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Processo nº 182/2020 Data: 27.01.2021
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Autorização de residência temporária. (Renovação).
Pressupostos.
“Residência habitual”.
Matéria de facto.
Princípio da boa fé.



SUMÁRIO

1. A “residência habitual”, (para efeitos de se saber se alguém tem ou não residência habitual em Macau), é um “conceito indeterminado” sindicável pelos Tribunais, devendo a decisão da sua verificação (ou não) assentar em “factos” considerados provados e como tal elencados em sede da respectiva “decisão da matéria de facto”.

2. A qualidade de “residente habitual”, implica, necessariamente, uma “situação de facto”, com uma determinada dimensão temporal e qualitativa, na medida em que aquela pressupõe também um “elemento de conexão”, expressando uma “íntima e efectiva ligação a um local” (ou território), com a real intenção de aí habitar e de ter, e manter, residência.

3. Daí que se mostre de exigir não só uma “presença física” como a (mera) “permanência” num determinado território, (a que se chama o “corpus”), mas que seja esta acompanhada de uma (verdadeira) “intenção de se tornar residente” deste mesmo território, (“animus”), e que pode ser aferida com base em vários aspectos do seu quotidiano pessoal, familiar, social e económico, e que indiquem, uma “efectiva participação e partilha” da sua vida social.

4. Verificada não estando a “residência habitual” na R.A.E.M. do requerente de uma renovação da sua autorização de residência temporária, necessária é a decisão do seu indeferimento por parte da Administração, nenhuma violação ao “princípio da boa fé” ocorrendo com tal decisão.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 182/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), com os restantes sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância do despacho do SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS de 29.03.2019 que lhe indeferiu o pedido de renovação da sua autorização de residência temporária em Macau; (cfr., fls. 2 a 16-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, por Acórdão de 02.07.2020, (Proc. n.° 473/2019), julgou-se procedente o recurso, anulando-se o acto administrativo recorrido; (cfr., fls. 82 a 107).

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Do assim decidido, traz agora a entidade administrativa então recorrida o presente recurso jurisdicional.

Alegou para concluir que:

“I. O conceito de residência habitual do art. 30, n. 2, do CC é valido para efeitos do art. 9, n. 3, da Lei 4/2003 e do art. 24, n. 2, do RA 5/2003, aplicáveis subsidiariamente às autorizações de residência concedidas ao abrigo do RA 3/2005;
II. Não tem residência habitual em Macau quem aqui entra nos dias em que trabalha, e só nestes, mas nunca aqui pernoita, não tendo aqui nada que se pareça com um lar ou habitação;
III. O centro efectivo e estável da vida pessoal de A é em Zuhai - é na cidade vizinha que está centrada a sua economia doméstica;
IV. Os motivos apresentados por A para justificar o facto de residir em Zuhai são irrelevantes para responder à questão de saber se ele tinha ou não residência habitual em Macau;
V. A administração não tem poderes discricionários para avaliar se uma pessoa tem ou não residência habitual em Macau;
VI. Concluindo que uma pessoa não tem residência habitual em Macau, a administração é obrigada a declarar a caducidade;
VII. A aplicação do princípio da boa-fé só releva quando a administração actua no uso de poderes discricionários;
VIII. No caso de A a administração estava obrigada a indeferir o seu pedido de renovação da autorização de residência sob pena de, em fraude à lei, permitir a continuidade de uma situação a que já devia ter posto termo através da declaração de caducidade;
IX. Portanto, ao julgar que A tinha residência habitual em Macau e que a administração violou o princípio da boa-fé, o tribunal a quo foi contra o disposto no art. 30, n. 2, do CC, no art. 9, n. 3, da Lei 4/2003, no art. 24, n. 2, do RA 5/2003 e no art. 8 do CPA”; (cfr., fls. 114 a 124).

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Respondeu o recorrente pugnando pela confirmação do Acórdão recorrido; (cfr., fls. 126 a 151).

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Oportunamente, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer opinando no sentido da procedência do recurso; (cfr., fls. 162 a 165-v).

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Colhidos os vistos dos Exmos Juízes-Adjuntos, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal de Segunda Instância indicou como “provada” a seguinte matéria de facto:

“1. Em 31 de Maio de 2011, o recorrente apresentou, pela primeira vez, ao IPIM o pedido da autorização de residência temporária sob a modalidade de técnicos especializados (vide as fls. 34 a 40 do PA).
2. Por despacho do Chefe do Executivo, datado de 13 de Agosto de 2012, foi concedida ao recorrente a autorização de residência temporária (vide as fls. 28 a 33 do PA).
3. Em 13 de Maio de 2015, o recorrente requereu ao IPIM a renovação da autorização de residência temporária, e na altura, declarou no seu pedido que residiu na cidade de Zhuhai, [Endereço] (vide as fls. 156 a 159 e 184 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
4. Em 28 de Maio de 2015, o recorrente apresentou ao IPIM o pedido de extensão da autorização de residência temporária à sua cônjuge B, e na altura, declarou no pedido que residiu na cidade de Zhuhai, [Endereço] (vide as fls. 194 a 197 e 248 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
5. Por despacho de 30 de Julho de 2016, proferido pela entidade recorrida conforme a delegação do Chefe do Executivo, foi renovada a autorização de residência temporária do recorrente, extensiva à sua cônjuge B (vide as fls. 150 a 155, e 188 a 193 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
6. Em 23 de Março de 2018, o recorrente requereu ao IPIM a renovação da autorização de residência temporária, e na altura, declarou no pedido que residiu na cidade de Zhuhai, [Endereço] (vide as fls. 272 a 275, e 511 do PA).
7. Por ofício n.º 05108/DJFR/2018, datado de 20 de Novembro de 2018, o IPIM notificou o recorrente de que, o registo de entrada e saída fornecido pelo CPSP mostrou que o recorrente não tinha residido habitualmente em Macau durante o período da autorização de residência temporária, e devia o recorrente apresentar a contestação por escrito no prazo de 10 dias (vide as fls. 481 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
8. Em 7 de Dezembro de 2018, o recorrente apresentou ao IPIM a contestação por escrito, indicando, designadamente, que tinha usado o Salvo-Conduto de visita familiar para deslocações entre Zhuhai e Macau, e que na maior parte do tempo, trabalhou em Macau durante o dia e pernoitou em Zhuhai com a sua cônjuge, os filhos e os pais, juntando, para efeitos de prova, o registo de entrada e saída no seu Salvo-Conduto (vide as fls. 440 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
9. Segundo mostra o registo de entrada e saída emitido pelo CPSP, desde o dia 1 de Janeiro de 2016 até ao dia 31 de Dezembro de 2016, o recorrente permaneceu em Macau por 241 dias (vide as fls. 320 a 409 do PA).
10. Desde Março de 2011 até ao presente, o recorrente A tem exercido o cargo de engenheiro de reparação de aviões (MECHANIC ENGINEER) na [Empresa].
11. O IPIM elaborou a Informação n.º 0490/2011/02R (datada de 1 de Março de 2019), sugerindo a autorização da renovação de residência temporária do recorrente (vide as fls. 265 a 269 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
12. O Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças elaborou a Proposta n.º 48/GC-SEF/2019 (datada de 29 de Março de 2019), sugerindo o indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária do recorrente (vide as fls. 253 a 259 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
13. A entidade recorrida proferiu despacho em 29 de Março de 2019, não aprovou o proposto na Informação n.º 0490/2011/02R do IPIM, e concordou com a Proposta n.º 48/GC-SEF/2019 do GSEF (vide as fls. 253 e 265 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
*
Depois, foi proferida a decisão de indeferimento do pedido com base na proposta a seguir transcrita:
Proposta
Assunto: Pedido de renovação da autorização de residência de A
N.º: 48/GC-SEF/2019
Data: 29/3/2019
Ex.mo Senhor Secretário para a Economia e Finanças:
A A, mecânico de aeronaves, foi oportunamente concedida autorização temporária de residência em Macau, ao abrigo do art.º 1.º, n.º 3, do RA 3/2005 (Regime de fixação de residência temporária de investidores, quadros dirigentes e técnicos especializados), enquanto técnico especializado ao serviço da [Empresa].
Terminando o prazo dessa autorização em 13.08.2018, requereu o interessado em 23.03.2018 a sua renovação.
O IPIM, em proposta entrada neste Gabinete em 04.03.2019, entende verificarem-se os requisitos necessários à renovação da autorização e propõe o deferimento do pedido.
Todavia, após análise do respectivo processo administrativo, surgiram dúvidas sobre se o requisito da “residência habitual” do requerente na RAEM estará devidamente preenchido. É esta a questão que passamos a analisar seguidamente.
Exigibilidade da residência habitual
Determina a Lei 4/2003 (Princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência), aplicável subsidiariamente às autorizações de residência concedidas ao abrigo do RA 3/2005 (art.º 23.º), que “A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência” (art.º 9.º, n.º 3).
E o art.º 24.º, n.º 2, do RA 5/2003 (Regulamento sobre a entrada, permanência e autorização de residência), que regulamenta aquela lei, e que é também subsidiariamente aplicável, especifica que é causa de caducidade “qualquer circunstância que, nos termos da lei de princípios e do presente regulamento, seja impeditiva da manutenção da autorização, nomeadamente a falta de residência habitual do interessado na RAEM”.
Residência habitual, no entanto, é um conceito indeterminado, que tem de ser preenchido pelo aplicador do Direito.
Conceito de residência habitual
A expressão “residência habitual” é bem conhecida dos juristas, pois é frequentemente utilizada pelo legislador, em diversos diplomas e para diversos fins – por exemplo, nos art.ºs 4.º e 24.º, da Lei Básica e no art.º 30.º, n.º 2, do Código Civil.
O Código Civil, nesse art.º 30.º, n.º 2, define residência habitual como sendo “o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal”.
O Prof. Alberto dos Reis ensinava que residência habitual e estável e residência permanente eram sinónimos1, considerando contudo não ser exigível que a pessoa viva sempre numa casa, podendo ter outra onde passe um, dois ou três meses por ano – por exemplo uma casa de campo ou de praia, onde se instale durante o verão2.
Na opinião do Prof. Luo Weijian, “O domicílio permanente é o local onde uma pessoa reside a com a intenção de ali permanecer por longo período de tempo. Em princípio, uma pessoa pode ter várias residências, entendidas estas como o local onde ele reside não para permanecer por longo período, antes por períodos transitórios, mas só pode ter um único domicílio, isto é, o local onde se estabelece permanentemente. A determinação do domicílio permanente é feita através da presunção de factos, por um lado, e através da declaração expressa da própria pessoa, por outro. De acordo com as disposições da Lei sobre Residente Permanente e Direito de Residência, o requerente declara primeiro que tem o seu domicílio permanente em Macau, e depois, tem que fornecer os respectivos elementos para provar, nomeadamente: ser Macau o local da sua residência habitual; ser Macau o local de residência habitual de familiares próximos, nomeadamente o cônjuge e os filhos menores; a existência de meios de subsistência estáveis ou o exercício de profissão em Macau; e o pagamento de impostos nos termos da lei”3.
O Supremo Tribunal de Justiça português, no seu acórdão de 02.12.2009, tirado no processo n.º 09A144, entendeu que, para que se fale em residência habitual, “é essencial, que o centro de permanência estável e duradoura se situe num determinado local, que aí esteja instalado o seu lar, organizada a sua logística, onde convive, e da qual, sempre que se ausenta, o faz a título transitório, ou temporário, e com o propósito de regressar com estabilidade, por lá permanecer a sua economia doméstica e o seu agregado familiar”. O mesmo tribunal, em acórdão de 10.10.2002, no processo n.º 2062/06, julgou que a residência permanente num determinado local exige que o centro da vida familiar esteja estabelecido em determinado local de forma estável, habitual, contínua e efectiva.
Segundo o Tribunal de Segunda Instância “o conceito de residência habitual coincide com o conceito de domicílio voluntário, consubstanciando-se como o local onde uma pessoa singular normalmente vive, tem o centro estável da sua vida pessoal e de onde se ausenta, em regra, por períodos mais ou menos curtos” (acórdão de 17.02.2014 no processo 42/2014).
Será, pois, necessário analisar as circunstâncias concretas de cada caso para se poder concluir se determinada pessoa tem ou não residência habitual em Macau – isto é, se tem ou não em Macau o centro da sua vida. Vejamos, então, quais os factos que estão provados no procedimento administrativo.
Os factos do caso em análise
Foi provado no procedimento administrativo que o requerente tem um contrato de trabalho com uma empresa de Macau e que aqui se desloca regularmente para trabalhar. No entanto ficou também provado, aliás pelas deslocações do próprio requerente, que ele não mora na RAEM, e nem sequer aqui pernoita. Após o trabalho regressa a Zhuhai, onde se encontra a casa da sua família e vive a sua esposa. O filho dele frequenta um estabelecimento de ensino em Macau, mas também regressa diariamente à casa da família em Zhuhai. É ainda nessa casa de Zhuhai que o interessado recebe e aloja os familiares que o visitam de vez em quando.
Isto é, o requerente desloca-se a Macau exclusivamente para trabalhar (e o respectivo filho estritamente para frequentar o ensino local), mas é de facto em Zhuhai que se encontra a sua casa, é em Zhuhai que vive a sua família, é em Zhuhai que ele pernoita, em Zhuhai que se encontra quando não tem de vir a Macau trabalhar. Por outras palavras, é em Zhuhai que, como diz o Código Civil, ele “tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal”.
Conclusão
Preenchido o conceito indeterminado de residência habitual, e verificando-se que os factos provados não correspondem a esse conceito, não deixa a lei qualquer liberdade de decisão à Administração.
Assim, quando tenha conhecimento de que não existe residência habitual em Macau, a Administração é obrigada a declarar a caducidade da autorização de residência, se esta ainda estiver em vigor (art.º 9.º, n.º 3, da Lei 4/2003 e art.º 24.º, n.º 2, do RA 5/2003, ex vi art.º 23.º do RA 3/2005). Nota-se que se trata de uma forma de caducidade que não opera automaticamente, tendo de ser declarada pela Administração.
No caso presente, no entanto, a autorização já expirou pelo decurso do tempo (caducidade esta que opera automaticamente). Poderá a Administração deferir o pedido de renovação? Entendemos, logicamente, que não pode, pela mesma razão: ficou provada a falta de residência habitual, que é um requisito fundamental para a subsistência dessa autorização. Na verdade, se a Administração é obrigada a declarar a caducidade da autorização quando tem conhecimento da falta de residência habitual, seria contraditória que, conhecendo esse facto, pudesse renovar a autorização.
Proposta:
Pelas razões expostas, propomos ao senhor Secretário que, no uso dos poderes que lhe foram delegados pela Ordem Executiva 56/2015, indefira o pedido de renovação da autorização de residência temporária apresentado por A, em 23.03.2018, ao abrigo do RA 3/2005”; (cfr., fls. 91-v a 95 e 51 a 59 do Apenso).

Do direito

3. Vem a entidade administrativa recorrer do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado que concedeu provimento ao recurso contencioso que o agora recorrido interpôs do acto administrativo que indeferiu a requerida renovação da sua autorização de residência temporária em Macau.

Em síntese, entende (a agora recorrente) que o recorrido não tem “residência habitual em Macau”, e que, como tal, impunha-se-lhe a decisão administrativa que proferiu que, por isso, foi indevidamente anulada com o Acórdão recorrido.

Vejamos.

A decisão de provimento do recurso contencioso proferida com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância objecto do presente recurso assenta em duas ordens de razões.

Uma primeira, na medida em que se considerou que através dos “elementos dos autos” se devia dar como verificada a “residência habitual” do ora recorrido em Macau, e, assim, que verificado estava o pressuposto (legal) pela entidade administrativa considerado em falta para a referida decisão de indeferimento da renovação da sua pretendida “autorização de residência temporária” (em Macau).

A segunda, dado que se entendeu que com a dita “decisão administrativa” se ofendeu o “princípio da boa fé”.

–– Nesta conformidade, comecemos por decidir da referida (e controvertida) “residência habitual” do recorrido em Macau.

Como se deixou relatado, o Acórdão recorrido deu por verificado que o recorrido tinha “residência habitual em Macau”.

Para tal, ponderou na sua “situação familiar e económica”; (cfr., fls. 100-v a 102-v).

Porém, (in casu, e pelos motivos que se irão expor), não nos parece que o pudesse – ou devesse – fazer.

É que a invocada “situação familiar e económica”, (e como se refere no Acórdão recorrido, “mormente, o estado de saúde do pai velho, padecendo de várias doenças …”) resulta tão só do teor de um mero expediente pelo recorrido apresentado, e que, como sem esforço se pode concluir de um cotejo com a factualidade elencada como “provada” na decisão da matéria de facto, assim não foi considerada, adequada não se apresentando desta forma a sua ponderação para a decisão proferida, (dúvidas não podendo também haver que ao ora recorrido caberia, primeiramente, o ónus de “provar” a dita “situação”, eventualmente, através do “depoimento de testemunhas” a inquirir em sede de produção de prova no seu recurso contencioso, o que não ocorreu porque nenhuma testemunha arrolou).

Assim, haverá pois que se decidir da verificação, ou não, de tal “residência habitual” com base no que pelo Tribunal a quo foi considerado como “provado” e como tal elencado na sua decisão sobre a matéria de facto.

E, então, o que temos?

Pois bem, a entidade administrativa ora recorrente, reflectindo sobre o alcance e sentido do conceito em questão, considerou, nomeadamente, que “residência habitual”, é “o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal”, “que residência habitual e estável e residência permanente eram sinónimos”, e aderindo ao entendido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 17.02.2014, (Proc. n.° 42/2014), considerou que “o conceito de residência habitual coincide com o conceito de domicílio voluntário, consubstanciando-se como o local onde uma pessoa singular normalmente vive, tem o centro estável da sua vida pessoal e de onde se ausenta, em regra, por períodos mais ou menos curtos”.

Seguidamente, (e vale a pena aqui recordar), considerou que «Foi provado no procedimento administrativo que o requerente tem um contrato de trabalho com uma empresa de Macau e que aqui se desloca regularmente para trabalhar. No entanto ficou também provado, aliás pelas deslocações do próprio requerente, que ele não mora na RAEM, e nem sequer aqui pernoita. Após o trabalho regressa a Zhuhai, onde se encontra a casa da sua família e vive a sua esposa. O filho dele frequenta um estabelecimento de ensino em Macau, mas também regressa diariamente à casa da família em Zhuhai. É ainda nessa casa de Zhuhai que o interessado recebe e aloja os familiares que o visitam de vez em quando.
Isto é, o requerente desloca-se a Macau exclusivamente para trabalhar (e o respectivo filho estritamente para frequentar o ensino local), mas é de facto em Zhuhai que se encontra a sua casa, é em Zhuhai que vive a sua família, é em Zhuhai que ele pernoita, em Zhuhai que se encontra quando não tem de vir a Macau trabalhar. Por outras palavras, é em Zhuhai que, como diz o Código Civil, ele “tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal”».

Ora, esta Instância já teve oportunidade de afirmar que “residência habitual”, (para efeitos de se saber se alguém tem ou não residência habitual em Macau), é um “conceito indeterminado” sindicável pelos Tribunais; (cfr., v.g., o Ac. de 03.05.2000, Proc. n.° 9/2000, de 21.10.2020, Procs. n°s 84/2020 e 140/2020, e de 18.12.2020, Proc. n.° 190/2020).

E, nesta conformidade, ponderando na factualidade no Acórdão recorrido elencada como “provada”, (apenas esta sendo válida e agora relevante), censura cremos que não merece o considerado e decidido pela entidade administrativa ora recorrente.

Na verdade, a “residência habitual”, (e como cremos que a própria expressão o diz), não pode deixar de implicar um “local” que, com a necessária e imprescindível estabilidade, constitua o “centro – habitual – de interesses” de uma pessoa (e da sua família), não nos parecendo que possa ser um “local de passagem”, de permanência ocasional ou esporádica, sob pena de se converter em “residência temporária e/ou acidental”.

Isto, como é óbvio, não se traduz numa (absoluta) impossibilidade de “ausência” – como pode suceder, por determinados períodos, como por exemplo, em resultado de compromissos profissionais, para férias ou visita de familiares e amigos – porém, (e recordando-se que só a “situação” em concreto o poderá esclarecer), no caso dos autos, constatando-se que correctas são as “considerações” pela recorrente efectuadas, (porque coincidentes com o que em sede de factualidade se apurou), inviável é dizer-se que o recorrido tem a sua “residência habitual” em Macau.

Como – bem – se salienta no douto Parecer do Ministério Público:

“(…)
A residência habitual é o centro em torno do qual gravitam as ligações existência de uma determinada da pessoa, é, para usarmos a expressiva formulação da jurisprudência do Tribunal Federal Alemão (veja-se, por exemplo, a decisão de 20.03.2019, no processo XII ZB 530/17, disponível online) o «Daseinsmittelpunkt» da pessoa a considerar.
Não constitui residência habitual o lugar que, ainda que numa base quotidiana, serve de passagem, ainda que para exercer uma actividade profissional e, portanto, ainda que mais ou menos prolongada, mas, ainda assim, uma passagem que não tem a estabilidade indispensável a radicar um centro existencial de vida e para escorar a formação paulatina, mas consistente de um vínculo de pertença à comunidade que forma o substrato pessoal da Região e que, a final, vá culminar na aquisição do estatuto de residente permanente pois que tal aquisição, de acordo com o artigo 24.° da Lei Básica pressupões justamente, a residência habitual em Macau.
Isto dito, parece-nos claro que, face à factualidade que foi dada como provada, que o Recorrido não tem residência habitual em Macau. Aqui, o Recorrido desloca-se apenas para trabalhar, ainda que várias vezes por semana, e pelo período indispensável para esse efeito. Mas de passagem. Isto é, sempre na perspectiva de regressar a casa, ou seja, de regressar ao local onde está assente a sua vida pessoal, familiar e social e que funciona como núcleo estável das suas ligações vivenciais e existenciais mais relevantes e que não se situa em Macau, mas na cidade vizinha de Zhuhai.
(…)”; (cfr., v.g., 164 a 164-v).

Não se olvida que, no momento actual, em que se acentuam os “fenómenos migratórios” (por todo o tipo de razões), necessário se torna adaptar o conceito de “residência habitual” em questão com o “direito e liberdade de circulação”; (cfr., sobre a questão, e especialmente para efeitos tributários, Ana Paula Dourado in, “Princípios de Direito Tributário Internacional”; M. Faustino in, “Os Residentes no Imposto Sobre o Rendimento Pessoal”; R. Mesquita in, “Regime fiscal dos residentes não habituais e os golden visas”, U.C.P., e, R. Duarte Morais in, “A Residência e as Convenções de Dupla Tributação”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano II, n.° 2, pág. 217 e segs.).

Porém, apresenta-se imprescindível que a qualidade – ou estatuto – de “residente habitual”, implica, necessariamente, uma “situação de facto”, com uma determinada dimensão temporal e qualitativa, na medida em que aquela pressupõe também a natureza de um “elemento de conexão”, expressando uma “íntima e efectiva ligação a um local” (ou território), com a real intenção de aí habitar e de ter, e manter, residência.

Daí que, muitas vezes – e em nossa opinião, adequadamente – se mostre de exigir não só uma “presença física” como a (mera) “permanência” num determinado território, (a que se chama o “corpus”), mas que seja esta acompanhada de uma (verdadeira) “intenção de se tornar residente” deste mesmo território, (“animus”), e que pode ser aferida com base em vários aspectos do seu quotidiano pessoal, familiar, social e económico, e que indiquem, uma “efectiva participação e partilha” da sua vida social, sendo de se notar que, nada disto se verifica in casu.

–– Adequada não se nos mostrando assim o que sobre esta “questão” decidido foi pelo Tribunal de Segunda Instância, cabe agora ver se desrespeitado foi o “princípio da boa fé”.

Consagrando o “princípio da boa fé” prescreve o art. 8° do C.P.A. que:

“1. No exercício da actividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé.
2. No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas e, em especial:
a) Da confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa;
b) Do objectivo a alcançar com a actuação empreendida”.

Todavia, como cremos ser pacífico, a invocação e alegação de desrespeito dos princípios fundamentais de direito administrativo – como é o caso do referido “princípio da boa fé” – só é relevante no exercício dos “poderes administrativos discricionários”, (ou seja, quando a Administração pode escolher a solução a adoptar com base em critérios de oportunidade e conveniência), e não no âmbito do exercício do “poder vinculado”, (em que não tem margem para optar ou para decidir, havendo aqui que se limitar a cumprir a Lei); (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.04.2020, Proc. n.° 7/2019, de 09.09.2020, Procs. n°s 56/2020, 62/2020 e 63/2020, de 16.09.2020, Proc. n.° 65/2020, de 14.10.2020, Proc. n.° 124/2020 e de 27.11.2020, Proc. n.° 157/2020).

Ora, nos termos do art. 9°, n.° 3 da Lei n.° 4/2003, (que estabelece os “Princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência”, in B.O. n.° 11/2003 de 17.03.2003): “A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência”.

Por sua vez, nos termos do art. 24°, al. 2) do Regulamento Administrativo n.° 5/2003, (“Regulamento sobre a entrada, permanência e autorização de residência” que desenvolve a supra referida Lei n° 4/2003; vd., B.O. n.° 15/2003 de 04.04.2003), é causa de caducidade da autorização de residência “Qualquer circunstância que, nos termos da lei de princípios e do presente regulamento, seja impeditiva da manutenção da autorização, nomeadamente a falta de residência habitual do interessado na RAEM”.

Atento o assim preceituado, e tendo a Administração entendido – e como se viu, adequadamente – que o ora recorrido não tinha “residência habitual” em Macau, apenas uma (só) solução lhe era possível adoptar: indeferir o pedido de renovação da sua autorização de residência.

Agiu, desta forma, (no cumprimento do legalmente estatuído), no exercício de um poder administrativo “vinculado”, adequada não sendo a relevância dada assim como a consideração de violação do aludido “princípio administrativo da boa fé”.

Dest’arte, e tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido.

Pelo seu decaimento pagará o recorrido a taxa de justiça de 8 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 27 de Janeiro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

1 Nota-se que no presente parecer falamos de residência permanente de facto, e não do estatuto jurídico da residência permanente, tal como entendido à luz da Lei Básica. Como bem assinalou o TUI no seu acórdão de 06.02.2002 (proc. 16/2001), há pessoas que têm o estatuto jurídico de residente permanente da RAEM e não têm aqui residência habitual, e vice-versa: há quem aqui resida habitualmente e não tenha aquela qualidade jurídica.
2 In Revista de Legislação e Jurisprudência 79.º, 118, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Português de 02.12.2009, tirado no proc. 09A144.
3 In Introdução à Lei Básica da RAEM, Fundação Macau, 2000, p. 106, citado no acórdão do TUI de 07.01.2015, tirado no processo 21/2014.
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