打印全文
Processo nº 57/2020 Data: 31.07.2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Procedimento disciplinar.
Pena de demissão.
Matéria de facto.
Competência do T.U.I..
Poder discricionário.
Princípio da proporcionalidade.
”Inviabilidade da manutenção da relação laboral”.



SUMÁRIO

1. A competência do Tribunal de Última Instância para apreciar a “decisão proferida quanto à matéria de facto” fica delimitada pelo n.º 2 do art. 649° do C.P.C.M., (subsidiariamente aplicável por força do disposto no art.º 1.º do C.P.A.C.), nos termos do qual, “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Nesta conformidade, o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional – como é o caso – não pode censurar a convicção formada pelas Instâncias quanto à prova; podendo, porém, reconhecer, (e declarar), que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, (quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto), sendo assim, uma censura que se confina à “legalidade do apuramento dos factos, e não respeita, directamente, à existência ou inexistência destes”.

2. Em sede do exercício do poder – administrativo – discricionário, aos Tribunais apenas cabe intervir em casos de “injustiça grave ou erro grosseiro”.

3. A intervenção do Juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violam.

4. Se o despacho punitivo remete para o relatório final do processo disciplinar, e se neste se conclui pela “inviabilidade da manutenção da relação laboral” com o arguido do processo, adequado não é alegar-se que naquele não se ponderou sobre tal “circunstância”, pois que o dito “relatório” integra a decisão final (disciplinar) que põe termo ao procedimento.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 57/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), com os sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância do despacho da (então) SECRETÁRIA PARA A ADMINISTRAÇÃO E JUSTIÇA, datado de 25.07.2018, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão ; (cfr., fls. 2 a 48 dos então Autos de Recurso Contencioso n.° 811/2018, do Tribunal de Segunda Instância, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, por Acórdão de 16.01.2020, decidiu-se negar provimento ao recurso; (cfr., fls. 216 a 234).

*

Ainda inconformada, do assim decido vem agora recorrer para esta Instância, alegando para, a final, produzir as conclusões seguintes:

“I. Vem o presente Recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente o Recurso Contencioso interposto pela Recorrente, confirmando e mantendo o acto administrativo recorrido, qual seja o acto proferido pela Exma. Secretária para a Administração e Justiça que lhe veio aplicar a pena de demissão nos termos do no n.° 1 do art.º 315.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (doravante "ETAPM"), entendendo que houve da parte da Recorrente-uma actuação dolosa violadora das alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 279.º do ETAPM e do n.º 2 do artigo 11.° das Disposições Fundamentais do Estatuto do Pessoal de Direcção e Chefia.
II. O douto Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento quanto ao regime concretamente aplicável ao caso sub judice, decorrente de uma errónea interpretação e aplicação in casu do n.º 1 do artigo 315.º do ETAPM, por erro na qualificação jurídica dos factos, violando esta disposição legal, e erro de julgamento por violação do princípio da proporcionalidade, verificando-se um vício de violação de lei.
III. O douto Acórdão recorrido filtrou por completo tudo o quanto foi alegado pela Recorrente no que diz respeito à conduta da mesma, e que militam a seu favor, e que necessariamente deveriam suportar a conclusão inversa a que chegou o Tribunal a quo, ou seja, da não verificação in casu dos requisitos exigidos para aplicar à Recorrente a pena de demissão, previstos no artigo 315.º do ETAPM, pois que nenhuma infracção foi cometida pela Recorrente que inviabilize a manutenção da sua situação jurídico-funcional.
IV. O Tribunal a quo fez tábua rasa de todos os factos alegados pela Recorrente na sua petição inicial de recurso, e que demonstram claramente que a decisão de aplicar a pena de demissão à Recorrente é manifestamente excessiva e desproporcional.
V. Toda a matéria alegada pela Recorrente, e com interesse para a boa decisão da causa, foi totalmente desconsiderada pelo douto Tribunal a quo, que sobre a mesma não se pronunciou e/ou tomou posição fundamentada, como era seu dever e obrigação.
VI. A decisão recorrida deixou de parte toda a factualidade que permitiria ao douto Tribunal a quo sindicar a conduta da Recorrente, por forma a avaliar e correctamente ajuizar se o acto de demissão padece dos vícios invocados.
VII. O douto Tribunal a quo haveria sempre que seleccionar e produzir prova sobre toda a matéria de facto alegada pela Recorrente, por forma a valorar do comportamento da mesma, e desse modo correctamente aferir se os factos a ela imputados são suficientes para concluir pela inviabilidade da manutenção da sua relação laboral com a Administração Pública.
VIII. Os factos alegados pela Recorrente no Recurso Contencioso consubstanciam circunstâncias atenuantes da sua conduta e demonstram cabalmente, por um lado, que a decisão punitiva de demissão é manifestamente excessiva e desproporcional in casu, pois que perante os factos por si cometidos e as referidas circunstâncias atenuantes tal medida nunca deveria ter sido aplicada à Recorrente, devendo ter-lhe sido aplicada pena disciplinar menos gravosa, e, por outro, são bem elucidativos da ausência de invocação ou concretização da inviabilidade da manutenção da relação funcional, prevista no n.º 1 do artigo 315.º do ETAPM.
IX. O douto Acórdão recorrido não se pronunciou sobre nenhum facto, documento, depoimentos prestados-pelas testemunhas arroladas ou qualquer outra matéria probatória carreada para os autos desde o momento da interposição do Recurso Contencioso para o Tribunal recorrido, da iniciativa da Recorrente.
X. Inexiste no douto Acórdão recorrido qualquer facto que seja especificadamente dado como assente, provado ou não, que sustente qualquer decisão que veio a ser proferida a final no douto aresto recorrido.
XI. Não basta dar como assente os factos praticados pela Recorrente e que conduziram a um processo crime contra a mesma.
XII. A Recorrente alegou factos atenuantes da sua conduta e produziu prova testemunhal comprovativa dessas circunstâncias atenuantes para que, em sede de decisão judicial de anulação, se pudesse ver correctamente apreciada a legalidade do acto administrativo em causa, não podendo o Tribunal a quo deles fazer tábua rasa, como fez ao não se pronunciar sobre os mesmos.
XIII. Os factos comprovam a conduta exemplar e profissional da Recorrente ao longo dos mais de 25 anos de bons serviços prestados enquanto funcionária pública.
XIV. Estes factos não podem ser olvidados nem "apagados" por esta mancha única no seu longo e exemplar currículo qual seja a prática dos factos de que foi agora condenada e que servem de fundamento a este processo disciplinar.
XV. Durante a inquirição das testemunhas arroladas pela Recorrente, as mesmas revelaram ter trabalhado com a Recorrente, atestando a idoneidade da mesma durante os seus longos anos de serviço, que a mesma era muito profissional e competente, que nunca ninguém fez queixa dela, e que nunca houve qualquer problema, que a mesma era uma funcionária exemplar, e que demonstrou arrependimento pelo que fez.
XVI. As testemunhas referiram que não é muito frequente ser aplicada a pena de demissão, e que num caso mais grave foi mesmo aplicada uma sanção mais leve.
XVII. Ao não cumprir com tal imposição, o Tribunal a quo veda a qualquer destinatário da decisão o conhecimento do raciocínio lógico ou racional que está subjacente à decisão,
XVIII. Os comandos contidos nos artigos 76.° do CPAC e 562.°, n.° 3, do CPC não são inócuos, pois que com eles pretende-se que o Tribunal através da sentença dê a conhecer às partes os factos em que firmou a sua convicção.
XIX. No douto Acórdão recorrido, deveria o Tribunal a quo ter-se pronunciado sobre aquela matéria de facto que justificasse a decisão que tomou, dando-a como provada ou não provada, em estrita obediência aos mais elementares princípios processuais, mormente o princípio da motivação das decisões judiciais.
XX. O douto Acórdão recorrido deveria ter apurado toda a matéria de facto que pudesse ser relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito em discussão na lide, e não, somente, a parca factualidade julgada por relevante para sustentar a posição que o Tribunal a quo adoptou.
XXI. Uma das soluções plausíveis da questão de direito é a de considerar ilegal (por manifestamente excessivo e desproporcional) o acto punitivo recorrido, por não ter sido valorado, por parte da Entidade Recorrida, todo o comportamento exemplar, e não culposo, da Recorrente, bem assim a sua idoneidade, ao longo dos mais de 25 anos de serviço da Administração Pública.
XXII. Todas as circunstâncias atenuantes da conduta da Recorrente e por si alegadas deveriam ter levado este douto Tribunal a concluir que não se têm por verificados in casu os requisitos de aplicação da pena de demissão.
XXIII. Deverá ser doutamente declarada a nulidade da decisão ora em crise, por absoluta falta de fundamentação de facto, nos termos previstos no artigo 76.º in fine do CPAC, e artigos 108.º, n.º 1, 562.º, n.ºs 2 e 3, e 571.º, n.º 1, al. b), todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1.º do CPAC, devendo este Venerando Tribunal mandar baixar o processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, nos termos previstos no artigo 651.º, n.º 2 do CPC.
XXIV. O douto Acórdão recorrido não procede, em momento algum, à apreciação da prova carreada para os autos pela Recorrente, nem tão-pouco faz o devido exame crítico dessas mesmas provas, tal como lhe era imposto.
XXV. O douto Acórdão recorrido não especifica os concretos meios de prova utilizados para considerar os factos provados, ou não provados, nem quais foram os fundamentos que foram decisivos para a convicção deste Tribunal a quo.
XXVI. Todos os factos, provados ou não provados, devem ser criteriosamente fundamentados, através de uma apreciação crítica das provas oferecidas pelas partes, de molde a evidenciar as razões que levaram o douto Colectivo de Juízes a decidir como decidiu.
XXVII. Impõe-se ao Tribunal o dever de fundamentar a decisão de facto que entenda dever proferir, expondo os motivos que o levaram a considerar determinadas provas como idóneas e relevantes, bem como indicar os critérios utilizados na apreciação daquelas provas e o substrato racional que conduziu à convicção concretamente formada.
XXVIII. A obrigatoriedade da indicação na decisão sobre a matéria de facto das provas, e respectiva análise crítica, que serviram para formar a convicção do Tribunal, estabelecida no artigo 556.º, n.º 2, do CPC, destina-se a permitir aos sujeitos processuais, bem assim ao Tribunal de Recurso, a verificação de que na Sentença ou no Acórdão se seguiu um critério lógico e racional na apreciação das provas.
XXIX. O Tribunal a quo não valorou nem analisou criticamente as provas constantes dos autos, entre as quais os depoimentos prestados pela Exma. Sra. Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Macau, B, e pelo Sr. Conservador da Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, C.
XXX. Estes depoimentos levam à conclusão de que seria mais adequado e proporcional aplicar à Recorrente pena disciplinar menos gravosa.
XXXI. A actividade probatória da Recorrente foi completamente ignorada.
XXXII. Deverá ser douta mente declarada a nulidade da decisão ora em crise, por omissão de pronúncia sobre a prova carreada para os autos e sobre apreciação crítica da mesma, nos termos admitidos no artigo 76.º do CPAC, e artigos 556.º, n.º 2, 562.º, n.ºs 2 e 3, e 571.º, n.º 1, al. b), todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1.º do CPAC, devendo este Venerando Tribunal mandar baixar o processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, nos termos previstos no artigo 651.º, n.º 2 do CPC.
XXXIII. A Entidade Recorrida não aduz fundamentos ou razões que permitam concluir pela inviabilidade da manutenção da relação funcional e a aplicação da medida mais punitiva.
XXXIV. A inviabilidade de manutenção da situação jurídico-funcional é pressuposto essencial para a aplicação da pena de demissão - n.º 1 do artigo 315.º do ETAPM.
XXXV. Não basta a violação isolada de alguns dos deveres a que está obrigada para haver necessidade de afastamento do serviço, torna-se necessário que essa violação, em concreto, e fundadamente, importe a inviabilidade da manutenção da relação funcional.
XXXVI. O juízo de prognose que concretiza o conceito de inviabilização da manutenção da relação funcional terá necessariamente de assentar em factos concretos, materializados na decisão, factos esses que deverão estar devidamente objectivados, concretizados e descritos na decisão ou no relatório final, o que não sucede in casu.
XXXVII. O conceito indeterminado de "inviabilidade da manutenção da relação funcional" carece de invocação e de concretização, por parte do Administração, através de juízos de prognose produzidos pelo órgão decisor, no âmbito da discricionariedade administrativa, mas sempre vinculado aos princípios fundamentais do Direito Administrativo, através dos quais a Administração expresse os motivos que fazem com que o vínculo funcional não se possa manter.
XXXVIII. No processo disciplinar sub judice, quer da análise quer da acusação, quer do relatório final elaborados pelo Senhor Instrutor, quer do Acórdão ora recorrido, resulta manifesto que, em momento algum foi invocada ou concretizada, ainda que através de juízos de prognose, a "inviabilidade da manutenção da relação funcional", nem tão pouco foi apontado e fundamentado qualquer motivo de falta de competência ou de falta de idoneidade moral da Arguida, ora Recorrente.
XXXIX. Do relatório que serviu de base à decisão recorrida nunca se poderia concluir que a Recorrente tenha actuado com culpa tão grave que a continuidade da relação jurídico-funcional estivesse irremediavelmente comprometida, sobretudo no caso de uma profissional com uma longa e impoluta carreira.
XL. No despacho da Exma. Secretária para a Administração e Justiça, que determina a aplicação da pena de demissão à Recorrente, não é invocada a "inviabilidade da manutenção da relação funcional", nem o referido conceito indeterminado foi concretizado pela Administração através de juízos de prognose, nem tão pouco corroborado por factos dos quais resulte a referida inviabilidade.
XLI. Era ao autor do despacho punitivo a quem competia alegar e provar que as alegadas infracções inviabilizariam a manutenção da situação jurídico-funcional da Recorrente, o que não sucedeu in casu.
XLII. A Administração ao aplicar determinada pena disciplinar que se mostra vinculada à verificação de pressupostos que não decorrem da factualidade dada como provada age em erro na qualificação jurídica dos factos provados.
XLIII. Do presente procedimento disciplinar não consta nenhum motivo de falta de competência ou de falta de idoneidade moral da Recorrente, que são os requisitos que presidem à inviabilidade da continuidade da relação laboral, não tendo sido invocado ou concretizado esse conceito indeterminado.
XLIV. A Recorrente permaneceu no seu cargo, após o período de suspensão provisória, até 22 de Setembro de 2014 (quase 1 ano depois do conhecimento dos factos), altura em que por sua iniciativa regressou ao seu cargo inicial de técnica superior assessora do 2º escalão do quadro de pessoal da DSAJ.
XLV. Sendo que exerceu funções como técnica superior assessora do 2º escalão do quadro de pessoal da DSAJ até 28 de Fevereiro de 2017, data em que voluntariamente apresentou a sua demissão.
XLVI. As alegadas infracções cometidas pela Recorrente não são susceptíveis de inviabilizar a manutenção da situação jurídico-funcional, porquanto a Recorrente continuou a exercer funções durante mais 4 anos depois da abertura do processo disciplinar que lhe foi instaurado.
XLVII. A Administração não accionou o alargamento do prazo de suspensão de 90 dias, tal como previsto no n.º 2 do art, 331º do ETAPM, para os casos em que a presença do funcionário se revele inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade.
XLVIII. A Exa. Secretária para a Administração e Justiça declinou a manutenção da suspensão preventiva proposta pelo Instrutor, pelo que já em 2014 demonstrada ficou a inexistência do requisito previsto no art. 315º do ETAPM - "inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional".
XLIX. A decisão punitiva, bem assim a decisão ora recorrida, padecem do vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que conduz à sua inevitável anulação.
L. O princípio da proporcionalidade exige que toda a actividade da Administração Pública seja proporcional aos fins que prossegue.
LI. Esta proporcionalidade, também doutrinalmente conhecida como princípio da proibição do excesso, o que visa afinal é que todas as decisões (actos) administrativas, não apresentem inconvenientes excessivos para os cidadãos relativamente às vantagens que a Administração delas espera.
LII. A Entidade Recorrida, ao emitir o acto administrativo recorrido, violou flagrantemente os poderes discricionários subjacentes à aplicação das sanções disciplinares à Recorrente consubstanciada na aplicação da pena disciplinar mais gravosa, a de demissão.
LIII. A sanção aplicada deve reflectir o grau de culpa e a gravidade da conduta, o que, manifestamente, não acontece na decisão recorrida.
LIV. A decisão punitiva padece de erro grosseiro na avaliação da culpa da Recorrente e de manifesta violação do princípio da proporcionalidade, que decorre do princípio da culpa, devendo a pena corresponder ao grau do desvalor da conduta do infractor, tendo em conta todas as circunstâncias relacionadas com a prática da infracção, devendo ser proporcional à gravidade da conduta disciplinarmente ilícita e atendendo-se a todo o circunstancialismo atenuante.
LV. A violação dos princípios administrativos é judicialmente sindicável.
LVI. A decisão recorrida não considerou os factos essenciais para a aplicação de uma decisão justa, equitativa e proporcional, factos esses que consubstanciam circunstâncias atenuantes da conduta da Recorrente e comprovam que a decisão punitiva de demissão é manifestamente excessiva e desproporcional.
LVII. A actuação da Administração Pública é total e manifestamente desproporcional e inadequada.
LVIII. A Entidade Recorrida ignorou factos que atenuam sobremaneira a actuação da Recorrente e que justificam a aplicação de uma pena que não a mais gravosa, como sendo a de demissão.
LIX. A Recorrente sempre pautou a sua conduta pessoal e profissional por um código ético rigoroso, sendo uma pessoa de reconhecido mérito, capacidade de trabalho e sempre consciente da importância e dignidade que é o serviço público, razões que justificaram a sua escolha como Chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ.
LX. A Recorrente desempenhou o seu cargo, exemplarmente, durante 15 anos, tendo os seus anos de serviço sido avaliados consecutivamente com a classificação de "Muito Bom".
LXI. A Recorrente sempre se comportou com a rectidão e honestidade que se exige a alguém que ocupe um cargo de chefia.
LXII. A Recorrente sempre agiu da melhor forma que sabia e podia, com os recursos disponíveis.
LXIII. A Recorrente sempre teve avaliações de "Muito Bom" por parte dos seus superiores, o que sempre sustentou a sua manutenção na posição de chefia que ocupou mesmo depois dos factos.
LXIV. Dos factos em análise nos autos não se revela qualquer culpa grave, ou negligência grosseira, no cumprimento dos seus deveres.
LXV. A Recorrente sempre foi uma profissional dedicada, não lhe tendo nenhuma vez sido imposto um juízo de censura disciplinar.
LXVI. A Recorrente sempre teve brio e orgulho no seu percurso profissional, e todo este procedimento deixou-a amargurada e angustiada, pois nunca em situação alguma considerou outra prioridade que não o bem-estar e segurança das pessoas e bens da RAEM.
LXVII. É manifestamente desproporcional a pena que lhe é aplicada.
LXVIII. A sanção a aplicar deveria ser enquadrada numa pena disciplinar menos gravosa, designadamente nas penas de suspensão ou aposentação compulsiva.
LXIX. O despacho do Exma. Secretário para a Administração e Justiça e a decisão ora recorrida enfermam do vício de violação de lei, por violação do princípio da proporcionalidade e adequação consagrado no artigo 5.º, n.º 2, do CPA, pela total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários no que respeita à aplicação da pena de demissão, o que gera a sua anulabilidade”; (cfr., fls. 244 a 315).

*

Nas suas alegações, pugna a entidade recorrida pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 317 a 340).

*

Na vista que dos autos teve, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer, considerando que o recurso merecia provimento.

Tem o Parecer o teor seguinte:

“Vem impugnado o acórdão de 16 de Janeiro de 2020, do Tribunal de Segunda Instância, que negou provimento ao recurso contencioso interposto pela recorrente A contra o despacho de 25 de Julho de 2018, da autoria da Exm.ª Secretária para a Administração e Justiça, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
A recorrente imputa ao acórdão recorrido a nulidade decorrente da falta de fundamentação de facto, prevista no artigo 571.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, a nulidade traduzida na falta de pronúncia sobre as provas carreadas para o processo e respectivo exame crítico, nos termos dos artigos 556.º, n.º 2, 562.º, n.ºs 2 e 3, e 571.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, bem como erros de julgamento relativamente à apreciação dos vícios de falta de invocação ou concretização da cláusula geral da inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional e de violação do princípio da proporcionalidade.
Vejamos, começando pelas nulidades.
Afirma a recorrente, no que à fundamentação de facto respeita, que o acórdão recorrido filtrou por completo tudo quanto ela havia alegado, no tocante à sua conduta e a quanto milita a seu favor, fazendo tábua rasa da factualidade demonstrativa de que a pena de demissão é manifestamente excessiva e desproporcional, assim desconsiderando factos com interesse para a boa decisão da causa. Donde ter incorrido na nulidade prevista no artigo 571.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Em Macau, o contencioso administrativo de anulação é de mera legalidade, pelo que a lei se basta com a especificação dos factos provados, havendo que ter presente, em homenagem ao princípio da utilidade, que, de entre os factos que estejam provados, apenas haverá que especificar aqueles que sejam pertinentes e relevantes para a decisão da causa, como aliás decorre dos artigos 76.º e 65.º, n.º 3, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Constata-se que o acórdão especificou os factos que teve por pertinentes e bastantes, e resolveu, à luz desses factos e do direito aplicável, as questões que a recorrente colocou, relativas às ilegalidades e vícios imputados ao acto, não se vislumbrando que a matéria considerada seja insuficiente para uma completa abordagem e resolução, de direito, das questões (vícios) suscitadas no recurso contencioso.
A decisão está, por isso, suficientemente fundamentada de facto. E certo é que, nesta matéria, é pacífico o entendimento de que apenas a ausência total de fundamentação constitui nulidade.
Improcede a arguida nulidade.
Ainda em matéria de nulidades, a recorrente diz que o acórdão omitiu pronúncia sobre a prova levada aos autos e sobre o respectivo exame crítico, o que igualmente teria repercussão ao nível da fundamentação e integraria a nulidade do artigo 571.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Parte a recorrente do equívoco de que ao contencioso de anulação é aplicável a norma do artigo 556.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Só que esta norma visa o julgamento da matéria de facto, quando feito autonomamente, em separado, da sentença, como sucede em processo civil, nas acções ordinárias. No contencioso de anulação, não há separação entre o julgamento da matéria de facto e o julgamento de direito, sendo os factos e o direito tratados na decisão (sentença ou acórdão), que tem que observar as exigências de conteúdo previstas no artigo 76.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, onde notoriamente não pontuam a apreciação e o exame crítico das provas. O Tribunal de Última Instância já se pronunciou sobre esta questão, tendo concluído pela inaplicabilidade da norma do artigo 556.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ao contencioso de anulação – cf., v.g., acórdãos de 29 de Junho de 2009, Processo 32/2008, e de 23 de Maio de 2018, Processo 7/2018.
Também esta nulidade improcede.
Por fim, quanto aos vícios do acto, verifica-se que, na sua alegação de recurso jurisdicional sobre os erros de julgamento, a recorrente acaba por esgrimir e reafirmar motivos e argumentos que já antes utilizara em sede de recurso contencioso.
Na oportunidade, pronunciou-se o Ministério Público sobre os vícios atribuídos ao acto impugnado, fazendo-o nos moldes do parecer de fls. 210 e seguintes, onde apoiou a tese da recorrente no tocante à violação do dever de invocação ou concretização da cláusula geral da inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional e se manifestou contra a tese da ilegalidade sustentada nos demais vícios, nomeadamente no de violação do princípio da proporcionalidade, que a recorrente novamente reitera.
Temos por bem chamar aqui à colação aquele nosso parecer, pois não vislumbramos argumentos ponderosos para alterar os pontos de vista ali expressos em matéria de vícios do acto administrativo contenciosamente impugnado.
Daí que, no seguimento do referido parecer, nos pronunciemos pela procedência do recurso jurisdicional quanto ao julgamento do vício de violação do artigo 315.º, n.º 1, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, por omissão de invocação/concretização da inviabilização da manutenção da situação funcional, e pela sua improcedência quanto ao vício de violação do princípio da proporcionalidade.
Ao que então dissemos, apenas se nos oferece aditar, face ao argumentário do acórdão, que o juízo acerca da inviabilização da situação jurídico-funcional cabe à Administração. Não ao Tribunal, por mais graves e censuráveis que sejam os factos apurados no processo disciplinar. Ora, salvo melhor juízo, a Administração não fez esse juízo e o Tribunal não pode substituir-se-lhe, sob pena de invasão do espaço decisório que a ela cabe, com a inerente violação da regra da separação dos poderes.
Termos em que, na procedência da alegada falta de invocação ou concretização da cláusula geral da inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional, deve conceder-se provimento ao recurso jurisdicional, revogando-se a inerente decisão do Tribunal de Segunda Instância e, no provimento do recurso contencioso, anular-se o acto impugnado”; (cfr., fls. 351 a 353).

*

Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Acórdão ora recorrido indica e elenca como “provada” a factualidade seguinte:

“1. Em 10 de Agosto de 1990, a recorrente começou a trabalhar na Direcção dos Serviços de Justiça (a entidade precedente da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça – "DSAJ") e exercia funções de terceiro-oficial; de 22 de Setembro de 1999 a 21 de Setembro de 2014 era a chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ.
2. A Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ é responsável pela administração dos bens imobiliários da DSAJ, incluindo os lugares de estacionamento alugados pela DSAJ no Edifício Administração Pública e em outros sítios, que eram no total cerca de 100 em número. O trabalho da administração dos lugares de estacionamento era supervisionado pela chefe (recorrente).
3. Em 21 de Dezembro de 2010, os Serviços de Saúde devolveram à DSAJ o lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "[EDIFÍCIO(1)]"; a partir de então, o lugar de estacionamento acima mencionado ficou a ser administrado e supervisionado pela Divisão Financeira e Patrimonial do Departamento de Gestão Administrativa e Financeira da DSAJ.
4. Em 31 de Dezembro de 2010, o Departamento de Gestão Administrativa e Financeira da DSAJ colocou o lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "[EDIFÍCIO(1)]" à disposição do Departamento de Reinserção Social.
5. Mais tarde, quando o Departamento de Reinserção Social deixou de continuar a usar o lugar de estacionamento acima mencionado do auto-silo do "[EDIFÍCIO(1)]", não avisou por escrito o Departamento de Gestão Administrativa e Financeira; a notificação foi feita apenas pelo condutor do Departamento de Reinserção Social D à Divisão Financeira e Patrimonial; enquanto a recorrente não comunicou o caso ao seu superior – o chefe do Departamento E.
6. Nos inícios de 2012, D devolveu pessoalmente os controlos remotos acima mencionados à recorrente.
7. Depois, sem autorização do seu superior, a recorrente começou a usar pessoalmente em segredo os controlos remotos acima mencionados, a entrar com o carro no auto-silo do "[EDIFÍCIO(1)]" e a estacioná-lo no lugar de estacionamento n.º 6.
8. Mais tarde, ao saber que a irmã mais nova dela (F) e os familiares não conseguiam encontrar um lugar de estacionamento para estacionar, a recorrente disse à irmã mais nova que podia estacionar gratuitamente no lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "[EDIFÍCIO(1)]".
9. O sobrinho da recorrente G (o 2.º arguido no processo penal) ficou a saber dos seus pais que podia estacionar no lugar de estacionamento acima mencionado, então estacionava o seu veículo ligeiro n.º MJ-XX-XX lá. Mais tarde, G obteve os controlos remotos e usava-os.
10. Como G queria usar o seu motociclo (n.º ML-XX-XX) enquanto meio de interligação, então colocava também o seu motociclo (n.º ML-XX-XX) no auto-silo acima mencionado a fim de poder usar o motociclo acima mencionado como interligação antes o depois de usar o veículo ligeiro acima mencionado.
11. Então, em Abril de 2012, a recorrente tomou a iniciativa de alugar, em nome da DSAJ, um lugar vago atrás do lugar de estacionamento acima mencionado à associação dos proprietários do Edifício "[EDIFÍCIO(1)]", contra o pagamento da renda mensal de MOP$200,00. Mais tarde, G entrava no lugar vago conduzindo o seu motociclo, para que pudesse utilizar os 2 veículos acima mencionados de forma alternativa.
12. Mais tarde, receando que o pessoal de administração do "[EDIFÍCIO(1)]" ficasse a saber do facto de que o veículo ligeiro acima mencionado não era veículo público do governo, que alguém apresentasse queixa e que o caso ficasse revelado, então a recorrente utilizou o computador público no escritório na DSAJ e em um papel timbrado da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça (no qual estavam impressos o brasão de armas da RAEM e os nomes em chinês e em português da DSAJ da RAEM) imprimiu "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado MJ-XX-XX", timbrou o papel com o selo da DSAJ; e depois fez colocar o papel dentro de uma capa em plástico com cola.
13. Aproximadamente em Julho do mesmo ano, a recorrente entregou o "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado" acima mencionado feito por ela própria ao marido da irmã mais nova H e à irmã mais nova F. Disse-lhes que deviam colocar o "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado" acima mencionado perto do pára-brisa da parte da frente do veículo ligeiro acima mencionado quando eles ou G estacionavam o veículo ligeiro acima mencionado no lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "[EDIFÍCIO(1)]"; para induzirem o pessoal de administração do "[EDIFÍCIO(1)]" em engano que pensasse que o veículo tivesse sido especialmente autorizado pelo governo para poder ser estacionado no lugar de estacionamento acima mencionado.
14. Mais tarde, ao estacionar o seu veículo ligeiro no lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "[EDIFÍCIO(1)]", G colocava o "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado" acima mencionado perto do pára-brisa da parte da frente do veículo ligeiro.
15. Era assim até Janeiro de 2013, quando o CCAC recebeu uma queixa segundo a qual o veículo ligeiro acima mencionado estava estacionado no lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do "[EDIFÍCIO(1)]" possuído pelo governo, e suspeitava-se um caso de uso indevido de bem público por particulares. Então foi aberta a investigação e em Fevereiro do mesmo ano foram pedidas à DSAJ informações sobre o lugar de estacionamento gerido pela DSAJ.
16. Como era a recorrente que estava responsável pela administração das informações acima mencionadas, ao saber que o CCAC estava a pedir as informações, a recorrente calculou que os seus actos tinham sido denunciados; então no último terço de Março do mesmo ano, através da irmã mais nova F, disse a G que não continuasse a estacionar o veículo ligeiro no lugar de estacionamento acima mencionado. A partir de então, G deixou de estacionar lá.
17. Após isso, ao preparar as informações em resposta ao CCAC, a recorrente não enumerou deliberadamente as informações sobre o lugar de estacionamento acima mencionado. Só quando o CCAC pediu expressa e explicitamente informações sobre o lugar de estacionamento acima mencionado é que a recorrente forneceu as informações ao superior para responder ao CCAC.
18. Depois o CCAC tomou acções e encontrou através da busca o "cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado" em causa dentro do compartimento em uma das portas do veículo ligeiro acima mencionado; e apreendeu 2 controlos remotos da recorrente e de G, respectivamente.
19. Na altura, enquanto chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ, a recorrente tinha a responsabilidade de cumprir os seus deveres de administrar os bens da DSAJ, de fazer propostas ao superior e prestar contas em relação à utilização dos bens; no entanto, a fim de obter para si própria e para outrem benefícios ilegítimos, a recorrente fez uso dos seus poderes profissionais, enganou o seu superior e os subordinados e escondeu-lhes a verdade, não só não cumpriu o seu dever de comunicar o superior da situação da utilização o lugar de estacionamento acima mencionado e de devolver os controlos remotos, bem pelo contrário, utilizou ou fez com que outrem utilizasse indevidamente o lugar de estacionamento acima mencionado. Mais tarde, tendo recebido a ordem e os requerimentos legítimos, não providenciou propositadamente as informações relativas ao lugar de estacionamento acima mencionado ao seu superior e ao CCAC, com a intenção de esconder os factos.
20. Na altura, enquanto chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ, a recorrente fez uso dos seus poderes profissionais para roubar o papel timbrada e o selo da DSAJ, falsificou um documento que parecia um documento oficial emitido pelo governo da RAEM, com a intenção de obter para outrem interesses ilegítimos.
21. A recorrente sabia perfeitamente que os actos acima mencionados eram proibidos e seriam punidos pela lei.
22. Por causa dos actos acima mencionados, a arguida ficou envolvida no processo penal comum colectivo n.º CR2-15-0338-PCC do TJB; após o julgamento, o tribunal confirmou o conteúdo dos pontos 1 e 21 acima mencionados. Já em 29 de Janeiro de 2018, o processo transitou em julgado. A arguida foi condenada pelo tribunal por ter cometido, em autoria material, de formas dolosa e consumada, 1 "crime de abuso de poder" p. e p. pelo art.º 347.º do CP, a 9 meses de pena de prisão; por ter cometido, em autoria material, de formas dolosa e consumada, 1 "crime de falsificação de documento de especial valor por funcionário" p. e p. pelo art.º 244.º, n.º 1, alínea a) conjugado com o art.º 245.º e o art.º 246.º, n.º 1 do CP, a 1 ano e 3 meses de pena de prisão; em cúmulo jurídico, a arguida foi condenada na totalidade à pena única de prisão de 1 ano e 6 meses e foi-lhe autorizada a suspensão da execução da pena por 2 anos, com a condição de que a arguida devia pagar a contribuição no valor de 10.000,00 à RAEM dentro de 1 mês depois do trânsito em julgado da decisão.
23. De acordo com os factos provados na sentença proferida pelo tribunal, o instrutor redigiu o relatório n.º 03/DSAJ/DAT/2018, tendo considerado as circunstâncias atenuantes e agravantes, propôs aplicar à recorrente a pena de demissão, à luz do art.º 315.º, n.º 2, alínea n) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (doravante designado simplesmente por "Estatuto"), "com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar".
24. Em 25 de Julho de 2018, a entidade recorrida proferiu o despacho. Como a recorrente acabou por ser condenada pelo tribunal por ter cometido o "crime de abuso de poder" e o "crime de falsificação de documento de especial valor por funcionário", decidiu aplicar recorrente a pena de demissão; porque o caso faria com que os cidadãos duvidassem da honestidade dos funcionários ao exercerem as funções e impactaria enormemente a imagem em geral do governo da RAEM.
*
A decisão punitiva contém o seguinte teor:
Assunto: Processo Disciplinar da DSAJ n.º 03/DSAJ/DAT/2013
Arguida: A
Em conformidade com a informação n.º 03/DSAJ/DAT/2018 do instrutor do processo disciplinar da DSAJ n.º 03/DSAJ/DAT/2013 e o parecer complementar do assessor deste Gabinete n.º 150/CSH/GSAJ/2018, e ao abrigo dos art.ºs 322.º, 337.º e 339.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau aprovado pelo D.L. n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro (adiante designado por “Estatuto”), com a delegação de poderes da Ordem Executiva n.º 109/2014, o signatário decide o seguinte:
1. A, arguida no presente processo disciplinar, durante o período no exercício das funções do Chefe da Divisão Financeira e Patrimonial da DSAJ, não exerceu as suas funções com grande dedicação, não relatou atempadamente ao Chefe do Departamento de Gestão Administrativa e Financeira da DSAJ, E, a restituição do lugar de estacionamento n.º 6 do auto-silo do “[EDIFÍCIO(1)]” pelo Departamento de Reinserção Social, ao contrário, ocultou o facto de desocupação do mesmo lugar de estacionamento e falsificou um “cartão de estacionamento para veículo especialmente autorizado”, daí, a conduta da arguida violou gravemente os deveres gerais de zelo e de lealdade previstos no art.º 279.º n.º 2 al.s b) e d) do Estatuto e o dever especial previsto no art.º 11.º n.º 2 da Lei n.º 15/2009, ora Disposições Fundamentais do Estatuto do Pessoal de Direcção e Chefia.
2. A arguida praticou dolosamente a infracção disciplinar, ocultou a situação verdadeira do património que lhe cumpre administrar, com intenção de obter para si ou para outrem benefício ilícito, impediu a DSAJ de usar o lugar para estacionamento que pudesse ter usado, resultando em prejuízo patrimonial da DASJ.
3. O incidente foi revelado e divulgado pelos órgãos de comunicação social, a conduta da arguida causou obviamente influências negativas à imagem da DSAJ. A arguida foi condenada pelo Tribunal pela prática de crime de abuso de poder e de crime de falsificação de documentos de valor especial por funcionário público, levando os cidadãos a duvidar a honestidade de cumprimento das funções pelos funcionários públicos e influenciando a imagem global do Governo da RAEM.
4. Dispõe o art.º 315.º n.º 2 alínea n) do Estatuto que: àqueles que “com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar” são aplicáveis as penas de aposentação compulsiva ou de demissão. No caso da arguida, estão preenchidos os requisitos referidos.
5. Porém, a arguida é contribuinte do Regime de Previdência dos Trabalhadores dos Serviços Públicos, não lhe é aplicável a pena de aposentação compulsiva.
6. Dispõe o art.º 316.º n.º 1 e 2 do Estatuto que, as penas graduar-se-ão de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes que no caso concorram e atendendo nomeadamente ao grau de culpa do infractor e à respectiva personalidade. Ponderado o especial valor das circunstâncias atenuantes ou agravantes que se provem no processo, poderá ser especialmente atenuada ou agravada a pena, aplicando-se pena de escalão mais baixo ou de escalão superior do que ao caso caberia.
7. Não considera de novo os danos causados pela infracção disciplinar da arguida como circunstância agravante, isto é, a circunstância agravante prevista pelo art.º 283.º n.º 1 alínea b) do Estatuto: “A produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta”.
8. Conforme o seu registo das informações pessoais, existe circunstância atenuante prevista pelo art.º 282.º alínea a) do Estatuto: “A prestação de mais de 10 anos de serviço classificados de «Bom»”.
9. Entretanto, a arguida foi condenada pelo Tribunal pela prática, em autoria material e da forma dolosa e consumada, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 347.º do Código Penal, e de um crime de falsificação de documentos de valor especial por funcionário público, p. e p. pelo art.º 244.º n.º 1 alínea a), em conjugação com os art.º 245.º e 246.º n.º 1. Pode-se ver que, é muito grave o grau de culpa da arguida, embora haja a circunstância atenuante referida, a pena não pode ser especialmente atenuada, nem se pode, como propôs o instrutor, aplicar a pena de suspensão de funções, atenuando a pena de escalão mais baixo do que ao caso caberia.
10. Pelo exposto, nos termos do art.º 316.º n.º 1 e 2 do Estatuto, ponderando o grau de culpa da arguida, a sua personalidade, a gravidade da infracção disciplinar e a circunstância atenuante, decide aplicar à arguida a pena de demissão.
11. Se não se conformar com a decisão, pode interpor recurso contencioso ao TSI dentro de 30 dias.
12. Notifique a DSAL nos termos legais”; (cfr., fls. 225 a 228-v e 4 a 56 do Apenso).

Do direito

3. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, vem A recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, datado de 16.01.2020, que negando provimento ao seu (anterior) recurso contencioso, confirmou a decisão com a qual lhe foi aplicada a pena disciplinar de demissão.

Apreciando o recurso que lhe foi apresentado, e ponderando na “factualidade” que considerou provada, no aludido Acórdão ora recorrido assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“A resolução do presente recurso passa pela análise e resolução das seguintes questões, por a Recorrente entender que a decisão ora posta em crise padece dos seguintes vícios:
1) – Erro nos pressupostos de facto e de direito;
2) – Violação do artigo 315º/1 do ETAPM;
3) – Violação do princípio de proporcionalidade.
*
Comecemos pela primeira questão.
A Recorrente argumentou da seguinte forma: depois ter sido instaurado o respectivo processo disciplinar contra ela por ter sido imputados factos constitutivos da infracção disciplinar, ela chegou a trabalhar mais de 4 anos e depois, por iniciativa própria, ela saiu da função pública mediante exoneração voluntária. O que é suficiente para demonstrar que os factos a ela imputados não eram suficientes para concluir pela inviabilidade da manutenção da relação laboral com a Administração Pública.
Neste ponto, o Digno. Magistrado do MP junto deste TSI bem posicionou a questão e teceu argumentos bem fundamentados que merecem a nossa concordância:
“(…) A invocação da inviabilização da manutenção da relação funcional deve feita no acto de aplicação da pena e mediante ponderação do acervo de elementos que venham a ser recolhidos no processo disciplinar. Até à aplicação da pena, e salvo caso de suspensão preventiva, a que é alheia qualquer ideia de inviabilização da relação funcional, o arguido num processo disciplinar mantém-se em funções. Foi o que sucedeu, tendo-se a situação prolongado por vários anos devido à demora do processo- crime, sendo certo que o prazo para ultimação do processo disciplinar esteve suspenso até ao trânsito em julgado da sentença proferida no processo penal. Portanto, a permanência em funções não pode, só por si, significar que os factos infraccionais investigados em processo disciplinar não irão conduzir a um veredicto de inviabilização da manutenção da relação jurídico-funcional. (…)”.
Nesta óptica, são infundados os argumentos da Recorrente e como tal é de julgar improcedente o recurso por ela interposto nesta parte.
*
Relativamente à 2ª questão, que é a de saber se a decisão recorrida violou ou não o artigo 315º/1 do ETAPM.
Ora, o artigo 315º (Aposentação compulsiva ou demissão) o ETAPM dispõe:
1. As penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.
2. As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos funcionários e agentes que, nomeadamente:
a) Agredirem, injuriarem ou desrespeitarem gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, nos locais de serviço ou em serviço;
b) Praticarem actos de insubordinação ou de indisciplina graves ou incitarem à sua prática;
c) No exercício das suas funções praticarem actos manifestamente ofensivos das instituições e princípios constitucionais;
d) Praticarem ou tentarem praticar qualquer acto que lese ou contrarie os superiores interesses do Estado ou do Território;
e) Participarem infracção disciplinar de algum funcionário ou agente, com falsidade ou falsificação, quando daí resulte a injusta punição do denunciado;
f) Dentro do mesmo ano civil derem 20 faltas seguidas ou 30 interpoladas, sem justificação;
g) Revelem comprovada incompetência profissional;
h) Violarem segredo profissional ou cometerem inconfidências de que resultem prejuízos materiais ou morais para a Administração ou para terceiro;
i) Em resultado do lugar que ocupem, aceitarem ilicitamente ou solicitarem, directa ou indirectamente, dádivas, gratificações, participações em lucros ou outras vantagens patrimoniais, ainda que sem o fim de acelerar ou retardar qualquer serviço ou expediente;
j) Comparticiparem ilicitamente em oferta ou negociações de emprego público;
l) Forem encontrados em alcance ou desvio de dinheiros públicos;
m) Tomarem parte ou interesse, directamente ou por interposta pessoa, em qualquer contrato celebrado ou a celebrar com qualquer organismo ou serviço da Administração;
n) Com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar;
o) Forem condenados, por sentença transitada em julgado em que seja decretada pena de demissão ou, por qualquer forma, revelem indignidade ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
3. A pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o funcionário ou agente reunir o período mínimo de 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, na ausência do que lhe será aplicada a pena de demissão.
É de ver que o legislador enumera várias situações em que pode ser aplicada a pena de demissão. O aplicador do direito tem o dever de indicar expressa e correctamente os fundamentos para tomar a respectiva decisão, expondo com clareza e lógica o seu raciocínio.
Compulsados os elementos constantes dos autos, a decisão sancionatória foi tomada com base nos seguintes argumentos:
“(…)
1. A arguida praticou dolosamente a infracção disciplinar, ocultou a situação verdadeira do património que lhe cumpre administrar, com intenção de obter para si ou para outrem benefício ilícito, impediu a DSAJ de usar o lugar para estacionamento que pudesse ter usado, resultando em prejuízo patrimonial da DASJ.
2. O incidente foi revelado e divulgado pelos órgãos de comunicação social, a conduta da arguida exerceu obviamente influências negativas à imagem da DSAJ. A arguida foi condenada pelo Tribunal pela prática do crime de abuso de poder e do crime de falsificação de documentos de valor especial por funcionário público, levando os cidadãos a duvidar a honestidade de cumprimento das funções pelos funcionários públicos e influenciando a imagem global do Governo da RAEM. (sublinhado nosso)
3. Dispõe o art.º 315.º n.º 2 alínea n) do Estatuto que: àqueles que “Com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar” são aplicáveis as penas de aposentação compulsiva ou de demissão. No caso da arguida, estão preenchidos os requisitos referidos. (sublinhado nosso)
4. Porém, a arguida é contribuinte do Regime de Previdência dos Trabalhadores dos Serviços Públicos, não lhe é aplicável a pena de aposentação compulsiva.
5. Dispõe o art.º 316.º n.º 1 e 2 do Estatuto que, As penas graduar-se-ão de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes que no caso concorram e atendendo nomeadamente ao grau de culpa do infractor e à respectiva personalidade. Ponderado o especial valor das circunstâncias atenuantes ou agravantes que se provem no processo, poderá ser especialmente atenuada ou agravada a pena, aplicando-se pena de escalão mais baixo ou de escalão superior do que ao caso caberia.
6. Não considero de novo os danos causados pela infracção disciplinar da arguida como circunstância agravante, isto é, a circunstância agravante prevista pelo art.º 283.º n.º 1 alínea b) do Estatuto: “A produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta”.
7. Conforme o seu registo das informações pessoais, existe circunstância atenuante prevista pelo art.º 282.º alínea a) do Estatuto: “A prestação de mais de 10 anos de serviço classificados de «Bom»”.
8. Entretanto, a arguida foi condenada pelo Tribunal pela prática em autoria material e da forma dolosa e consumada dum crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 347.º do Código Penal, e dum crime de falsificação de documentos de valor especial por funcionário público, p. e p. pelo art.º 244.º n.º 1 alínea a), em conjugação com os art.º 245.º e 246.º n.º 1. Pode-se ver que, é muito grave o grau de culpa da arguida, embora haja a circunstância atenuante referida, a pena não pode ser especialmente atenuada, nem se pode, como propôs o instrutor, atenuando, aplicar a pena de suspensão de funções, pena de escalão mais baixo do que ao caso caberia.
9. Pelo exposto, nos termos do art.º 316.º n.º 1 e 2 do Estatuto, ponderando o grau de culpa da arguida, a sua personalidade, a gravidade da infracção disciplinar e a circunstância atenuante, decido aplicar à arguida a pena de demissão.
10. Se não se conformar com a decisão, pode interpor recurso contencioso ao TSI dentro de 30 dias. (…)”.
Ora, na aplicação das penas, deve atender-se a um conjunto de factores:
- A natureza e a gravidade dos factos;
- A categoria do funcionário ou agente;
- A sua personalidade;
- O grau de culpa do infractor;
- Os danos e prejuízos causados;
- A perturbação produzida no normal funcionamento dos serviços;
Em geral, a todas as circunstâncias em que a infracção tiver sido cometida que militem contra ou a favor do arguido.
A decisão acima transcrita faz referência aos factos cometidos pela Recorrente que põe em causa a imagem do serviço a quem a mesma pertencia, o que, tendo em conta a natureza e a gravidade dos factos, determina a inviabilidade da manutenção da relação de emprego público com a arguida/Recorrente.
É ideia dominante que “as penas de inactividade ou de aposentação compulsiva e demissão são aplicáveis às infracções a seguir indicadas, conforme, ponderadas todas as circunstâncias atendíveis, inviabilizem ou não a manutenção da relação funcional”, o que significa que não basta a prática de “conduta constitutiva de crime…que possa atentar contra o prestígio e dignidade da função” ou que traduza a “violação de segredo profissional e omissão de sigilo devido relativamente aos assuntos conhecidos em razão do cargo ou da função, sempre que daí resulte prejuízo para o desenvolvimento do trabalho policial ou para qualquer pessoa” (Ac. do STA de 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Há-de haver, além disso, um “quid” perturbador da relação de confiança recíproca que inviabilize a manutenção do vínculo profissional. Como ainda recentemente se disse em aresto do STA, a pena de demissão aplica-se «a comportamentos que atinjam um grau de desvalor de tal modo grave que mine e quebre, definitiva e irreversivelmente, a confiança que deve existir entre o serviço público e o agente» (Ac. do STA de 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Como se decidiu no Ac. de 01.04.2003 do mesmo Supremo – Rec. 1.228/02, “A valoração das infracções disciplinares como inviabilizantes da manutenção da relação funcional tem de assentar não só na gravidade objectiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do acto e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções” (no mesmo sentido, os acórdãos de 18.6.96, proc.º nº 39.860, de 16.5.02, proc.º nº 39.260, de 5.12.02, proc.º nº 934/02, de 24/03/2004, Proc. nº 0757/03; e 11/10/2006, Proc. nº 010/06).
Quer dizer, se é certo que ao órgão com competência disciplinar se reconheça «no preenchimento dessa cláusula geral, ampla margem de liberdade administrativa, tal tarefa está limitada pelos princípios da imparcialidade, justiça e proporcionalidade – além de ficar, depois, sujeita ao poder sindicante dos tribunais administrativos, se forem detectáveis erros manifestos» (cf. o cit. 24/03/2004, Proc. nº 0757/03; tb. AC. do STA/Pleno de 19/03/99, Proc. nº 030896).
Ou, como é dito noutro aresto do STA do Portugal, “…o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, (…) constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante um juízo de prognose. Contudo, a jurisprudência do STA, tem realçado que tais juízos têm de assentar em pressupostos como a gravidade objectiva do facto cometido, o reflexo no exercício das funções e a personalidade do agente se revelar inadequado para o exercício de funções públicas. Confrontar, a título meramente exemplificativo, os Acs. de 6-10-93 – Rec. 30463 e de 18-6-96 – Rec. 39860” (Ac. do STA de 2/12/2004, Proc. nº 01038/04).
A aplicação de uma medida expulsiva - quer se trate de demissão quer de aposentação compulsiva - só pode ter lugar quando a conduta do infractor atinge de tal forma grave o prestígio e a credibilidade da instituição de que faz parte que a sua não aplicação não só iria contribuir para degradar a imagem de seriedade e de isenção dessa instituição como também poderia ser considerada pela opinião pública como chocante ou escandalosa.
É o caso dos autos. Pois, neste ponto foram tecidos os seguintes argumentos:
Nos termos do disposto no artigo 315.° n.° 2 alínea n) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, “Com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar;”, as penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, os actos da arguida estão em conformidade com os elementos constitutivos referidos.
Sendo certo que a fundamentação podia ser aperfeiçoada, mas pela forma da argumentação e pelos factos invocados, entendemos que a fundamentação cumpriu as exigências mínimas, expondo com clareza o raciocínio de quem tinha a competência para decidir, invocando os factos básicos que levam à conclusão da impossibilidade de manutenção da relação laboral entre a arguida/Recorrente e a Administração Pública.
Ora, nesta matéria, é do entendimento que a aplicação daquelas penas expulsivas aos funcionários ou agentes da função pública depende da prática de “infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional” (art.º 315º/1 do ETAPM), isto é, de comportamentos capazes de minar de forma inapagável não só a imagem de prestígio e de credibilidade daquela instituição como também a confiança que nelas depositam os cidadãos e que, por isso, impossibilitem a relação de confiança indispensável à manutenção do vínculo funcional.
No caso, estão verificados os requisitos exigidos para aplicar tal pena de demissão tal como afirmou a Entidade Recorrida na decisão recorrida.
Pelo que, é de julgar improcedente o recurso nesta parte por não se verificar o alegado vício da violação do artigo 315º/1 do ETAPM.
*
Finalmente, resta ver a última questão que é a violação do princípio da proporcionalidade.
O princípio de proporcionalidade, entendido, em sentido amplo, como proibição do excesso, postula que a Administração prossiga o interesse público pelo meio que represente um menor sacrifício para as posições dos particulares. Incorpora, como subprincípio constitutivo, o princípio da exigibilidade, também conhecido como princípio da necessidade ou da menor ingerência possível, que destaca a ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível.
Para maior operacionalidade deste princípio, a doutrina acrescenta, entre outros elementos, o da exigibilidade espacial, que aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção na esfera jurídica das pessoas cujos interesses devam ser sacrificados (vd. J. J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 266, ss.).
Os factos imputados à Recorrente integram na infracção prevista no artigo 315º/2-n) do ETAPM, por ter sido condenada criminalmente pela prática de factos integradores do crime de abuso de poder e do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 244º/1-a), 245º e 246º/1, e, ainda 347º, todos do CPM, circunstâncias estas que levaram a Entidade Recorrida a aplicar-lhe a pena de demissão, por entender que tais factos causaram impacto negativo na instituição que albergava a Recorrente e se revelou susceptível de atingir a dignidade de que é credora e o prestígio do organismo governamental em que se integra; entendendo também que se mostra suficientemente justificada a inviabilidade da manutenção da relação funcional, o que justificava, no entender da Entidade Recorrida, o recurso à sanção radical de demissão.
Sopesando as vantagens e os inconvenientes da aplicação de uma pena expulsiva, afigura-se-nos que esta aplicação é necessária para atingir os fins de reposição do prestígio da instituição abalado com a conduta da Recorrente, tendo em conta a gravidade dos factos cometidos.
Somos, pois, de opinião que a aplicação de uma pena expulsiva não é, no caso, excessiva e, portanto, é proporcionada, tanto para os interesses do particular como para o interesse público. Daí que se conclua que o acto punitivo deve ser mantido por não violar o princípio da proporcionalidade.
Julga-se, deste modo, improcedente o recurso nesta parte.
(…)”; (cfr., fls. 228-v a 234).

Insurgindo-se contra o assim decidido, e nas suas – longas – conclusões, diz a recorrente que “O douto Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento quanto ao regime concretamente aplicável ao caso sub judice, decorrente de uma errónea interpretação e aplicação in casu do n.º 1 do artigo 315.º do ETAPM, por erro na qualificação jurídica dos factos, violando esta disposição legal, e erro de julgamento por violação do princípio da proporcionalidade, verificando-se um vício de violação de lei”; (cfr., conclusão II).

Porém, e não obstante com tal afirmação assacar ao Acórdão recorrido um “erro de direito (no enquadramento jurídico dos factos provados)”, dedica, posteriormente, vários parágrafos (seguintes) das suas conclusões a manifestar a sua discordância em relação à “decisão sobre a matéria de facto”, considerando-a “insuficiente e incompleta”, em especial, no que toca a factos que entende provados e que lhe seriam favoráveis para efeitos de conduzir (eventualmente) a uma outra decisão, concluindo também, que padecia igualmente a decisão de “falta de fundamentação”; (cfr., conclusões IV a XXXII).

–– Comecemos pela assacada “insuficiência da matéria de facto”.

Pois bem, mostram-se-nos adequadas as seguintes considerações.

Desde já cabe notar que constitui objectivo do presente recurso a anulação do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância com a consequente (pretendida) anulação do acto administrativo com o qual se puniu a ora recorrente com a pena disciplinar de demissão.

Nesta conformidade, e certo sendo que tal “acto administrativo foi o culminar de todo um “processo” (disciplinar), onde, em respeito do princípio do contraditório, teve a ora recorrente todas as garantias de defesa (e de requerer o que por bem entendesse), apresenta-se-nos, no mínimo, estranho, que (apenas) em sede do presente recurso se invoque o “vício” em questão, especialmente, quando o mesmo não foi invocado no anterior recurso para o Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 2 a 48).

Por sua vez, não se pode olvidar que a competência deste Tribunal de Última Instância no que toca à “decisão da matéria de facto” é, por assim dizer, (algo) limitada, reservada estando para “situações extremas”.

Com efeito, e como sobre a “questão” já tivemos oportunidade de considerar, apenas excepcionalmente pode este Tribunal emitir pronúncia sobre tal matéria, pois que nos termos do art. 47°, n.° 1 da Lei n.° 9/1999, (“Lei de Bases da Organização Judiciária”), o Tribunal de Última Instância quando julga em recurso correspondente a segundo grau de jurisdição, (como é o caso), conhece de matéria de facto e de direito, “excepto disposições em contrário das leis de processo”.

E ao abrigo do art. 152° do C.P.A.C., o recurso dos Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas podem ter por fundamento a “violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada”.

Resulta, assim, do consignado que, em recurso jurisdicional de decisões de processo contencioso administrativo, o Tribunal de Última Instância, em princípio, apenas aprecia “questões de direito”, (e não tanto de facto).

Na verdade, a competência do Tribunal de Última Instância para apreciar a “decisão proferida quanto à matéria de facto” fica delimitada pelo n.º 2 do art. 649° do C.P.C.M., (subsidiariamente aplicável por força do disposto no art.º 1.º do C.P.A.C.), nos termos do qual, “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Nesta conformidade, o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, como é o caso, não pode censurar a convicção formada pelas Instâncias quanto à prova; podendo, porém, reconhecer, (e declarar), que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, (quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto), sendo assim, uma censura que se confina à “legalidade do apuramento dos factos e não respeita, directamente, à existência ou inexistência destes”; (cfr., v.g., entre outros, o Ac. de 27.11.2002, Proc. n.° 12/2002, de 24.03.2004, Proc. n.° 5/2004, de 02.06.2004, Proc. n.° 17/2003, de 29.06.2005, Proc. n.° 3/2005, de 14.12.2012, Proc. n.° 61/2012, de 16.05.2018, Proc. n.° 40/2018, e mais recentemente de 13.11.2019, Proc. n.° 85/2019).

E, sem embargo do muito respeito por opinião em sentido diverso, e como se apresenta evidente, in casu, muito longe desta(s) situação(ões) estamos…

Seja como for, não se deixa de consignar o que segue.

Na opinião da recorrente, a alegada “insuficiência” diz respeito a “matéria” que lhe seria favorável, e que podia/devia conduzir a uma outra pena disciplinar.

Ora, para além de se dever então – como já se referiu – considerar que a mesma matéria devia ser alvo de oportuna alegação e prova no “processo disciplinar” que culminou com a decisão disciplinar a que já se fez referência, cabe igualmente notar que carece a recorrente da razão, pois que a dita “matéria” – referente aos “anos de serviço” e “classificações de serviço” – consta, no que revela, na aludida decisão, o mesmo sucedendo com o “relatório final do processo disciplinar”, (cujo teor aquela integra, fazendo-o sua parte integrante), onde, à dita factualidade, é feita referência, (não se podendo olvidar também que na dita decisão se remete, expressamente, para tal relatório; cfr., §1° da decisão, onde se consigna que “em conformidade com a Informação n.° 03/DSAJ/DAT/2013 do instrutor do processo disciplinar…”, constituindo, exactamente, esta informação o “Relatório Final do Processo Disciplinar instaurado à ora recorrente”, vd. fls. 373 a 402, Vol. III, do Processo Administrativo em apenso aos presentes autos).

Em face do exposto, e sem necessidade de mais alongadas considerações, visto cremos que está que a questão colocada não pode proceder.

–– Por fim, vejamos da (falta de) “fundamentação” e “razoabilidade” da “decisão de aplicação da pena disciplinar de demissão”.

Também aqui, cremos que não se pode reconhecer razão à ora recorrente.

Na verdade, e antes de mais, cabe referir que a decisão é clara e perfeitamente lógica nos seus motivos de facto e de direito, dúvidas não havendo que, (adequadamente) fundamentada está, pois que, (como as transcritas e extensas conclusões da recorrente o demonstram), a mesma captou, na íntegra, todo o seu teor, alcance e sentido.

Por sua vez, no que toca à sua “razoabilidade” ou “proporcionalidade”, não se vislumbra motivo para qualquer censura.

Para já, porque, como sabido é, em sede do exercício do poder discricionário, como é o caso, aos Tribunais apenas cabe intervir em casos de “injustiça grave ou erro grosseiro”.

Na verdade, e como repetidamente temos afirmado, “a intervenção do Juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violam”; (cfr., v.g., entre outros, os Acórdãos de 15.10.2003, Proc. n.° 26/2003; de 29.06.2005, Proc. n.° 15/2005; de 12.01.2011, Proc. n.° 53/2010; de 21.01.2015, Proc. n.° 26/2014; de 05.12.2018, Proc. n.° 65/2018; de 04.04.2019, Proc. n.° 11/2019; de 29.11.2019, Proc. n.° 107/2019 e, mais recentemente, de 10.07.2020, Proc. n.° 41/2020).

No caso, evidente se nos apresenta que tal erro, (ou injustiça, grave), não se verifica.

Basta recordar (e salientar) que, em conformidade com a factualidade provada e atrás retratada, a conduta da ora recorrente prolongou-se por um período superior a “um ano”, (cfr., facto 6°, onde se dá conta que em inícios de 2012 recebeu os controlos remotos, desde aí mantendo a sua disponibilidade, passando a fazer uso abusivo do “parque de estacionamento” em questão até que, como se colhe dos factos 15° a 18°, o C.C.A.C. os apreendeu, o que ocorreu após Março de 2013), certo sendo que da dita factualidade resulta também que, tudo fez, ou tentou fazer, inclusivé, “falsificações de documentos de especial valor”, (de uso próprio dos serviços da R.A.E.M.), para manter e ocultar a ilicitude da situação, acabando por vir a ser condenada nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR2-15-0338-PCC do Tribunal Judicial de Base (nos termos descritos no facto provado n.° 22), tudo a demonstrar um comportamento altamente censurável e reprovável, totalmente impróprio de um “servidor público”.

Ora, perante isto, não se vêm razões para se considerar que (gravemente) desrespeitado foi o invocado “princípio da proporcionalidade”, e que irrazoável é a pena de “demissão” aplicada.

–– Aqui chegados, uma última nota se apresenta adequada.

Diz também a recorrente que a entidade administrativa recorrida não ponderou sobre a “(in)viabilidade da manutenção da sua relação funcional” para efeitos da decisão proferida; (sobre a questão, vd., v.g., os Acórdãos atrás referidos).

Não se nos apresenta que assim tenha acontecido.

Com efeito, para além do que se fez constar no “despacho punitivo” e que atrás se deixou transcrito, não se pode olvidar que o mesmo remete para o “Relatório” do Instrutor do Processo Disciplinar, e que, neste, mais precisamente, a pág. 25, ponto 7, § último, foi tal “matéria”, expressamente, ponderada, concluindo-se, em síntese, que pelas “circunstâncias e consequências da conduta da ora recorrente”, inviável era qualquer outra solução que não fosse a extinção do vínculo laboral; (cfr., fls. 397 do Vol. III do P.A. em anexo).

Dest’arte, e atento o que se deixou exposto, imperativa é a decisão que segue.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com a taxa de justiça de 8 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 31 de Julho de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa

Proc. 57/2020 Pág. 2

Proc. 57/2020 Pág. 1