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Processo n.º 100/2020
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: Secretária para os Assuntos Sociais e Cultura
Recorrido: A
Data da conferência: 6 de Janeiro de 2021
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai

Assuntos: - Processo disciplinar
- Pena de demissão
- Inviabilidade da manutenção da relação funcional

SUMÁRIO
1. A inviabilização da manutenção da relação funcional, como um conceito indeterminado, é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva, sendo uma cláusula geral e não um facto que tenha de ser objecto de prova.
2. O preenchimento dessa cláusula constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose assentes na factualidade apurada, a que há que reconhecer uma ampla margem de decisão.
3. Com a prolação do despacho concordante com o relatório final do processo disciplinar onde se conclui pela inviabilidade da manutenção da situação jurídico-funcional do funcionário público com a respectiva entidade administrativa, não se mostra adequado afirmar que não foi feita a pronúncia expressa sobre a inviabilidade, ou não, da manutenção da relação funcional, pois os argumentos expostos no relatório não deixam de servir como fundamentos da decisão punitiva.

A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho punitivo proferido pelo então Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura em 18 de Dezembro de 2018, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
Por acórdão proferido em 12 de Março de 2019, o Tribunal de Segunda Instância julgou procedente o recurso, anulando-se a decisão recorrida.
Inconformada com o acórdão, vem a Senhora Secretária para os Assuntos Sociais e Cultura recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1) O douto Acórdão ora recorrido decidiu conceder provimento ao recurso contencioso interposto por A, do acto de 18 de Dezembro de 2018, constante do Despacho n.º 71/SASC/2018, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão, por considerar que, em processo disciplinar, “não bastam os factos objectivos apurados em si mesmo, é preciso ainda que seja especialmente ponderada pela entidade com poder de punir a sua gravidade concreta e feita pronúncia expressa acerca da inviabilidade ou não, da manutenção da relação funcional do funcionário em causa”.
2) Com este entendimento, o colectivo julgou por maioria que havia omissão deste elemento essencial traduzido na violação do artigo 315.º, n.º 1 do ETAPM e, como tal, constituindo fundamento para anular a decisão punitiva recorrida.
3) Salvo o devido respeito, não podemos estar mais em desacordo com tal decisão, porquanto consideramos que, ao invés, foi o próprio Acórdão recorrido que incorreu em errada interpretação dos factos e fundamentos, e errada interpretação e aplicação da lei substantiva em causa, com a consequente violação de lei daí decorrente.
4) Os fundamentos do Acórdão recorrido quedam-se numa alegada falta de ponderação da gravidade concreta da infracção e na omissão de pronúncia expressa sobre a inviabilidade da manutenção da situação funcional do funcionário em causa, o que não corresponde à verdade.
5) Por isso desconsidera a invocação expressa no despacho recorrido da norma plasmada no artigo 315.º, n.º 1 aplicável ao caso e em função da gravidade da falta cometida pelo funcionário, donde a aplicação de pena de demissão decorre da inviabilidade da manutenção da respectiva situação jurídico-funcional.
6) Constam do despacho recorrido, de forma expressa, além da invocação do n.º 1 do artigo 315.º, a invocação, como fundamento da decisão expulsiva, da alínea e) do n.º 1 do artigo 300.º (pena de demissão), do artigo 305.º (demissão) e da alínea f) do n.º 2 do artigo 315.º (aplicação de pena de demissão ao trabalhador em função do número de faltas injustificadas).
7) Destarte, a eventual omissão da expressão literal “inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional” no despacho recorrido é perfeitamente despiciente, porquanto resulta claro que, com a invocação de todas as normas acima indicadas, a entidade com poder punitivo ponderou e considerou a gravidade da infracção verificada, de que resultou estar completamente inviabilizada a manutenção da relação jurídico-funcional do demitido.
8) Este último, de resto, o entendimento de um dos meritíssimos juízes do Colectivo, ao lavrar no voto de vencido o entendimento de que a inviabilidade da relação funcional está implicitamente invocada no acto recorrido, tendo em conta o teor do mesmo.
9) Mas, além de a inviabilidade da manutenção da relação jurídico-funcional estar implicitamente invocada no despacho recorrido, também o está expressamente referida no relatório do instrutor do processo, o qual faz parte integrante do despacho recorrido, quando nele se diz, logo no início, que “Concordo integralmente com o relatório de folhas 310 a 382 apresentado pelo instrutor do Processo Disciplinar n.º PD-08/2017, instaurado contra A”.
10) Do referido processo disciplinar, e em especial do relatório do respectivo instrutor, consta toda a fundamentação de facto e de direito subjacente à decisão expulsiva tomada, nomeadamente que:
- O arguido faltou 87 dias ao serviço no período de 5 de Maio de 2014 a 4 de Setembro de 2014, que foi notificado em 9/09/2016 para apresentar justificação no prazo de 15 dias, nunca o tendo feito;
- Ao não justificar as faltas dadas ao serviço e não ter cumprido o dever especialmente previsto na Circular Normativa n.º 3/SS/2002, o arguido havia cometido infracção ao dever de zelo, previsto no artigo 279.º, n.º 2 alínea b) e n.º 4;
- As faltas dadas se deviam a ter estado preso, pela prática de crime, em estabelecimento prisional do Interior da China no período de 5 de Maio de 2014 a 4 de Setembro de 2014;
- O arguido chega muitas vezes atrasado ao serviço e falta muitas vezes, sendo considerado pela sua chefia um exemplo de mau trabalhador;
- Foi seguido o entendimento jurisprudencial (Ac. do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 22/02/2001, proc. 2201/98) de que “Só as faltas que pela sua própria natureza são insusceptíveis de ser justificadas ou que não apresentem justificação é que, em princípio, serão susceptíveis de inviabilizar a manutenção da relação funcional”;
- As faltas dadas são consideradas injustificadas e por motivos exclusivamente imputáveis ao arguido, por serem resultado do cumprimento de pena de prisão efectiva;
- Na acusação consta, “O facto de o arguido ter faltado ao serviço de 5 de Maio de 2014 até 4 de Setembro de 2014 (num cômputo total de 87 dias úteis) por estar preso num estabelecimento prisional no Interior da China (a cumprir uma pena principal), é um comportamento inaceitável para um profissional da área da Saúde, bem como desrespeitoso para a Instituição que o emprega e ofensivo de princípios fundamentais dos cidadãos da RAEM”;
- Na acusação consta, “Dos depoimentos testemunhais, constatou-se ainda que o Arguido chega constantemente atrasado ao trabalho, que falta muitas vezes ao trabalho e que a chefia o classifica como um mau exemplo de trabalhador, sem falar do prejuízo que as suas faltas provocaram e provocam no serviço.”;
- Na acusação consta, “Não se poderá esquecer ainda, que o Arguido tem antecedentes de infracções disciplinares relativos a esta matéria (faltas), o que de per si é demonstrativo da displicência com que o mesmo encara as suas funções como funcionário ao serviço da Administração Pública de Macau.”;
- Na acusação consta, “Perante a esta situação, é evidente que a infracção em causa inviabiliza a manutenção da situação jurídico-funcional entre o Arguido e os Serviços de Saúde – artigo 315.º, n.º 1 do ETAPM”;
- A acusação conclui: “O facto de o Arguido não comparecer ao serviço por um período de 87 dias consecutivos sem justificação (faltas injustificadas), por motivo a si imputável, ou seja, por estar a cumprir uma pena principal num estabelecimento prisional no Interior da China, o mesmo incorre na violação do dever geral de assiduidade, uma vez que está em causa o não comparecimento regular e continuadamente ao serviço, pelo que a infracção em causa é censurável em abstrato com a pena de demissão referida na alínea e) do n.º 1 do artigo 300.º e nos artigos 305.º e 315.º n.º 1 e 2 alínea f), todos do ETAPM.”;
- Na sua defesa, o arguido não conseguiu justificar as faltas dadas no referido período, nem impugnou a acusação de que a infracção em causa inviabilizava a manutenção da sua situação jurídico-funcional, o que implica estar consciente da gravidade dos factos e da sua consequência;
- No seguimento da acusação e da defesa apresentada pelo arguido, o instrutor do processo disciplinar propôs, quase ipsis verbis o constante na acusação: “relativamente à irregularidade que lhe fora imputada, ou seja, pelo facto de o Arguido não comparecer ao serviço por um período de 87 dias consecutivos sem justificação (faltas injustificadas), por motivo a si imputável, uma vez que estava a cumprir uma pena principal num estabelecimento prisional no Interior da China, houve por parte do Arguido (A), violação do dever geral de assiduidade, pois o que está em causa é o não comparecimento regular e continuadamente ao serviço, pelo que a infracção em causa é censurável em abstrato com a pena de demissão referida na alínea e) do n.º 1 do artigo 300.º e nos artigos 305.º e 315.º n.º 1 e 2 alínea f), todos do ETAPM.”.
11) Nos termos do artigo 115.º do Código do Procedimento Administrativo a fundamentação dos actos pode consistir em mera concordância com os fundamentos de propostas (no caso), como é a do instrutor do processo disciplinar em causa.
12) Do processo disciplinar, de que resultou a proposta do instrutor do processo, constam expressamente os motivos da decisão impugnada, nomeadamente na acusação, onde explícita e literalmente se deduz que, “Perante a esta situação, é evidente que a infracção em causa inviabiliza a manutenção da situação jurídico-funcional entre o Arguido e os Serviços de Saúde – artigo 315.º, n.º 1 do ETAPM”.
13) Situação que resulta dos factos de o arguido chegar muitas vezes atrasado ao serviço e faltar muitas vezes, sendo considerado pela sua chefia um exemplo de mau trabalhador, não cumpre com os seus deveres no que respeita à justificação de faltas, em particular com o previsto na Circular Normativa n.º 3/SS/2002, e ter dado um total de 87 dias úteis de faltas consecutivas por estar a cumprir uma pena de prisão (pela prática de crime) num estabelecimento prisional no Interior da China, considerado um comportamento inaceitável para um profissional da área da Saúde, bem como desrespeitoso para a Instituição que o emprega e ofensivo de princípios fundamentais dos cidadãos da RAEM.
14) Propondo o instrutor do processo disciplinar, inequívoca e literalmente, e ainda por remissão para a respectiva norma legal, a aplicação da pena de demissão ao funcionário, o que o despacho impugnado acolheu e integrou plenamente sem quaisquer reservas, decidindo no mesmo sentido e com tais fundamentos.
15) A mera referência literal à “inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional”, além de se mostrar despiciente, não é mais do que a repetição do que está na lei, sendo que o relevante é, na realidade, a alegação e demonstração de factos concretos que a ilustrem.
16) O que transparece à exaustão de todo o sucedido, ou seja, o elevado número de faltas injustificadas e a razão que esteve por detrás das mesmas.
17) Relembrando a jurisprudência pacífica do venerando TUI, “O preenchimento da cláusula geral de inviabilidade da manutenção da relação funcional constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose efectuados a que há que reconhecer uma ampla margem de decisão”.
18) Tarefa esta que a Administração realizou plenamente no caso sub judice, em face dos factos provados e carreados para os autos, e das consequências que dos mesmos concretizou, ao decidir pela punição do funcionário com a pena de demissão.
19) Assim, em sentido inverso ao decidido no douto Acórdão recorrido, foi o próprio Acórdão recorrido que violou, por errada interpretação dos factos e fundamentos, e errada interpretação e aplicação da lei substantiva, o disposto no artigo 315.º, n.º 1 do ETAPM.
20) Consequentemente, com fundamento em violação de lei, deve o Acórdão recorrido ser revogado, de modo a que possa o Venerando Tribunal a quo tomar conhecimento das restantes questões colocadas, apesar de consideramos que, também essas, não enfermam de qualquer ilegalidade.
21) No mais, reiterando tudo o que foi alegado na contestação apresentada em sede de recurso contencioso, a Entidade ora Recorrente oferece o merecimento dos autos.

Contra-alegou o recorrida A, pugnando pelo não provimento do recurso jurisdicional e manutenção do acórdão recorrido.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, pronunciando-se pela improcedência do recurso jurisdicional.

2. Factos
Nos autos foram dados como assentes os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
- Por despacho do Director dos Serviços de Saúde, exarado na proposta (nota interna n.º 63/GJ/N/2017), de 01/03/2017, foi determinada a instauração do procedimento disciplinar contra o arguido/Recorrente (Processo n.º 08/2017), por motivo dos seguintes factos:
1. De acordo com o Registo de Entrada do Anexo 4 do Relatório n.º 705/PP/DP/2014 da Divisão de Pessoal (cfr. Anexo 1.), demonstrou que o A, adiante abreviamente designado por Sr. A, assistente técnico administrativo especialista, com nomeação definitiva, do [Centro de Saúde], ausentou-se nas seguintes datas e não se encontrava qualquer registo electrónico correspondente nessas mesmas datas:
i) 7 de Fevereiro de 2014;
ii) 17 de Fevereiro de 2014;
iii) 22 de Abril de 2014;
iv) 23 de Abril de 2014;
v) 24 de Abril de 2014;
vi) 25 de Abril de 2014;
vii) 28 de Abril de 2014.
2. Segundo os conteúdos e os Registos de Entrada do Anexo 2 do Relatório n.º 705/PP/DP/2014, do Anexo 3 do Relatório n.º 905/PP/DP/2014, do Anexo 3 do Relatório n.º 1054/PP/DP/2014, e do Anexo 4 do Relatório n.º 1259/PP/DP/2014, relatório tudo da Divisão de Pessoal, demonstrou que o Sr. A ausentou-se desde 5 de Maio de 2014 até 4 de Setembro de 2014, e não se encontrava qualquer registo electrónico correspondente dentro do referido período (cfr. Anexo 2.).
- Foi iniciada a instrução em 24/03/2017;
- A acusação foi deduzida em 11/10/2017 (fls. 102 a 110 do PA);
- Tal acusação foi notificada em 11/10/2017 (fls. 117 do PA);
- Por despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, foi ordenada a realização de várias diligências complementares (fls. 149 a 150 do PA);
- Concluídas tais diligências complementares, foi (re)elaborado novo relatório final, do qual consta a nova acusação deduzida (fls. 310 a 349);
- Realizadas diligências necessárias, foi proferida a decisão punitiva de demissão, constante do despacho n.º 71/SASC/2018, de fls. 385 a 386 do PA, datada de 18/12/2018.
- O referido despacho tem o seguinte teor:
Despacho n.º 71/SASC/2018
Concordo integralmente com o relatório a fls. 310 a 382 apresentado pelo instrutor do Processo Disciplinar n.º PD-08/2017, instaurado contra A, doravante designado por arguido, funcionário n.º XXXXXXX dos Serviços de Saúde, a exercer funções como assistente técnico administrativo especialista no [Centro de Saúde], bem como com a aplicação da pena de demissão ao arguido proposta no dia 11 de Dezembro de 2018 pelo director substituto dos Serviços de Saúde.
1. Tendo em consideração toda a prova produzida no âmbito do Processo Disciplinar e em sede de diligências complementares, considerou-se provado que o facto de o arguido não comparecer ao serviço por um período de 87 dias úteis e consecutivos sem justificação, por motivo a si imputável, ou seja, por estar a cumprir uma pena principal no Interior da China, no período de 5 de Maio até 4 de Setembro de 2014, o mesmo incorre na violação do dever geral de assiduidade, uma vez que está em causa o não comparecimento regular e continuadamente ao serviço – alínea g) do n.º 2 e n.º 9 do artigo 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, doravante designado por ETAPM.
2. Considerou-se que a pena de prisão (em chinês “拘役”) que o arguido cumpriu no Interior da China é uma pena principal conforme prescreve o artigo 33.º da Lei Penal da República Popular da China, e não uma pena de prisão preventiva conforme o estipulado no artigo 134.º do ETAPM, logo as faltas dadas por motivo de cumprimento de pena de prisão (em chinês “拘役”) devem ser consideradas injustificadas.
3. Considerou-se os 87 dias de faltas dadas pelo arguido como injustificadas, e que esse facto é imputável ao próprio arguido, pois as faltas dadas por aquele foram consequência necessária da obrigatoriedade do cumprimento de pena por sentença judicial devido a acto criminoso culposo, contudo, essa consequência deveria ser previsível por parte do arguido antes de cometer o acto criminoso.
4. Nesse sentido, é por demais evidente que o arguido agiu de forma voluntária, livre e autónoma e que o mesmo estava ciente dos efeitos que a sua conduta podia originar.
5. O arguido tem antecedentes de infracções disciplinares no que à matéria de faltas concerne.
6. Não militam a favor do arguido nenhuma das circunstâncias atenuantes constantes das alíneas do artigo 282.º do ETAPM, nem agravantes constantes do artigo 283.º do ETAPM.
7. Ponderados todos estes factores e toda a prova produzida nos autos, ao abrigo da competência atribuída pelo artigo 322.º do ETAPM e pela Ordem Executiva n.º 112/2014, tendo em consideração o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 300.º, no artigo 305.º, no n.º 1 e na alínea f) do n.º 2 do artigo 315.º, todos do ETAPM, determino que ao A seja aplicada a pena de demissão.
8. Notifique-se o arguido da presente decisão e entregue-se ao mesmo uma fotocópia do Relatório a fls. 310 a 382.
9. Arquive-se no respectivo processo individual do arguido uma fotocópia do presente despacho.
Gabinete do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, aos 18 de Dezembro de 2018.
O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura,
Alexis, Tam Chon Weng

3. Direito
Na tese da ora recorrente, o acórdão recorrido violou, por errada interpretação dos factos e fundamentos e errada interpretação e aplicação da lei substantiva, o disposto no art.º 315.º n.º 1 do ETAPM, enquanto o Tribunal recorrido entende que não bastam os factos objectivos apurados em si mesmo, sendo preciso ainda que seja especialmente ponderada pela entidade administrativa com poder de punir a sua gravidade concreta e feita pronúncia expressa acerca da inviabilidade, ou não, da manutenção da relação funcional do funcionário em causa, e a omissão deste elemento essencial traduz-se na violação do art.º 315.º n.º 1 do ETAPM, o que é fundamento suficiente para anular a decisão punitiva impugnada.
Vejamos.

Constata-se nos autos que a entidade ora recorrente decidiu aplicar ao recorrido a pena de demissão, tendo em consideração o facto de este não comparecer ao serviço por um período de 87 dias úteis e consecutivos sem justificação, por motivo a si imputável, o que implica a violação do dever geral de assiduidade [al. g) do n.º 2 e n.º 9 do art.º 279.º do ETAPM], e o disposto na al. e) do n.º 1 do art.º 300.º, no art.º 305.º n.º 1 e na al. f) do n.º 2 do art.º 315.º do ETAPM.
No presente recurso, não se põe em causa a violação do dever de assiduidade, mas sim a interpretação e aplicação do n.º 1 do art.º 315.º do ETAPM.
Dispõe o art.º 315.º do ETAPM o seguinte:
“Artigo 315.º
(Aposentação compulsiva ou demissão)
1. As penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.
2. As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos funcionários e agentes que, nomeadamente:
a) Agredirem, injuriarem ou desrespeitarem gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, nos locais de serviço ou em serviço;
b) Praticarem actos de insubordinação ou de indisciplina graves ou incitarem à sua prática;
c) No exercício das suas funções praticarem actos manifestamente ofensivos das instituições e princípios constitucionais;
d) Praticarem ou tentarem praticar qualquer acto que lese ou contrarie os superiores interesses do Estado ou do Território;
e) Participarem infracção disciplinar de algum funcionário ou agente, com falsidade ou falsificação, quando daí resulte a injusta punição do denunciado;
f) Dentro do mesmo ano civil derem 20 faltas seguidas ou 30 interpoladas, sem justificação;
g) Revelem comprovada incompetência profissional;
h) Violarem segredo profissional ou cometerem inconfidências de que resultem prejuízos materiais ou morais para a Administração ou para terceiro;
i) Em resultado do lugar que ocupem, aceitarem ilicitamente ou solicitarem, directa ou indirectamente, dádivas, gratificações, participações em lucros ou outras vantagens patrimoniais, ainda que sem o fim de acelerar ou retardar qualquer serviço ou expediente;
j) Comparticiparem ilicitamente em oferta ou negociações de emprego público;
l) Forem encontrados em alcance ou desvio de dinheiros públicos;
m) Tomarem parte ou interesse, directamente ou por interposta pessoa, em qualquer contrato celebrado ou a celebrar com qualquer organismo ou serviço da Administração;
n) Com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar;
o) Forem condenados, por sentença transitada em julgado em que seja decretada pena de demissão ou, por qualquer forma, revelem indignidade ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
3. A pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o funcionário ou agente reunir o período mínimo de 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, na ausência do que lhe será aplicada a pena de demissão.”

Nos termos do art.º 315.º n.º 1 do ETAPM, a aplicação das penas de aposentação compulsiva ou de demissão depende da avaliação sobre a inviabilidade, ou não, da manutenção da situação jurídico-funcional.
E estabelece o n.º 2 várias situações em que serão aplicáveis as referidas penas, incluindo a de o funcionário ter, dentro do mesmo ano civil, 20 faltas seguidas ou 30 interpoladas, sem justificação [art.º 315.º n.º 2, al. f) do ETAPM].
Como se sabe, a inviabilização da manutenção da relação funcional, como um conceito indeterminado, é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva, sendo uma cláusula geral e não um facto que tenha de ser objecto de prova.
Tem-se entendido que o preenchimento dessa cláusula constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose assentes na factualidade apurada, a que há que reconhecer uma ampla margem de decisão.1
No caso vertente, o acórdão ora posto em causa decidiu anular a decisão punitiva, principalmente porque entendeu que a entidade recorrente não tinha feito pronúncia expressa acerca da inviabilidade, ou não, da manutenção da relação funcional do funcionário em causa, o que não é bem verdade.
Ora, à primeira vista, parece que do próprio despacho que aplicou a pena de demissão não consta a referida “pronúncia expressa”.
No entanto, não se pode olvidar que, no início da mesma decisão, a entidade recorrente manifestou claramente a sua concordância integral “com o relatório a fls. 310 a 382 apresentado pelo instrutor do Processo Disciplinar n.º PD-08/2017, instaurado contra A”.
E no relatório (final) apresentado pelo instrutor (fls. 310 a 382 do Processo Administrativo Instrutor, ora em Apenso, e também junto aos autos pelo recorrido, fls. 29 a 65 dos autos) constata-se que, na nova acusação deduzida que faz parte do mesmo relatório e após a descrição dos factos e o enquadramento jurídico dos mesmos, foi indicada a medida aplicável à infracção imputada ao recorrido, onde (mais concretamente no ponto 23 da nova acusação) o Sr. Instrutor diz expressamente que “Perante esta situação, é evidente que a infracção em causa inviabiliza a manutenção da situação jurídico-funcional entre o Arguido e os Serviços de Saúde – artigo 315.º n.º 1 do ETAPM” (o sublinhado é nosso).
Como é sabido, a decisão administrativa pode ser um acto que consiste em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, nos termos do n.º 1 do art.º 115.º do CPAC.
Daí que, com a prolação do despacho concordante com o relatório final do processo disciplinar onde se conclui pela inviabilidade da manutenção da situação jurídico-funcional, não se mostra adequado afirmar que a Administração não fez a pronúncia expressa sobre a inviabilidade, ou não, da manutenção da relação funcional, uma vez que, tal como dispõe o art.º 115.º n.º 1 do CPAC, os argumentos invocados e expostos no relatório não deixam de servir como fundamentos da decisão punitiva.2
Na realidade, para fundamentar a sua decisão, a entidade ora recorrente não se limitou a invocar o disposto no art.º 315.º n.º 1 do ETAPM, mas também avaliou a gravidade da infracção cometida pelo recorrido e ponderou a inviabilidade ou não da manutenção da relação funcional, tendo concluído positivamente, após o qual decidiu aplicar a pena de demissão.
Assim sendo, é de julgar procedente o recurso jurisdicional.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, devendo os autos voltar ao Tribunal de Segunda Instância para conhecer das restantes questões colocadas no recurso contencioso.
Custas do recurso pelo recorrido, com a taxa de justiça que se fixa em 6 UC.

                Macau, 6 de Janeiro de 2021
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
1 Ac.s do Tribunal de Última Instância, de 15 de Outubro de 2003, Proc. n.º 26/2003 e de 29 de Junho de 2005, Proc. n.º 15/2005.
2 Neste sentido, cfr. também Ac.s do TUI, de 31 de Julho de 2020 e de 7 de Outubro de 2020, Proc.s n.º 57/2020 e n.º 79/2020.
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