a falecer vinte dias depois, em 10 de Janeiro de 2012, pese embora apresentasse sinais vitais estáveis e tivesse recuperado a consciência total após a terceira cirurgia.
XXXI Concluiu o MM. Juiz na sentença prolatada pelo Tribunal a quo, com base apenas no parecer verbal emitido pelo Dr. EXX (EXX), "não ser difícil perceber que, apesar de não ser comprovada a laparotomia como uma abordagem abstractamente mais vantajosa que a laparoscopia, não deixaria de ser aquela estabelecida como legis artis que deveria ter sido cumprida atenta a situação clínica da vitima falecida", por um lado,
XXXII E, por outro, "que nenhum facto provado nos tenha ilustrado a falha no decurso da execução das laparoscopias [...], ou seja, a execução das cirurgias, afinal de contas, foi bem-sucedida".
XXXIII Na impossibilidade de encontrar qualquer indício de erro médico ou, bem assim, actuação negligente por parte do 2.º e 3.º Réus durante e após as três cirurgias laparoscópicas, o Tribunal a quo optou por censurar a conduta prévia desses dois médicos, em concreto, o momento da escolha da abordagem cirúrgica a aplicar ao caso clínico, "independentemente da comprovação dos factos relevantes à qualificação académica ou profissional dos médicos cirurgiões".
XXXIV Tal entendimento revela-se incorrecto e contraditório, na medida em que presume que dois profissionais plenamente habilitados à realização de três cirurgias por via laparoscópica "bem-sucedidas", não o são igualmente no tocante à escolha do tipo de abordagem a adoptar quanto a um específico paciente,
XXXV Facto tanto mais contundente quando tomadas em conta as várias vantagens da laparoscopia face à laparotomia (Quesito 47.°) entre as quais se destacam um menor trauma e mais rápida recuperação para o paciente, com consequente diminuição do tempo de hospitalização; a ocorrência de poucas complicações na ferida, como o rompimento ou a infecção, uma vez que a incisão é consideravelmente menor; e a possibilidade de toda a equipa operatória visionar em simultâneo o decorrer da cirurgia em três monitores, com ampliação de imagem que incluí ângulos não visíveis a olho nu.
XXXVI Sendo o recurso à laparoscopia a abordagem menos traumática e invasiva para o paciente, é correcta a opção do 2.º e 3.º Réus quando colocados perante a situação do falecido I, um homem com 71 anos de idade aquando da ocorrência dos factos, ex-fumador e consumidor crónico de álcool, portador de Hepatite B e que sofria de hipertensão e cancro das vias biliares em estádio avançado.
XXXVII O LXX afirmou ser a realização da cirurgia Whipple por laparoscopia "absolutamente" correcta, tendo como única condicionante a destreza do cirurgião, i.e., "Se o cirurgião for suficientemente destro para poder proceder à cirurgia por abordagem laparoscópica, isso representa, de facto, vantagens, muitas vantagens, sobre vários pontos de vista, para o doente ", já que esta possibilita "menos hemorragia, muito menos traumatismo da parede abdominal, logo, uma recuperação muito mais rápida",
XXXVIII O KXX referiu que "a técnica laparoscópica [...] tem tanto mais indicação quanto piores são as condições do doente", sendo que, "neste caso particular de um fumador, com problemas respiratórios, que são os problemas maiores que se põem para a anestesia, para mais numa cirurgia que se prevê prolongada, um doente com hipertensão, um doente com várias patologias associadas, [...] a abordagem laparoscópica está indicada".
XXXIX O entendimento do Tribunal a quo é que a morte do paciente foi consequência directa da segunda e terceira intervenções laparoscópicas, pois que "a realização da segunda [e da terceira] laparoscopia depois de o paciente ter sofrido uma queda violenta da pressão arterial e um choque hemorrágico é opção menos razoável para tratamento de sangramento na cirurgia geral" - mesmo admitindo que ambas estas intervenções foram "bem-sucedidas".
XL Uma vez realizada a primeira intervenção cirúrgica por via laparoscópica, a escolha da mesma via para as duas seguintes, realizadas com vista a estancar duas hemorragias activas em locais e momentos distintos, foi a indicada, já que, nas palavras do LXX, "um cirurgião que está ao nível de fazer uma intervenção de Whipple, não é por uma hemorragia que vai desperdiçar a preciosidade e a vantagem enorme da abordagem laparoscópica para tentar controlar a hemorragia, a não ser que, depois de, com a mesma abordagem, [...] se revele impossível controlar por laparoscopia",
XLI Sendo apenas neste caso, que não ocorreu em concreto durante as operações ao paciente, de se revelar impossível controlar a hemorragia que o cirurgião deve tomar a decisão de converter a laparoscopia em laparotomia, "porque, senão, estamos a desperdiçar toda a vantagem da abordagem laparoscópica. É um bocado ridículo".
XLII O LXX declarou ainda, confrontado com a alegação de que a utilização desta técnica seria completamente contra-indicada atenta a situação de I após a segunda laparoscopia e de que os cirurgiões deveriam ter antes optado pela laparotomia, que, "se um doente está mal [...] para sofrer uma laparoscopia exploradora, com uma laparotomia exploradora provavelmente ficaria bem pior [...]. Se for possível resolver qualquer situação cirúrgica por laparoscopia, o benefício para o doente é óptimo, é enorme".
XLIII Também a Dra. OXX (OXX), presente durante as intervenções na qualidade de médica anestesista, apoiou a decisão dos Réus, revelando que, tal como os restantes presentes no bloco operatório, acompanhou a realização das laparoscopias através dos monitores e não sentiu a necessidade de intervir, afirmando: "daquilo que eu observei, o médico fez bem".
XLIV Face à situação clínica altamente instável do paciente, que sofreu dois choques hemorrágicos e quebras de tensão arterial abruptas num curto espaço de tempo, o estancamento, tanto da primeira hemorragia como da segunda, por laparoscopia é adequado, na medida em que a laparotomia, ao ser muito mais agressiva e invasiva, poderia, em última análise, agravar ainda mais essa situação clínica.
XLV Relativamente a possibilidade de exercer pressão directa sobre o local de sangramento, o LXX afirmou, de forma categórica, ser "absolutamente" possível estancar uma hemorragia por via laparoscópica e considerou não ser o exercício de pressão directa sobre o local de sangramento "uma estratégia correcta para controlar uma hemorragia", uma vez que, "se identificamos a forma da hemorragia, e isso foi, já por si, causa de reintervenção, temos que resolver o problema de uma forma mais eficaz, não nos vamos limitar a comprimir".
XLVI O KXX garantiu que a ideia de conter a hemorragia decorrente da recessão da veia esplénica pelo próprio cirurgião, durante uma laparotomia, mediante a aplicação de pressão sobre a ferida com as suas próprias mãos, "não faz sentido nenhum. [...] Essa ideia da compressa e das mãos é uma ideia que vem do damage control, que é uma coisa que há que é, quando há uma lesão [...] em que de facto se faz o packing para parar hemorragias que não se conseguem parar, não é aplicável neste caso",
XLVII E a Dra. OXX (OXX) confirmou o sucesso de ambas as intervenções no estancamento das hemorragias: "quando [as laparoscopias foram concluídas], a tensão estava normal e os sinais vitais também estavam normais, estavam dentro dos parâmetros, e, durante a operação, apesar de ter havido hemorragia, esse problema foi resolvido [...]. Por isso, entendo que essas duas operações foram realizadas com sucesso ".
XLVIII A escolha do tipo de abordagem a utilizar foi a correcta e as três cirurgias por via laparoscópica efectuadas no paciente foram, nas palavras do MM. Juiz do Tribunal a quo, "bem-sucedidas", tanto no tratamento da patologia sofrida por I, cancro das vias biliares, como no estancamento das subsequentes hemorragias,
XLIX O que significa que esse Tribunal formulou um juízo errado ao escrever: "concluímos que na situação concreta deveria ter sido utilizada a abordagem de laparotomia, por ser mais adequada e com o melhor efeito terapêutico no tratamento da hemorragia da vítima ocorrida após a primeira operação, na segunda e terceira cirurgias. E [...] também está provado que a consequência lesiva e mortal da vítima foi justamente provocada pela execução seguida das cirurgias do mesmo género num curto espaço de tempo ".
L Assim como formulou um juízo errado ao concluir que "o respectivo nexo de causalidade, ao que parece, se deve considerar verificado, para além de sê-lo em relação à sucessão temporal das cirurgias, como também à inadequação das cirurgias escolhidas."
LI A Recorrente não aceita que o Tribunal a quo conclua existir um nexo de causalidade entre a morte do paciente e a realização sucessiva de três laparoscopias, pois que esse facto coincide também, espácio-temporalmente, com a realização de três laparoscopias "bem-sucedidas" e com a morte do paciente apenas vinte dias depois das mesmas, período durante o qual recuperou a consciência total e apresentou sinais vitais estáveis.
LII Como referiu a Dra. PXX (PXX), "quanto aos sinais vitais, nos primeiros dias eram normais e podemos dizer que [...], depois da operação, [...] entrou na fase de recuperação, logo nos primeiros dias", considerando a "situação estável" do paciente como indicativa do "sucesso" das intervenções.
LIII Durante esses primeiros dias de internamento na Unidade de Cuidados Intensivos, o paciente "não piorou [ ... ], foi uma situação normal de uma pessoa submetida a operação".
LIV Colocado perante a mesma questão, o KXX afirmou na audiência de julgamento, que, "havendo uma décalage no tempo de vinte dias desde a última operação até que o doente morreu, há uma coisa que eu devo deduzir: é que, pelo menos, uma hemorragia relacionada com o acto cirúrgico não foi [a causa de morte]".
LV Actualmente, não existe cura para o cancro das vias biliares, carcinoma especialmente agressivo, e, perante a gravidade do diagnóstico, aquela testemunha referiu que "o facto de se tirar o tumor não significa que se tenha curado a doença", que vai continuar a evoluir após o procedimento Whipple.
LVI As complicações que levaram à morte de I em 10 de Janeiro de 2012 são "uma evolução natural da doença" e, decorrendo vinte dias entre o fim da cirurgia e a morte do doente, "não me parece a mim aceitável que se atribua a causa de morte - mesmo que tenha sido por hemorragia - a um problema do acto cirúrgico em si.", afirmou a mesma testemunha,
LVII Salientando ainda que "não há uma causa directa entre" a hemorragia verificada após a primeira cirurgia e aquela que terá levado à morte do paciente, porque é "impossível" que a essa hemorragia tenha continuado durante os vinte dias seguintes.
LVIII Merece especial censura a opção tomada pelo Tribunal a quo na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, na medida em que não se compreende, nem aceita, que aquele Tribunal possa ter formado a sua convicção exclusivamente no parecer verbal emitido pelo Dr. EXX (EXX), médico de Hong Kong ouvido no âmbito do processo que correu termos no Centro de Avaliação das Queixas relativas a Actividades de Prestação de Cuidados de Saúde, em detrimento de toda a prova pericial e testemunhal que foi produzida nos presentes autos e que impunha, necessariamente, uma decisão contrária àquela que foi tomada.
LIX Quer os peritos, quer as testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento são médicos da mesma especialidade dos Réus e possuem comprovada experiência e reputação entre os seus pares, exercendo todos sua actividade em Macau, ao contrário do que sucede com o Dr. EXX (EXX), encontrando-se, por isso, necessariamente mais habilitados para se pronunciarem sobre a questão sub judice.
LX Relativamente à questão fulcral dos autos - a de se saber se o recurso à técnica laparoscópica para a realização da segunda e terceiras cirurgias foi correcto - da fundamentação dada pelo Tribunal recorrido no Acórdão sobre a matéria de facto, a fls. 2837 e 2838, resulta claro que existiu crasso erro na apreciação da prova.
LXI Em primeiro lugar, o Tribunal a quo reconhece que os médicos de Macau, incluindo os três peritos e as testemunhas ouvidas, partilham a opinião de que a técnica laparoscópica para as segunda e terceiras cirurgias foi uma opção correcta, apenas não se contentando com o fundamento e as explicações oferecidos pelos peritos, que, na opinião daquele Colectivo, não foram "profundas".
LXII Todavia, em resposta ao Quesito 10.º do Relatório Pericial Complementar apresentado pelos peritos, os mesmos afirmaram que as condições clínicas do paciente mostraram ser adequado proceder à terceira laparoscopia.
LXIII Por outro lado, o Tribunal recorrido diz ter-se baseado na opinião dos médicos de Hong Kong, Dr. QXX, e Dr. EXX (EXX), ao decidir em sentido inverso.
LXIV Porém, a opinião destes dois médicos carece, esta sim, de fundamentos e explicações razoáveis.
LXV O Dr. QXX terá sustentado no seu parecer que a segunda e terceiras cirurgias deviam ter sido realizadas por laparotomia, "de modo de assegurar a hemorragia ser totalmente tratada", mas não referiu, em concreto, porque é que, na sua opinião, a hemorragia seria mais correctamente tratada por laparotomia.
LXVI Talqualmente, o Dr. EXX (EXX) também seria de opinião de que a segunda e terceira cirurgias deviam ter sido realizadas por laparotomia, "achando que [a laparoscopia] seria menos razoável e apta". Mas, analisada a acta do processo do Centro de Avaliação de Queixas onde consta o parecer deste médico, não se vislumbra qualquer justificação para essa sua escolha, em detrimento da opção tomada pelos Réus.
LXVII Existe uma grande diferença entre a opção pela laparoscopia ser "menos razoável e apta", conforme a opinião do Dr. EXX (EXX), e a mesma não ser sequer uma "opção razoável", como acabou por concluir o Tribunal.
LXVIII O Tribunal Administrativo não deveria, em face de toda prova produzida, ter decidido pela condenação da Recorrente, sobretudo quando essa condenação terá por base uma opção dos Réus médicos que, no entendimento daquele Tribunal, era tão só "menos razoável" que a alternativa.
LXIX Ambos os choques hemorrágicos sofridos pelo paciente têm a sua origem em lesões necessárias (recessão da veia esplénica e subsequente cedência do respectivo estancamento) ou incidentais (corte superficial no baço).
LXX Em especial, quanto ao segundo caso, elucidou o LXX: "sempre que pedimos ao doente que assine um termo de consentimento informado para uma cirurgia, uma das explicações que, geralmente, se faz [...], sobretudo quando falamos de cirurgia laparoscópica, é a eventualidade de alguma lesão inadvertida nos órgãos circundantes. E isso não quer dizer incúria ou negligência [...]. É possível a introdução de algum instrumento e haver alguma lesão", hipótese tanto mais provável quando tomado em conta que o baço "é um órgão, de facto, muito friável", ao que acresce o facto de estarmos perante um pequeno arranhão que, além de ser "absolutamente nada de grave só por si", também poderia "com certeza" ter ocorrido durante uma laparotomia.
LXXI Quanto ao motivo que levou à terceira intervenção cirúrgica, o próprio Tribunal a quo concluiu que "o pequeno arranhão superficial do baço («tear of spleen»), sobre o qual foi aplicada cola biológica («bioglue »), foi um resultado da segunda cirurgia de urgência, e não teve consequências directas para a saúde do paciente" (Quesito 59.°).
LXXII Se o procedimento Whipple "implica, necessariamente, a recessão de ramos pancreáticos da veia esplénica, pelo que a recessão desses ramos não é uma lesão, mas um procedimento cirúrgico que tem de ser feito durante uma pancreatoduodenectomia (quer se trate de uma laparoscopia ou de uma laparotomia)" (Quesito 57.°),
LXXIII Se "durante a segunda laparoscopia de urgência foi definitivamente estancada a hemorragia verificada num pequeno ramo da veia esplénica, utilizando o efeito de tampão de compressão e coagulação" (Quesito 58.°),
LXXIV E se "o pequeno arranhão superficial do baço («tear of spleen»), sobre o qual foi aplicado cola biológica («bioglue»), foi um resultado da segunda cirurgia de urgência, e não teve consequências directas para a saúde do paciente" (Quesito 59.°),
LXXV O Tribunal a quo não pode concluir que o 2.° e 3.° Réus, "na escolha do meio de laparoscopia para as segunda e terceira cirurgias, infringiram o legis artis, que, segundo os conhecimentos da medicina ao tempo em que os actos foram praticados, o procedimento a adoptar deveria ter sido a técnica de laparotomia para o tratamento hemostático durante o procedimento de Whipple e não a laparoscopia que foi utilizada no caso vertente ",
LXXVI E que "os dois médicos têm culpa ou mera negligência, na medida em que estes, perante as graves hemorragias que a situação clínica da vítima apresentava na altura, acompanhadas de choque hemorrágico e da queda violenta da pressão arterial na sequência da primeira cirurgia e da segunda, não actuavam com o dever de cuidado na ponderação do meio adequado para suster a hemorragia com uma maior eficácia possível."
LXXVII Tanto mais que o próprio Dr. EXX (EXX), em cujo parecer o Tribunal a quo se apoiou exclusivamente para formular a decisão final, admitiu, confirmando o entendimento avançado pelo LXX e pelo KXX, não só serem as complicações pós-cirúrgicas semelhantes em ambos os tipos de abordagem, laparoscopia ou laparotomia, pois que o procedimento Whipple, devido à sua complexidade, envolve sempre "risco extremo", mas também que a hemorragia, que pode surgir de forma idêntica durante uma laparotomia, é comum após este tipo de cirurgia.
LXXVIII Não deve a Primeira Ré ser condenada no pagamento aos Autores da indemnização no valor de MOP 1,569,301.44 (um milhão, quinhentas e sessenta e nove mil, trezentas e uma patacas e quarenta e quatro avos), acrescidos de juros de mora à taxa legal, porquanto o 2.° e 3.° Réus actuaram sem culpa e em pleno respeito pelas legis artis da sua profissão na escolha da abordagem laparoscópica para a realização da segunda e terceira intervenções cirúrgicas efectuadas ao paciente, que veio a falecer por razão do seu frágil estado de saúde e não da actuação negligente desses Réus.
LXXIX Não se encontram preenchidos os requisitos ínsitos no Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, indispensáveis à efectivação da responsabilidade civil extracontratual pela prática de actos ilícitos por parte dos titulares de órgãos e dos agentes administrativos da Administração da R.A.E.M. e demais pessoas colectivas públicas.
LXXX Foram erradamente aplicados os artigos 2.°,3.° e 7.° do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril e os artigos 480.º (ex vi artigo 4.º do mesmo Decreto-Lei), 489.º e 557.º do Código Civil de Macau,
LXXXI É fulgurante a inexistência de culpa ou mera negligência na actuação do 2.° e 3.° Réus e, consequentemente, de um nexo de causalidade entre a morte do paciente e a realização sucessiva de três laparoscopias que sustente o pedido indemnizatório por danos patrimoniais e não-patrimoniais efectuado pelos Autores.
   Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogarem Vossas Excelências a Sentença recorrida, emitindo Acórdão que absolva a 1.º Ré dos pedidos apresentados pelos Autores,
   Assim realizando Vossas Excelências, uma vez mais, a boa e sã Justiça!

Notificados das alegações do recurso interposto pelo Réu Saúde, os demandantes responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência – cf. 2966 e s.s. dos p. autos.

Subidos os autos a esta Instância, foi no despacho da admissão do recurso proferido pelo Relator determinada a abertura da vista ao Ministério Público.

Em sede da vista, o Ilustre Procurador-Adjunto emitiu o seu douto parecer a fls. 2985 e s.s. dos p. autos.

Após a vista ao Ministério Público e antes do início dos vistos aos Juízes Adjuntos deste Colectivo, pelo Recorrente foi requerida a junção aos autos de uma cópia de um Acórdão absolutório proferido pelo TJB no âmbito do processo penal comum registado sob o nº CR1-17-0128-PCC.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

III

Do incidente da junção do documento

Com vista a reforçar a posição por ele defendida, o Recorrente Saúde juntou a cópia de um Acórdão absolutório proferido pelo TJB no âmbito do processo penal comum registado sob o nº CR1-17-0128-PCC.

A junção do documento foi requerida após a vista ao Ministério Público e antes do início dos vistos aos Juízes Adjuntos deste Colectivo.

Portanto, há que averiguar se é admissível a junção tardia do documento.

Reza o artº 616º/1 do CPC que:
1. As partes podem juntar documentos às alegações nos casos a que se refere o artigo 451.º ou no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
2. Os documentos supervenientes podem ser juntos até se iniciarem os vistos aos juízes; até esse momento podem ser também juntos os pareceres de advogados, jurisconsultos ou técnicos.
3. É aplicável à junção de documentos e pareceres, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 467.º e 468.º
Na primeira instância, a apresentação da prova por documentos rege-se pelas regras gerais consagradas no artº 450º do CPC, que reza:
(Momento da apresentação)
1. Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2. Se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
Em situações excepcionais, as partes são autorizadas a juntar documentos após os articulados ou mesmo após o encerramento da discussão em primeira instância.

São as situações previstas no artº 451º do CPC que preceitua:
(Apresentação em momento posterior)
1. Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
2. Os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo.
In casu, tratando-se da cópia de um Acórdão proferido em 21FEV2020, é um documento superveniente – artº 451º/1 do CPC.

Tendo sido requerida após a vista ao Ministério Público e antes do início dos vistos aos Juízes Adjuntos deste Colectivo, a junção do documento é tempestiva face ao disposto no artº 616º/2 do CPC.

Sendo legal e tempestivo, admitimos o documento.

Decidido o incidente da junção dos documentos, passemos então à apreciação dos recursos.

IV

Do recurso interlocutório

A acção foi intentada contra Saúde, G e H.

Pela sentença final, foi apenas condenado o 1º Réu Saúde, tendo sido absolvidos da instância os Réus G e H com fundamento na ilegitimidade passiva.

Não tendo sido objecto do recurso essa decisão, inserida na sentença final, que determinou a absolvição dos 2º e 3º Réus, nem estes Réus foram convertidos em intervenientes acessórios, nenhum interesse eles têm em ver apreciado o recuso interlocutório, por eles interposto, que tem por objecto a decisão que indeferiu a junção de provas documentais requerida pelos mesmos, com vista a questionar o valor de uma prova apresentada pelos Autores.

Pelo que não é de conhecer o recurso interlocutório interposto pelos Réus G e H, entretanto absolvidos.

V

Do recurso da sentença final

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi dos artºs 1º e 149º/1 do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

De acordo com o vertido nas conclusões tecidas na petição do recurso, o Réu Saúde, ora recorrente, começou por questionar a bondade das respostas dadas aos quesitos 2º (relacionado com o 16º), 10º, 19º, 20º e 26º da base instrutória e das respostas negativas aos quesitos 23º e 71º da base instrutória, e depois pretendem, na hipótese do êxito da alteração da matéria de facto nos termos requeridos, rogar a revogação da decisão de direito da 1ª instância e em substituição a consequente absolvição dos pedidos.

E na eventualidade do inêxito da impugnação da matéria de facto, defende que a matéria de facto assente foi mal interpretada na sentença recorrida, uma vez que, na sua óptica, a factualidade provada não permite estabelecer o nexo de causalidade entre a opção pela laparoscopia e o falecimento do doente.

Então comecemos pela apreciação da impugnação da matéria de facto.

1. Impugnação da matéria de facto

Na petição inicial, os Autores apoiaram-se em vários fundamentos, nomeadamente a falta da formação e da experiência dos médicos para levar a cabo da operação Whipple com laparoscopia, a falta do consentimento livre e consciente por parte do doente ou dos seus familiares para as operações, o incumprimento do dever de informação sobre os riscos inerentes às operações, a violação dos deveres de cuidado impostos pela legis artis na opção pelo procedimento de Whipple com laparoscopia e na execução dos actos médicos.

Após o julgamento, o Tribunal a quo fundou a condenação do 1º Réu Saúde apenas na violação da legis artis pelos médicos do CHCSJ, G e H, nas segunda e terceira operações cirúrgicas atenta a situação clínica do doente, consistente no facto de os dois médicos terem recorrido à laparoscopia, que não é uma opção mais razoável para o tratamento hemostático no caso grave, em detrimento da tradicional laparotomia, julgada pelo Colectivo como a técnica no caso concreto mais adequada e com o melhor efeito terapêutico no tratamento da hemorragia do doente ocorrida após a primeira operação cirúrgica.

Na impugnação da matéria de facto, o Recorrente reagiu contra a matéria provada vertida nas respostas aos quesitos 2º, 10º, 16º, 19º, 20º, 26º da base instrutória e as respostas negativas dadas aos quesitos 23º e 71º da mesma base instrutória.

A matéria de facto provada que o Recorrente pretende impugnar é o seguinte:
* Antes das cirurgias o paciente tinha uma condição física favorável, os sinais vitais dele estavam estáveis e não havia doenças secundárias (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
* A terceira laparoscopia não é uma técnica mais adequada atenta a situação clínica do doente (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
* Antes das intervenções cirúrgicas o falecido tinha uma condição física favorável (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
* O 2.º R., que dirigiu a cirurgia, tinha formação em cirurgia laparoscópica mas não tinha experiência neste procedimento médico e o 3.º R. tinha formação em cirurgia geral (resposta ao quesito 19º da base instrutória).
* Em nenhuma das cirurgias realizadas ao paciente esteve presente um médico experiente na realização de laparoscopias (resposta ao quesito 20º da base instrutória).
* A realização da segunda laparoscopia depois de o paciente ter sofrido uma queda violenta da pressão arterial e um choque hemorrágico é opção menos razoável para tratamento de sangramento na cirurgia geral (resposta ao quesito 26º da base instrutória).

Ao passo que a matéria dos quesitos 23º e 71º tem o seguinte teor:

23º
A laparotomia (ou celiotomia) terapêutica é uma manobra ou técnica cirúrgica mais simples, menos invasiva e que permite os mesmos objectivos e resultados?

71º
Seja qual for a abordagem – laparoscópia ou laparotómica – a técnica cirúrgica é exactamente a mesma, ou seja, o procedimento Whipple ou Duodenopancreatectomia Cefálica é o mesmo?

Dando uma vista de olhos às respostas afirmativas aos quesitos 2º, 10º, 16º, 19º, 20º, 26º e ao teor dos quesitos 23º e 71º, é logo de verificar que nem todo o teor da matéria ai questionada pelo Recorrente se mostra pertinente à boa apreciação e à boa decisão quanto à bondade da decisão de direito recorrida, que se alicerçou apena na matéria fáctica que se prende com a adequação e a razoabilidade da opção para o tratamento hemostático no caso grave feita pelos médicos pela técnica de operação por via da laparoscopia nas segunda e terceira operações, a que recorreu o Tribunal a quo para fundamentar a condenação do ora Recorrente.

Assim, só nos vamos debruçar sobre a impugnação da matéria fáctica pertinente à questão colocada pelo Recorrente, isto é, a matéria relacionada com a opção pela laparoscopia em vez de laparotomia.

Ou seja, não iremos analisar a bondade das respostas afirmativas dadas aos quesitos 2º, 16º, 19º e 20º.

Por isso, estão em causa apenas a seguinte matéria assente:
* A terceira laparoscopia não é uma técnica mais adequada atenta a situação clínica do doente (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
* A realização da segunda laparoscopia depois de o paciente ter sofrido uma queda violenta da pressão arterial e um choque hemorrágico é opção menos razoável para tratamento de sangramento na cirurgia geral (resposta ao quesito 26º da base instrutória).

E as respostas negativas dadas aos quesitos 23º e 71º da base instrutória.

Em relação à matéria assente, saltam à vista duas expressões valorativas e conclusivas, quais são “não é uma técnica mais adequada” e “é opção menos razoável” que, em regra, pelos seus caracteres conclusivos, não podem ser objecto de prova.

O que nos coloca perante uma questão, prévia à reapreciação da matéria de facto, de saber se se pode admitir as tais expressões, algo conclusivas ou de direito, face ao disposto no artº 549º/4, primeira parte, do CPC, que reza: têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito.

Então vejamos.

Como se sabe, ao redigirem os articulados, não poucas vezes, as partes utilizam expressões contendo elementos normativos ou juízos meramente valorativos e conclusivos.

A mesma situação pode suceder com o Tribunal, quando chamado para fixar e redigir a matéria de facto assente.

Assim, tanto o Tribunal como as partes, devem distinguir bem a matéria de facto da de direito.

Na formulação de Alberto dos Reis, é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior…… Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens – in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 206-207, e 209.

Todavia, há que reconhecer uma realidade: hoje em dia, muitas expressões originariamente utilizadas na doutrina jurídica ou na lei como elementos normativos já entraram na terminologia largamente usada na nossa comunicação quotidiana, tais como escritura pública, estado civil de solteiro ou casado, cheques, livrança, arrendamento, posse, detenção, compra e venda, adopção, casamento.

Assim, não é raro que aceitamos habilmente, senão toleramos a existência de tais expressões como parte integrante do thema probandum, de modo a permitir que o teor dessas expressões possa ser directamente demonstrado ou inferido da mensagem extraída dos meios de prova produzidos ou valorados.

Todavia, nem sempre isso é aceitável e tolerável.

Na verdade, pelo contexto em que são inseridas, essas expressões podem não ser tidas como meramente fácticas, isso acontece, por exemplo, quando se discuta se estamos perante uma escritura pública, um cheque, uma livrança, um arrendamento, a posse ou a detenção de uma coisa, um contrato de compra e venda, um acto jurídico de adopção, um laço matrimonial, cujas validade e existência jurídica constituem em si juízos valorativos e conclusivos, insusceptíveis de ser objecto da simples prova.

Assim sendo, consoante a questão jurídica a discutir e a matéria controvertida tal como configuradas pelas partes nos seus articulados, o Juiz que se encarrega de elaborar o saneador ou redigir respostas a quesitos da base instrutória deve ter muito cuidado na selecção da matéria para o questionário e na redacção de respostas, especialmente na qualificação de expressões utilizadas pelas partes como matéria susceptível ou não de constituir objecto da prova.

É uma tarefa difícil, pois nem sempre é fácil a qualificação de uma expressão como matéria de facto ou como matéria de direito.

Esta tarefa do Juiz torna-se particularmente difícil quando se socorrer da prova pericial, na medida em que o teor da prova pericial consiste, não poucas vezes, em opiniões ou entendimentos valorativos e conclusivos emitidos pelo perito.

E mais difícil se torna a tal tarefa quando o relatório pericial misturar a matéria de facto, susceptível da percepção pela generalidade das pessoas leigas, com a matéria cuja percepção pressupõe conhecimentos técnicos e científicos, ou utilizar abundantes expressões valorativas ou conclusivas, destituídas do suporte de factos materiais.

Para nós, se o juízo intrínseco à prova pericial se situa no domínio da matéria cuja percepção e apreciação requerem conhecimentos técnico e científico que normalmente os julgadores não dominam, temos de aplicar habilmente o disposto no citado artº 549º/4, primeira parte, do CPC, à luz do qual se têm por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito, por forma a aceitar a existência das expressões algo conclusivas e valorativas, desde que não absolutamente destituídas do suporte fáctico.

Então urge saber se a matéria, algo conclusiva, das respostas aso quesitos 10º e 26º tem o mínimo de suporte fáctico.

É verdade que não encontramos na matéria assente factos susceptíveis de sustentar as tais expressões.

Todavia, cremos que da instrução resulta a abundância dos factos instrumentais que sustentam as mesmas expressões conclusivas.

Importa saber se o Tribunal pode recorrer a estes factos instrumentais para dar como provada a factualidade contendo expressões algo conclusivas?

Cremos que a resposta deve ser positiva.

É verdade que vigora no nosso processo civil o princípio dispositivo, por força do qual às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções, e o Tribunal só pode, em princípio, servir-se dos factos articulados pelas partes – artºs 5º/1 e 2, primeira parte, e 389º/1-c) do CPC.

O que significa que tradicionalmente o Tribunal civil se contenta em regra com a verdade formal.

No entanto, com a entrada em vigor do CPC de 1999, essa tradição sofre algumas alterações, embora ligeiras, pois o novo código tornou os nossos tribunais mais activos na procura da verdade com vista à boa decisão da causa e à justiça material.

De entre essas ligeiras alterações, podemos destacar o estatuído no artº 5º/2, in fine, do CPC, à luz do qual “o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 434.º e 568.º e da consideração oficiosa dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.” (subl. nosso).

O que significa que, não obstante a predominância do princípio dispositivo na matéria de ónus de alegar e de provar, os factos instrumentais com relevância à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, mesmo não articulados nem feitos constar da matéria de facto assente, se resultantes da instrução e discussão da causa, podem e devem ser tidos em conta ex oficio pelo Tribunal na fundamentação da decisão de direito.

Voltamos ao caso em apreço.

Não obstante o núcleo essencial em discussão no plano jurídico é justamente saber se é uma opção correcta a técnica da laparoscopia utilizada para levar a cabo a segunda e a terceira operações, o certo é que as expressões “uma técnica mais adequada” e “opção menos razoável” se encontram suficientemente suportadas pelos factos instrumentais descritos e explicados com os raciocínios lógicos e científicos pelo médico especialista de Hong KongEXX醫生, quando ouvido na qualidade de perito do Exterior na audiência realizada pelo Centro de Avaliação das Queixas Relativas a Actividades de Prestação de Cuidados de Saúde, na sessão datada de 19JUL2012, cuja acta se encontra junta aos autos a fls. 2703 a 2712 dos p. autos e valorada pelo Colectivo para a formação da sua convicção para a fixação de matéria de facto.

Pois, conforme documentado na acta daquela sessão, foi declarado pelo mesmo perito que:
第一次手術後出現了出血,並不是一個太大的問題,這是外科常見的手術併發症之一。對於術後出血的處理方式,應採用以病人安全為先的治療方式最為恰當。處理嚴重出血併發症,很少會選擇用腹腔鏡的方式處理,可以先使用腹腔鏡觀察腹腔內的情況,如無法看清腹腔情況,會轉用開腹的手術方式處理出血。
……
施術者用了很多時間處理脾靜脈出血,第二次手術時見腹腔有2300ml血液和血塊,如本人是施術者,會直接在原5cm的傷口處擴大多2-3cm,採用腹腔填塞的方法止血,小心處理。再者,第二次手術至第三次手術間隔了3小時,均是因為出血而需要手術,第三次手術見右側游離位置的結腸旁溝、橫隔下、肝下膽囊窝和腎周筋膜有出血,這些位置的出血肯定是有原因的。第三次手術中使用了多支NOVO 7,但止血效果仍不顯,應採用腹腔填塞的方法止血,給予輸血,待出血情況穩定後再作其他處理。
患者除了出血外,不代表沒有其他問題存在。個人認為,個案的第一次手術採用腹腔鏡做手術是可以的,但第二次和第三次手術如採用開腹手術會更加合理、穩妥,處理嚴重出血併發症,很少會選擇用腹腔鏡的方式。

Na verdade, ai foram relatados bastantes factos instrumentais susceptíveis de sustentar os factos essenciais contendo expressões algo conclusivas, constantes das respostas aos quesitos 10º e 26º da base instrutória.

Assim sendo, devem ser mantidas por serem legais e válidas, as respostas dadas ao quesitos 10º e 25º.

Então passemos ver se foram mal julgados os tais quesitos.

Ora, se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.

Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
O Recorrente identificou a matéria que considerava incorrectamente julgada.

Os meios probatórios que, na óptica do Recorrente, impunham decisão diversa são os depoimentos de algumas das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento.

No caso dos autos, houve gravação dos depoimentos.

Pelo Recorrente for indicada e transcrita as passagens da gravação dos depoimentos que entendeu mal valorados pelo Tribunal a quo.

Todavia, por razões que passemos a expor infra, este Tribunal de recurso não é permitido pela lei processual a proceder à reapreciação das tais provas nos termos requeridos.

Como se sabe, na matéria da valoração das provas, documental e testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação da prova, à luz do qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

Mesmo tidos como de carácter técnico-científico por terem sido prestados por médicos, os tais depoimentos deverão ser igualmente valorados de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.

Pois, ao contrário do que sucede no processo penal, onde o juízo técnico, científico e artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador – artº 149º/1 do CPP, inexiste, no processo civil e nos contenciosos administrativos, idêntica norma que predetermina a superioridade da força probatória da perícia, em relação às outras provas.

Em relação à matéria em causa, o Colectivo da 1ª instância fundamentou a sua convicção nos termos seguintes:
  Sobre o pancreatoduodenectomia ou procedimento de Whipple, nomeadamente o modo da sua execução, as vantagens e desvantagens de cada um, o seu efeito terapéutico, as experiências dos 2° e 3° Réus na laparoscopia, baseado no parecer dos peritos médico e no depoimento quase unânime das testemunhas médicas entendemos suficientes para ter como provados os factos dos quesitos 19º, 46º, 47º, 57º, 69º, 70º, e não se deram como provados os factos do quesito 23º, 24º, 52º e 72º.
  No entanto, no que tocante à questão se a técnica cirúrgica exigida para a laparoscopia e laparotomia é mesma, os médicos provindos das regiões diferentes têm opiniões divergentes, a maioria dos médicos locais e o Dr. RXX, medico-especialista de Cantão, deram conta de que as duas abordagens exigem as técnicas idênticas, o medico que domina a técnica das operações laparoscópicas e com experiência no procedimento Whipple por laparotomia já tem capacidade para desencadear o Whipple. Nas opiniões das medicos especialistas da Hong Kong nessa área, os Dr. EXX e Dr. QXX sustentam que, para além dos dois requisitos referidos, o Whipple por via laparoscópica exige uma técnica mais avançada. Salienta o Dr. EXX que para além do cirurgião principal, para o desencadeamento do Whipple por via laparoscópica, é necessário um grupo de cirurgia (equipa de profissionais) que funciona em boa colaboração e cooperação, tendo em conta a alta complexidade desse tipo de procedimento, por essa razão, exige-se sempre técnica mais aperfeiçoada, em comparação com o Whipple por laparotomia, deverá a operação ser dirigida pelo medico já adquirida experiência na execução da Whipple com laparoscopia ou sob fiscalização do medico com experiência na cirurgia. Opinião essa que, se coincide, de certo modo, com o depoimento do Dr. MXX, cirurgião do hospital Kwiang Wu. Essa testemunha, no seu depoimento, disse que o hospital Kwinag Wu só desencadeou o procedimento Whipple por via laparoscópica nos ultimos anos, depois de ter adquirido experiência suficiente na laporoscopia e, antes de iniciar a primeira Whipple com laparoscopia no seu hospital, precisa de ter uma preparação rigorosa, para além de o medico que dirige a operação ter de estar habilitado, precisa dum grupo de cirurgia bem colaborado e preparado, assim como convidou o medico com experiência já no Whipple-laparoscopia para executar, em colaboração com os medicos locais, a primeira cirurgia dessa natureza. Segundo as experiências desses especialistas, o procedimento de Whipple é uma das cirurgias mais complexa na cirurgia geral, e, em regra, um cirurgião inicia a sua abordagem no Whipple pela via laporotómica, só após ter adquirido a experiência bastante nesse procedimento, e depois de ter adquirido também a experiência na laparoscopia é que estará apto a começar a primeira abordagem ao Whipple com laparoscopia, mas mesmo assim, a sua realização deverá ser orientada ou fiscalizada por cirurgião principal com experiência na Whipple laporoscópia, ou seja, esta é considerada e tratada como uma fase avançada no procedimento Whipple no campo de cirurgia geral. Nestes termos, convencemos que a sua realização deverá ser dirigida pelo medico com experiência, ou ser feita sob orientação da médico experiência, por conseguinte, deu-se como provado o facto do quesito 18°, e não se deu como provado o facto do quesito 71°.
  ……
  Outro ponto de divergência entre as opiniões dos medicos-especialista locais, da China e da Hong Kong sobre o caso em apreciação reside ainda em saber se a segunda e terceira cirurgias, destinadas ao tratamento hemostático deviam ser executadas por laparotomia ou laparoscopia, no parecer feito pelos peritos-médicos nomeados no presente processo, os peritos Dr. NXX, SXX e TX deram parecer positivo sobre cirurgia laparoscópica, todavia, a resposta não foi acompanhado com fundamento ou explicações profundas. Noutro exame pericial realizado pelo médico-especialista de Hong Kong--Dr. QXX, no âmbito do processo criminal sobre o mesmo caso, deu parecer em sentido contrário, sustentando que tanta a 2ª como a 3a cirurgia devia ser realizada pela laparotomia, de modo de assegurar a hemorragia ser totalmente tratado. Noutro parecer técnico, realizado no âmbito da queixa apresentada pelos familiares do paciente junto do centro de avaliação da actividade médica junto dos Serviços de Saúde, constante de fls. 51 a 59, concluiu que seria mais razoável a opção pela laparotomia para as 2ª e 3a cirurgias para tratamento hernostático, embora os médicos membros do centro de avaliação não tenham experiência no procedimento Whipple com laparoscopia, o parecer foi emitido com apoio do médico especialista, Dr. EXX, quem tem imensas experiências tanto no procedimento Whipple com laparotomia e laparoscopia em Hong Kong, ele opinou que, por cautela de assegurar a vida dos pacientes, no tratamento hemostático do caso grave, em regra, é optar pela intervenção laparotómica em vez de laparoscópica, achando que seria menos razoável e apta, na perspectiva da tutela dos interesses do paciente, no caso em apreço, que a 2a e 3a cirurgias fossem realizadas pela via laparoscópica. Por estes dois médicos especialistas emitirem opiniões com explicações motivadas e fundadas, julgamos que esse parecer é mais convincente. Assim, concluímos que não é opção razoável a intervenção pela laparoscopia nas 2a e 3a cirurgias. Nestes termos, deram-se por provados os factos dos 10º e 26º nos termos respondidos.

Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e a motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concede a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento.

Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresente coerente em si ou que se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, não é em princípio sindicável.

Segundo o ensinamento de Amâncio Ferreria, a admissibilidade dos meios de impugnação, incluindo o recurso ordinário, funda-se na falibilidade humana e na possibilidade de erro por parte dos juízes.

O recurso ordinário visa atacar a decisão judicial por ser errada ou injusta.

A decisão é errada ou por padecer de error in procedendo, quando se infringe qualquer norma processual disciplinadora dos diversos actos processuais que integram o procedimento, ou de error in iudicando, quando se viola uma norma de direito substantivo ou um critério de julgamento, nomeadamente quando se escolhe indevidamente a norma aplicável ou se procede à interpretação e à aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado.

A decisão é injusta quando resulta duma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes, da referência inexacta dos factos ao direito e sempre que o julgador, no âmbito do mérito do julgamento, utiliza abusivamente os poderes discricionários, mais ou menos amplos. – in Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª ed. pág. 69 e s.s.

Ou seja, o recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada.

Na esteira dessa doutrina autorizada sobre a função do recurso ordinário no processo civil, para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.

Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente.

Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.

Portanto, para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica.

Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.

In casu, nada disso foi alegado.

O que fez o Recorrente não é mais do que valorar, ele próprio as provas em causa, e formar a sua convicção, diversa da formada pelo Colectivo a quo, sem que tenha sido apontado o erro manifesto na apreciação da prova.

Nestas circunstâncias, nada temos para legitimar este Tribunal de recurso para sindicar a decisão de facto de primeira instância, alicerçada sobre a convicção exaustivamente fundamentada do Colectivo, conforme se vê supra.

Improcede a impugnação da matéria de facto no que diz respeito às respostas dadas aos quesitos 10º e 26º, e às respostas negativas dadas aos quesitos 23º e 71º.

Dado o inêxito de impugnação da matéria de facto, não obstante o seu valor da presunção legal juris tantum, nos termos prescritos no artº 579º/1 do CP, da inexistência dos factos integrantes da prática em co-autoria de um crime de homicídio negligente pelos médicos G e H, a decisão penal absolutória incorporada no documento que se juntou em sede do presente recurso não tem qualquer eficácia para afastar os factos dados por provados pelo Tribunal a quo, mediante o exame e a produção das provas na primeira instância, ora confirmados por nós.

Assim, beneficiando o documento entretanto junto em sede do presente recurso a fls. 2988 e s.s. da presunção juris tantum, nenhuma eficácia tem para influir na nossa decisão supra quanto à impugnação da matéria de facto.

2. Nexo de causalidade entre a opção pela laparoscopia e a morte do doente.

Arrumada a questão suscitada sobre a bondade da decisão de facto, passemos a ver se tem razão o recorrente ao dizer que a matéria de facto assente não pode ser interpretada no sentido de que se afirma a existência do nexo de causalidade entre a opção pela laparoscopia em detrimento da laparotomia e o falecimento do doente.

A propósito desse nexo de causalidade, o Tribunal a quo entende que:
  Recapitulando o que foi dito atrás, os médicos G e H na escolha do meio de laparoscopia para as segunda e terceira cirurgias, infringiram o legis artis, que segundo os conhecimentos da medicina ao tempo em que os actos foram praticados, o procedimento a adoptar deveria ter sido a técnica de laparotomia para o tratamento hemostáctico durante procedimento de Whipple e não a laparoscopia que foi utilizada no caso vertente.
   Para além disso, os dois médicos têm culpa ou mera negligência, na medida em que estes, perante as graves hemorragias que a situação clínica da vítima apresentava na altura, acompanhadas de choque hemorrágico e da queda violenta da pressão arterial na sequência da primeira cirurgia e da segunda, não actuavam com o dever de cuidado na ponderação do meio adequado para suster a hemorragia com uma maior eficácia possível.
  E o cumprimento deste dever de cuidado é-lhes exigível atentas as circunstâncias do caso concreto e segundo a medida do seu poder individual.
  Por último, tem-se por verificado o nexo de causalidade adequado, isto é, da sua actuação ilícita e negligente resultaram as consequências lesiva e mortal para a vítima falecida, assim como os danos daí derivados e suportados pela própria vítima e pelos seus familiares.

Por sua vez, o Recorrente não aceitou que o Tribunal a quo conclua existir um nexo de causalidade entre a morte do paciente e a realização sucessiva de três laparoscopias, pois que esse facto coincide também, espácio-temporalmente, com a realização de três laparoscopias "bem-sucedidas" e com a morte do paciente apenas vinte dias depois das mesmas, período durante o qual recuperou a consciência total e apresentou sinais vitais estáveis.

A tese do Recorrente é essencialmente apoiada no depoimento do médico KXX, que declara: havendo uma décalage no tempo de vinte dias desde a última operação até que o doente morreu, há uma coisa que eu devo deduzir: é que, pelo menos, uma hemorragia relacionada com o acto cirúrgico não foi a causa de morte,…… As complicações que levaram à morte de I em 10 de Janeiro de 2012 são uma evolução natural da doença e, decorrendo vinte dias entre o fim da cirurgia e a morte do doente, não me parece a mim aceitável que se atribua a causa de morte - mesmo que tenha sido por hemorragia - a um problema do acto cirúrgico em si.

Ora, ficou provada e não foi impugnada ou impugnada sem êxito a seguinte matéria:
Durante a segunda cirurgia o paciente perdeu 2,5 litros de sangue e recebeu nova transfusão (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
Pouco depois da segunda cirurgia o paciente sofreu uma queda violenta da pressão arterial e novo choque hemorrágico (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
……
Apesar de alguns tratamentos de drenagem realizados, a condição do paciente foi piorando inexorável e progressivamente, tendo sobrevindo um choque circulatório infeccioso e a síndroma de disfunção múltipla dos órgãos, nomeadamente insuficiências agudas respiratória e renal (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
……
As três laparoscopias seguidas, os choques hemorrágicos, o vazamento do pâncreas, a hemorragia contínua no abdómen durante e depois das cirurgias e a situação de stress do doente determinaram uma baixa imunidade do organismo do paciente que provocou a agravação das inflamações secundárias e determinaram a agravação da doença, provocando um choque inflamatório e a síndroma de disfunção múltipla de órgãos, com insuficiência respiratória aguda e insuficiência renal aguda (resposta ao quesito 17º da base instrutória).
……
A realização da segunda laparoscopia depois de o paciente ter sofrido uma queda violenta da pressão arterial e um choque hemorrágico é opção menos razoável para tratamento de sangramento na cirurgia geral (resposta ao quesito 26º da base instrutória).
……
Durante a terceira cirurgia não foi verificado um foco de hemorragia activa, mas uma “active oozing at liver capsule (S6) and retroperitoneal space” (perirenal fáscia), ou seja, hemorragia não activa na cápsula do fígado e na zona retroperitoneal (fáscia perirenal) (resposta ao quesito 61º da base instrutória).
Ocorrência que, denota sintomas de falência do sistema de coagulação do paciente (resposta ao quesito 61º-A da base instrutória).
……
O choque hemorrágico depois da segunda cirurgia é uma situação emergente, caso a hemorragia não fosse contida, o paciente morreria (resposta ao quesito 73º da base instrutória).

Ora, quando globalmente interpretada e conjugada com os factos instrumentais trazidos pelas declarações dos médicosQXX e EXX no âmbito de diligências realizadas do procedimento de averiguação decorrido no seio do Centro de Avaliação das Queixas Relativas a Actividades de Prestação de Cuidados de Saúde, cujas actas foi juntada aos autos para servir de prova documental, esta matéria de facto assente não só afasta a tese ora defendida pelo recorrente de que a morte do doente é consequência de uma evolução natural da doença que não foi curada mediante a remoção do tumor, como também demonstra toda a cadeia afirmativa de um nexo da causalidade adequada entre a opção pela laparoscopia e o falecimento do doente, ou seja, a hemorragia grave na sequência da primeira operação por via de laparoscopia, que deu lugar à continuação da hemorragia, não controlada pelas segunda e terceira operações, efectuadas com vista à contenção da hemorragia por via de laparoscopia, considerada menos razoável e não ser a mais adequada ao controlo da hemorragia grave atenta a situação do doente, que se não fosse contida, o doente morreria.

Eis os factos demonstrativos do nexo da causalidade.
Naufraga portanto esta parte do recurso.

Pelo exposto, improcede in totum o recurso.


Em conclusão:

1. Do estatuído no artº 5º/2, in fine, do CPC, à luz do qual “o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 434.º e 568.º e da consideração oficiosa dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” decorre que insistindo o nosso CPC na predominância do princípio da verdade formal no processo civil, o nosso legislador admite que o Tribunal vá para além disto quando for necessário investigar factos instrumentais, resultantes da instrução e discussão da causa, para esclarecimento de um facto essencial alegado ou para avaliação da consistência de uma prova produzida.

2. Ao contrário do que sucede no processo penal, onde o juízo técnico, científico e artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador – artº 149º/1 do CPP, inexiste, na matéria civil e laboral, idêntica norma que predetermina a superioridade da força probatória da perícia, em relação às outras provas.

3. Tal como sucede com outros meios de impugnação, o recurso ordinário, incluindo o da matéria de facto, funda-se na falibilidade humana e na possibilidade de erro por parte dos juízes, gerador de decisões injustas e portanto, visa justamente à simples eliminação da decisão, inválida, injusta ou não conforme à lei, ou ainda à sua substituição por outra a proferir pelo Tribunal ad quem, na sequência do reexame da matéria controvertida.

4. Desde que seja formada com observância das regras relativas à produção e à valoração das provas, motivada e recondutível a critérios lógicos, a convicção íntima do Tribunal a quo é válida, e portanto, em princípio, insindicável pelo Tribunal superior em sede de recurso, e só é susceptível de controlo jurisdicional por via de recurso ordinário se a convicção tiver sido formada em violação do direito probatório, não motivada ou irrecondutível a critérios lógicos, ou seja, erradamente formada.

5. Para que o Tribunal ad quem possa revogar a decisão sobre a matéria de facto fixada na primeira instância, é preciso que o convença da existência de erro na apreciação de provas por parte do Tribunal a quo.


Tudo visto, resta decidir.
VI

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em não conhecer o recurso interlocutório e julgar improcedente o recurso da sentença final.

Sem custas por o Réu Saúde beneficiar da isenção subjectiva – artº 2º/1-b) do RCT.

Registe e notifique.

RAEM, 17SET2020

Relator
Lai Kin Hong

Primeiro Juiz-Adjunto
Fong Man Chong

Segundo Juiz-Adjunto
Ho Wai Neng


Mai Man Ieng
1 Aqui verifica-se um lapso de escrita nos factos seleccionados como assentes no despacho saneador a fls.943 onde consta que “A 1.ª A. é viúva e os 2.º a 5.º RR . são os filhos…”, visto que certamente se quis dizer “A 1.ª A. é viúva e os 2.º a 5.º AA . são os filhos…”, razão pela qual se corrige oficiosamente.
2 Cremos, porém, ser um lapso do 1.º Réu, quando quis referir à abordagem laparotómica.
3 Cfr. Acórdãos do TUI, processo n.º 15/2011, proferido em 25 de Maio de 2011, processo n.º 60/2012, proferido em 21 de Novembro de 2012, processo n.º 86/2015, proferido em 13 de Abril de 2016.
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Ac. 1160/2019-1