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Processo nº 59/2020 Data: 31.07.2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Procedimento disciplinar.
Pena disciplinar.
Poder discricionário.
Princípios de Direito Administrativo.



SUMÁRIO

1. A aplicação de penas disciplinares dentro das espécies e molduras legais é insindicável contenciosamente, ressalvando-se os casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.

2. Com efeito, no âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição.

3. Porém, se o Tribunal concluir que houve “erro manifesto” ou “total desrazoabilidade” no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro, nesta conformidade deve decidir.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 59/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), com os sinais dos autos, recorreu contenciosamente da decisão do SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA datada de 06.04.2018 que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão; (cfr., fls. 2 a 7-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão datado de 27.02.2020, (Proc. n.° 445/2018), julgando procedente o recurso e anulando a decisão recorrida; (cfr., fls. 107 a 117).

*

Traz agora a entidade administrativa, (então recorrida), o presente recurso, pugnando pela revogação do dito Acórdão; (cfr., fls. 128 a 132).

*

Após resposta no sentido da improcedência do recurso, (cfr., fls. 134 a 139), e remetidos os autos a esta Instância, em sede de vista juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer, opinando (também) no sentido da confirmação do julgado; (cfr., fls. 149-v).

*

Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal de Segunda Instância deu como “provada” a factualidade seguinte:

“1. Pelas 18h45 de 7 de Setembro de 2017, ficou descoberto que o arguido A tinha filmado às escondidas no vestiário masculino do [ESCOLA] (cf. os autos a fls. 26).
2. Pelo facto referido no ponto 1 o arguido A ficou suspeito de ter praticado actos criminosos, portanto foi declarado arguido (cf. os autos a fls. 25 a 30).
3. Conjugado com o ponto 1, foi fora do horário de serviço é que o arguido A praticou os actos criminosos suspeitos (cf. os autos a fls. 31).
4. Uma das vítimas do acto de filmar em segredo praticado pelo arguido A foi o verificador alfandegário n.º XXXXX, B (cf. os autos a fls. 7, 8 e 25 a 30).
5. Em 8 de Setembro de 2017, o arguido A foi ao MP para colaborar na investigação, e por isso não se apresentou ao serviço (cf. os autos a fls. 2, 3, 29 e 31).
6. As infracções suspeitas praticadas pelo arguido A foram publicadas na rubrica "Alarme da Polícia sempre Soa" do Gabinete do Secretário para a Segurança (cf. os autos a fls. 11).
7. As infracções suspeitas praticadas pelo arguido A foram publicadas no Journal "Macao Daily News" de 9 de Setembro de 2017 (cf. os autos a fls. 13).
8. Uma das vítimas no caso, o verificador alfandegário n.º XXXXX, B, elaborou autos de declaração em 14 de Setembro de 2017 e afirmou: enquanto estava a tomar banho pelos 18h15 de 7 de Setembro de 2017 no vestiário masculino do [ESCOLA], descobriu que arguido A estava a filmar às ocultas e descobriu outros vídeos e fotos de banho tirados mais cedos, salvados no telemóvel dele (cf. os autos a fls. 16).
9. O arguido A elaborou autos de audiência em 18 de Setembro de 2017 e admitiu então ter filmado em segredo no dia em questão e no local referido (cf. os autos a fls. 17).
10. O arguido apresentou pedido de demissão e as funções nos Serviços de Alfândega cessaram em 18 de Outubro de 2017 (cf. os autos a fls. 33).
Foi notificado ao infractor o seguinte despacho punitivo:
Despacho n.º 041/SS/2018
Assunto: procedimento disciplinar
Autos n.º: procedimento disciplinar n.º 28/2017-1.1-DIS dos Serviços de Alfândega
Arguido: A, ex-técnico de 2.ª classe, n.º XXXXXX
Nos autos mencionados no título, já foi suficientemente averiguado que em 7 de Setembro de 2017, depois de sair do serviço, o arguido foi ao vestiário masculino do [ESCOLA] e utilizando o seu telemóvel, tirou fotos e filmes às escondidas enquanto 7 indivíduos masculinos tomavam banhos. Os actos do arguido ficaram revelados e foi-lhe efectuada a responsabilidade. No curso das investigações sucessivas, a polícia encontrou outros fotos e filmes salvados no telemóvel do arguido, tirados às escondidas em outros dias enquanto vários outros indivíduos masculinos tomavam banhos.
Mesmo os actos privados praticados pelos funcionários durante o tempo privado podem colocar em xeque o prestígio e a imagem do serviço. Seja em exercício de funções seja não, os funcionários públicos têm o dever de não praticar actos que possam comprometer o prestígio e a imagem do serviço. O prestígio e a imagem dos Serviços de Alfândega, enquanto serviço público com poder de autoridade, exercem influência directa sobre a eficiência com a qual o serviço cumpre as suas funções. Por isso, a qualidade moral do seu pessoal deve corresponder às expectativas da comunidade, sobretudo não pode fazer com que a comunidade ponha em dúvida a consciência da observância da lei do pessoal dos Serviços de Alfândega.
Os actos praticados pelo arguido dolosamente demonstram claramente que lhe falta a consciência da observância da lei. Depois de o ocorrido ter sido publicado pela imprensa, decerto a comunidade ficou com impressão negativa da qualidade moral do pessoal dos Serviços de Alfândega. Mesmo que entre as funções do arguido, não estava incluída a de execução da lei, os actos dele impactaram sempre muito negativa e seriamente o prestígio e a imagem dos Serviços de Alfândega. Portanto, com os seus actos, o arguido violou o dever geral de contribuir para o prestígio da Administração Pública previsto pelo artigo 279.º, n.º 1 do ETAPM.
Apesar da verificação no caso de arguido da circunstância atenuante prevista pelo artigo 282.º, alínea b) do ETAPM, os actos dolosos do arguido impactaram sempre muito negativa e seriamente o prestígio e a imagem dos Serviços de Alfândega; pelo que devem ser severamente censurados. Tendo em conta a gravidade da infracção disciplinar, a culpa e a personalidade do arguido, crê-se que está inviabilizada a manutenção da situação jurídico-funcional com o arguido.
Se bem que os Serviços de Alfândega já tenham consentido com o pedido apresentado pelo arguido e lhe deferiu a resolução da ligação a partir de 18 de Outubro de 2017, nos termos do artigo 280.º, n.º 2 do ETAPM, a cessação de funções não impede a punição pela infracção disciplinar cometida pelo arguido quando ainda prestava serviço.
Portanto, usando da competência das competências delegadas pelo artigo 322.º do ETAPM e pelo n.º 1 da Ordem Executiva n.º 111/2014, tendo em conta o disposto no artigo 316.º do ETAPM, o Secretário para a Segurança decidiu aplicar ao arguido a pena de demissão, nos termos do artigo 300.º, n.º 1, alínea e), artigo 305.º, artigo 311.º e artigo 315.º, n.º 1 e n.º 3 do ETAPM.
Em 6 de Abril de 2018, no Gabinete do Secretário para a Segurança da RAEM”; (cfr., fls. 111 a 112 e 19 a 23 do Apenso).

Do direito

3. Vem a entidade administrativa recorrer da decisão do Tribunal de Segunda Instância com a qual se anulou a sua “decisão punitiva” (aí) recorrida por “violação ao princípio da proporcionalidade”, entendimento este com o qual não concorda a ora recorrente.

Sem mais demoras, vejamos se tem razão.

No que toca ao dito “vício”, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“(…)
2 – A questão da violação do princípio da proporcionalidade e dos artigos 300º, 315º e 316º do ETAPM.
Neste ponto, é da posição do Digno. Magistrado do MP:
“(…)
Resta aludir à violação do princípio da proporcionalidade e à aventada violação do artigo 315.°, n.º 1, cuja cláusula geral da aplicação de pena expulsiva o despacho punitivo deu por preenchida.
Como resulta do processo disciplinar e da decisão punitiva, a Administração não enquadrou a conduta do recorrente em qualquer das hipóteses específicas de violação de deveres a que, nos termos do Estatuto, corresponda a pena de demissão. Optou por esta pena em função da gravidade que atribuiu aos factos, da sua repercussão na dignidade e no prestígio da função e da Administração Pública, bem como na inviabilidade da manutenção da situação jurídico-funcional do recorrente.
Está em causa a captação de fotografias de pessoas, de forma ilícita, o que constitui crime punível com pena de prisão até dois anos, pelo qual o recorrente foi, aliás, acusado - cf. fls. 46 a 49 do processo instrutor. Os factos apresentam alguma gravidade, na medida em que invadem não só o direito à Imagem, mas também a privacidade/intimidade dos retratados. Mas foram praticados fora do exercício de funções, em privado, sem que, em decorrência da sua prática ou por outro facto imputável ao recorrente, pudessem cair no domínio público e atingir reflexamente o serviço a que pertencia o recorrente. Portanto não houve da parte do recorrente uma acção que desse causa adequada à publicidade que o acto recorrido diz ter redundado em abalo do prestígio da administração. Essa publicidade ocorreu por motivos estranhos à vontade do recorrente e por este não domináveis, o que, indiciando culpa diminuta na produção daquele resultado, não pode deixar de ser adequadamente ponderado.
Neste contexto, os factos não atingem a gravidade com que lidou a decisão disciplinar, sendo excessivo o juízo de inviabilidade da manutenção da situação jurídico-funcional, como excessiva e desproporcionada se mostra a pena de demissão, quando postos em confronto o interesse público na reposição do prestígio dos Serviços de Alfândega, indirectamente abalado pela conduta do recorrente, e o interesse particular do próprio recorrente na proibição do excesso. Procede, assim, a invocada violação do princípio da proporcionalidade e, por arrastamento, a violação da norma do artigo 315.º, n.º 1, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
Termos em que o nosso parecer vai no sentido do provimento do recurso.”
*
Concordando com a douta posição acima transcrita, acresentamos ainda os seguintes argumentos elementos para o caso.
De facto, uma outra questão alegada pelo Recorrente é a violação do princípio da proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade está consagrado no artigo 5º do CPA, ao estabelecer que
«2. As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionados aos objectivos a realizar”.
Entendido, em sentido amplo, como proibição do excesso, o princípio da proporcionalidade postula que a Administração prossiga o interesse público pelo meio que represente um menor sacrifício para as posições dos particulares. Incorpora, como subprincípio constitutivo, o princípio da exigibilidade, também conhecido como princípio da necessidade ou da menor ingerência possível, que destaca a ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível.
Para maior operacionalidade deste princípio, a doutrina acrescenta, entre outros elementos, o da exigibilidade espacial, que aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção na esfera jurídica das pessoas cujos interesses devam ser sacrificados (vd. J. J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 266, ss.).
Nesta óptica, a questão essencial reside em saber qual medida punitiva – demissão ou outras menos gravosas – que é mais proporcional à sanção motivada pelos factos praticados pelo Recorrente.
No fundo, importa saber se o tipo de penas foi bem escolhido ou não. Ou seja, é uma matéria que se prende com a questão da aplicação correcta ou não dos artigos 312º a 315º do ETAPM.
Foi invocado pela Entidade Recorrida o artigo 315º/1 e 3 do ETAPM, que dispõe:
(Aposentação compulsiva ou demissão)
1. As penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.
2. As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos funcionários e agentes que, nomeadamente:
(…)
3. A pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o funcionário ou agente reunir o período mínimo de 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, na ausência do que lhe será aplicada a pena de demissão. (*)
(*) Vd. o artigo 29.º do Dec.-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, p. 101.
Ora, é do conhecimento quase uniforme que “as penas de inactividade ou de aposentação compulsiva e demissão são aplicáveis às infracções (…), conforme, ponderadas todas as circunstâncias atendíveis, inviabilizem ou não a manutenção da relação funcional”, o que significa que não basta a prática de “conduta constitutiva de crime…que possa atentar contra o prestígio e dignidade da função” ou que traduza a “violação de segredo profissional e omissão de sigilo devido relativamente aos assuntos conhecidos em razão do cargo ou da função, sempre que daí resulte prejuízo para o desenvolvimento do trabalho policial ou para qualquer pessoa” (Ac. do STA de Portugal de 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Há-de haver, além disso, um “quid” perturbador da relação de confiança recíproca que inviabilize a manutenção do vínculo profissional. Como ainda recentemente se disse em aresto do STA de Portugal, a pena de demissão aplica-se «a comportamentos que atinjam um grau de desvalor de tal modo grave que mine e quebre, definitiva e irreversivelmente, a confiança que deve existir entre o serviço público e o agente» (Ac. do STA de Portugal de 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Como se decidiu no Ac. de 01.04.2003 do mesmo Supremo – Rec. 1.228/02, “A valoração das infracções disciplinares como inviabilizantes da manutenção da relação funcional tem de assentar não só na gravidade objectiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do acto e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções” (no mesmo sentido, os acórdãos de 18.6.96, proc.º nº 39.860, de 16.5.02, proc.º nº 39.260, de 5.12.02, proc.º nº 934/02, de 24/03/2004, Proc. nº 0757/03; e 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Quer dizer, se é certo que ao órgão com competência disciplinar se reconheça «no preenchimento dessa cláusula geral, ampla margem de liberdade administrativa, tal tarefa está limitada pelos princípios da imparcialidade, justiça e proporcionalidade – além de ficar, depois, sujeita ao poder sindicante dos tribunais administrativos, se forem detectáveis erros manifestos» (cf. o cit. 24/03/2004, Proc. nº 0757/03; tb. AC. do STA/Pleno de Portugal de 19/03/99, Proc. nº 030896).
Ou, como é dito noutro aresto do STA de Portugal, “… o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, (…) constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante um juízo de prognose. Contudo, a jurisprudência do STA de Portugal, tem realçado que tais juízos têm de assentar em pressupostos como a gravidade objectiva do facto cometido, o reflexo no exercício das funções e a personalidade do agente se revelar inadequado para o exercício de funções públicas. Confrontar, a título meramente exemplificativo, os Acs. de 6-10-93 – Rec. 30463 e de 18-6-96 – Rec. 39860” (Ac. do STA de Portugal de 2/12/2004, Proc. nº 01038/04).
Em Macau, o Tribunal de Última Instância tem vindo a decidir, a aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo – cf., v.g., acórdão de 28 de Julho de 2004, Processo 27/2003, se isto é certo, não é menos certo que, esta posição, salvo o merecido respeito, tem de ser entendida em termos hábeis, pois, não pode significar que a Administração pode tomar decisão a seu bel-prazer, ou de modo arbitrário, muito menos poder, para tomar decisões, atirar a moeda para o ar para saber se é a solução A ou solução B que venha a ser optada.
Por outro lado, em matéria da aplicação das penas disciplinares, o legislador manda atender a conjunto de factores:
- A natureza e a gravidade dos factos;
- A categoria do funcionário ou agente;
- A sua personalidade;
- O grau de culpa do infractor;
- Os danos e prejuízos causados;
- A perturbação produzida no normal funcionamento dos serviços;
Em geral, a todas as circunstâncias em que a infracção tiver sido cometida que militem contra ou a favor do arguido.
É o que resulta do artigo 316º do ETAPM.
*
No caso em apreço, foi tirada a seguinte conclusão pela Entidade Recorrida:
Apesar da verificação no caso de arguido da circunstância atenuante prevista pelo artigo 282.º, alínea b) do ETAPM, os actos dolosos do arguido impactaram sempre muito negativa e seriamente o prestígio e a imagem dos Serviços de Alfândega; pelo que devem ser severamente censurados. Tendo em conta a gravidade da infracção disciplinar, a culpa e a personalidade do arguido, crê-se que está inviabilizada a manutenção da situação jurídico-funcional com o arguido.
Se bem que os Serviços de Alfândega já tenham consentido com o pedido apresentado pelo arguido e lhe deferiu a resolução da ligação a partir de 18 de Outubro de 2017, nos termos do artigo 280.º, n.º 2 do ETAPM, a cessação de funções não impede a punição pela infracção disciplinar cometida pelo arguido quando ainda prestava serviço.
Portanto, usando da competência das competências delegadas pelo artigo 322.º do ETAPM e pelo n.º 1 da Ordem Executiva n.º 111/2014, tendo em conta o disposto no artigo 316.º do ETAPM, o Secretário para a Segurança decidiu aplicar ao arguido a pena de demissão, nos termos do artigo 300.º, n.º 1, alínea e), artigo 305.º, artigo 311.º e artigo 315.º, n.º 1 e n.º 3 do ETAPM.
Com estes padrões de avaliação em matéria da decisão de medidas punitivas, é de atender, no caso em apreciação, aos seguintes factores relevantes:
1) – Sendo certo que os ilícitos imputados ao Recorrente não têm nada a ver com as funções desempenhadas por ele, nem no domínio temporal, nem no espacial, e tais factos foram praticados casuisticamente.
2) – As fotografias ilicitamente tiradas pelo Recorrente/arguido não foram revelados a terceiros ou publicados.
3) – O arguido/Recorrente confessou os factos imputados e mostrou-se arrependido.
4) – Sem dúvida, merece censura a conduta do Recorrente, só que o Recorrente não é agente de autoridade, é apenas um funcionário civil que servia na corporação, daí a diferença das exigências entre um agente de autoridade e um mero funcionário civil.
5) – Não está em causa um crime “grave”, o que se alcança pela moldura penal, que o legislador fixa até 2 anos de prisão ou multa até 240 dias (artigo 191º do CPM)!
6) – Os factos praticados não produzem perturbações graves ao normal funcionamento de serviço, nem danos concretos aos serviços.
7) – Os mesmos factos imputados ao Recorrente afectam a imagem da instituição? Parece que sim, mas de modo grave? Cremos que não.
8) – Não mostra ter uma personalidade desadaptada dos critérios e valores socialmente relevantes, uma vez que se lhe não aponta a prática anterior de um único ilícito disciplinar ou social, conforme o que decorre do processo instrutor.
Tudo isto leva-nos a considerar que aplicação de uma censura disciplinar de menor gravidade é o bastante e cumpria integralmente a função sancionatória que os actos praticados pelo Recorrente justificam. Ou seja, e dito de outro modo, a pena aplicada ao Recorrente é, para nós, manifestamente desajustada, por excessiva e injusta, face às circunstâncias em que os factos ocorreram. Com efeito, se a pena de não privação de funções (ex. multa ou suspensão) cumpria o desiderato visado pela acção punitiva que os actos reclamavam, não se devia ter optado por uma pena expulsória de tanta gravidade e de tão grandes repercussões.
Deste modo, e porque se verificou erro manifesto na escolha da medida sancionatória aplicada e, não foi respeitado o princípio de proporcionalidade nos termos acima vistos, e como cabe dentro dos poderes do Tribunal a sindicância desse erro, é de dar provimento ao recurso e anular o acto impugnado.
(…)”; (cfr., fls. 112-v a 116 e 24 a 33 do Apenso).

Esta sendo a ponderação e reflexão pelo Tribunal de Segunda Instância efectuada e vertida no Acórdão ora recorrido, quid iuris?

Pois bem, antes de mais, cabe dizer que se concorda com tudo o que no dito aresto se considera a respeito do (“sentido” e “alcance” do) “princípio da proporcionalidade”; (sobre o tema, e de forma desenvolvida, vd., v.g., L. Ribeiro e J. C. Pinho in, “C.P.A. Anotado e Comentado”, pág. 90 e segs.).

Com efeito, firme e pacífico é o entendimento – também exposto no Acórdão recorrido – no sentido de que para a generalidade das carreiras que integram os serviços da Administração Pública, a aplicação de penas disciplinares dentro das espécies e molduras legais, é insindicável contenciosamente, ressalvando-se os casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, sendo que a intervenção do Tribunal na apreciação do respeito do princípio agora em causa por parte da Administração, ou seja, o da “proporcionalidade”, apenas deve ter lugar quando as decisões administrativas, de modo intolerável, o violem; (cfr., v.g., entre muitos, os Acs. deste T.U.I. de 15.10.2003, Proc. n.° 26/2003; de 29.06.2005, Proc. n.° 15/2005; de 12.01.2011, Proc. n.° 53/2010; de 25.07.2012, Proc. n.° 8/2012; de 14.12.2012, Proc. n.° 69/2012; de 13.11.2013, Proc. n.° 23/2013; de 21.01.2015, Procs. n°s 20/2014 e 26/2014; de 05.12.2018, Proc. n.° 65/2018; de 04.04.2019, Proc. n.° 11/2019; de 29.11.2019, Proc. n.° 107/2019 e, mais recentemente de 10.07.2020, Proc. n.° 41/2020).

Na verdade, dúvidas cremos que não existem que – justo e adequado é o entendimento no sentido de que – “No âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro.
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 22.05.2019, Proc. n.° 104/2014).

Aqui chegados, importa então decidir se acertada foi a decisão do Tribunal de Segunda Instância, cabendo verificar se, com a decisão administrativa punitiva aí recorrida incorreu a Administração em “violação – grosseira e grave – do princípio da proporcionalidade”.

Ora, – apresentando-se-nos inegável que em “matérias” como a agora em apreciação, natural é que não deixam de intervir (certas) “apreciações subjectivas”, atentas as diversas “sensibilidades” sobre a questão, sendo, “prova acabada” disso a declaração de voto de vencido anexa ao Acórdão recorrido – cremos, porém, que a “situação dos autos” não justificava uma decisão disciplinar punitiva como a proferida, mostrando-se-nos que aquela não terá sido adequadamente valorada, passando-se a tentar explicitar este nosso ponto de vista.

Vejamos.

Antes de mais, útil é esclarecer que as “folhas” para as quais se remete em sede da “decisão da matéria de facto” proferida no Acórdão recorrido referem-se ao “Processo Administrativo-Disciplinar” instaurado ao ora recorrido e que se encontra em apenso aos presentes autos.

Nesta conformidade, cabe referir que do teor de “fls. 25 a 30” referidas no “ponto 2” da matéria de facto dada como provada se retira que a conduta pelo arguido desenvolvida no dia 07.09.2018, deu lugar à redacção (na mesma data) do “auto de notícia n.° XXX/2017/C3”, no qual se relata o sucedido, e do qual, se dá conta que no dia em questão, após a sua detenção para averiguações, no seu telemóvel foram encontrados várias ficheiros contendo fotografias e vídeos captados no dia 08.07.2017, outros do dia 05.09.2017, o mesmo sucedendo com o dia 06.09.2017 e o dia da ocorrência, (07.09.2017), tudo, a envolver um total de 11 pessoas (ofendidas), algumas não identificadas; (cfr., fls. 26 a 29).

E, ponderando na factualidade que se acaba de consignar, (que foi dada como “provada”, que não foi sindicada nem se mostra de alterar), cremos que a mesma evidência uma “imagem global dos factos” que demonstra uma conduta que não se trata de uma (mera) “situação pontual”, (ou ocasional), levada a cabo como resultado de um “súbito e momentâneo instinto ou reacção”, (“precipitação”), revelando, antes, uma “atitude procurada”, a revelar um dolo directo, intenso e repetido (em virtude de novas “resoluções”), e, assim, uma “factualidade” bastante infeliz…

Por sua vez, não se pode olvidar da “natureza”, “circunstâncias” e “publicidade” que mereceram os aludidos “factos”, que não deixam de causar um “mal estar social” que necessariamente se reflecte no prestígio, dignidade e confiança que se espera dos trabalhadores da Administração Pública e desta.

Porém, existem aspectos que importa aqui salientar e ponderar.

O primeiro, que se traduz no facto de, a nível criminal, em virtude da natureza do crime, (semi-público), e perante a desistência de queixa dos ofendidos (conhecidos), se ter decidido pelo “arquivamento dos respectivos autos”; (cfr., a certidão de fls. 41 e segs.).

Não se olvida que o procedimento disciplinar é independente do procedimento criminal, (cfr., art. 287° do E.T.A.P.M. aprovado pelo D.L. n.° 87/89/M de 21.12), contudo, a referida circunstância não deve deixar de ser ponderada, já que, da mesma resulta que os principais e mais directos ofendidos também se dispuseram a desistir de qualquer responsabilização do arguido, aqui, recorrido, (perdoando-o).

Assim, se até aqueles cujos interesses a norma incriminatória quis tutelar, (cfr., art. 191° do C.P.M.), dispuseram-se a “esquecer”, tal “circunstância”, não deve deixar se ser, justa e adequadamente, ponderada na situação dos autos.

Por sua vez, mostra-se de referir que a conduta pelo ora recorrido desenvolvida é (totalmente) alheia ao exercício das suas funções enquanto “trabalhador da Administração Pública”, que teve lugar fora dos serviços onde trabalhava, e que, não obstante não deixar de aí produzir os seus efeitos, o mesmo pediu, por iniciativa própria, a sua exoneração a partir de 18.10.2017, (pouco depois de 1 mês após os factos, e cerca de 4 meses antes da sua acusação – cfr., fls. 34 e 60 a 62 dos Autos de Processo Disciplinar em Apenso), com tal atitude demonstrando reconhecer o “mal” que sentia pelas consequências da sua conduta, “circunstância” esta que merece ser também adequadamente ponderada na situação em questão.

E, assim, não se podendo negar que em causa está uma ocorrência “bastante infeliz”, atento ao que se deixou consignado, em especial, tratando-se de um trabalhador que, por iniciativa própria, até já pôs termo ao vínculo que mantinha com a Administração, demonstrando (profundo) arrependimento pela sua conduta, cuja publicidade também não lhe é imputável, cremos pois que excessivo se apresenta que, mesmo assim, lhe seja aplicada a pena – máxima – de “demissão”, como sucedeu.

Dest’arte, e nenhuma outra questão havendo a apreciar, resta decidir em conformidade.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Sem custas, (dada a isenção do recorrente).

Registe e notifique.

Macau, aos 31 de Julho de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa

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