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Processo nº 1013/2019
Data do Acórdão: 21JAN2021


Assuntos:

Requisitos legalmente fixados para adquirir pelo menor o direito a residir legalmente em Macau


SUMÁRIO

1. Quer em face do DL nº 6/92/M (artigo 5º), de 27 de Janeiro, quer em do DL nº 19/99/M, de 10 de Maio (artigo 5º), ou mesmo nos termos da Lei 8/2002 (artigo 4º), de 8 de Maio, a aquisição pelo menor (nascido em Macau) do direito a residir em Macau/RAEM depende do preenchimento dos 2 requisitos:
    - Natural de Macau;
- Um dos progenitores reside legalmente em Macau aquando do seu nascimento.

2. Quando o Recorrente nasceu (20/11/2004), ficou a constar do assento de nascimento como seu pai um residente de Macau. Entretanto, veio a verificar-se, na sequência da propositura de uma acção judicial de impugnação de paternidade que o pai do Recorrente não é aquele constante do registo civil, mas um outro individuo que não tem nem nunca teve o estatuto de residente de Macau, é de concluir que o acto administrativo de emissão do BIRM foi praticado na falta de um elemento essencial que a lei exige: que um dos progenitores resida legalmente em Macau à data do nascimento, e por outro lado, a prática do acto ficou também a dever-se ao erro induzido pelo particular, para além de tal constituir um crime de falsas declarações, como tal o acto padece de vício invalidante da nulidade.

3. Os efeitos putativos reconhecidos pelo artigo 123º/3 do CPA são apenas os derivados do decurso do tempo, ou seja, os que resultam da efectivação prática dos efeitos do acto nulo por um período prolongado de tempo, mas não se pode assacar os efeitos putativos favoráveis ao particular em cuja conduta se funda a nulidade do acto, como nos casos de coacção ou crime, ou até, simplesmente, de dolo ou má-fé do interessado.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 1013/2019

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

A, devidamente identificada nos autos, vem recorrer para este TSI da decisão do Senhor Secretário para a Administração e Justiça, datado de 20AGO2019, que, em sede de recurso hierárquico necessário, manteve a decisão da Directora dos SIM que lhe declarou a nulidade da emissão do BIRM nº 1/2XXXXX/3 e das suas sucessivas renovações, bem como cancelou o BIRM nº 1/2XXXXX/3, e o passaporte da RAEM nº MAXXXXX80.

Devidamente tramitado o recurso pelo Relator do processo, foi oportunamente submetido à discussão e à apreciação em conferência pelo Colectivo o seguinte projecto do Acórdão:
I. RELATÓRIO
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Administração e Justiça de 20.08.2019 que rejeitou o recurso hierárquico necessário interposto pela Recorrente e manteve a decisão a declarar a nulidade da emissão à Recorrente do Bilhete de Identidade de Residente de Macau nº 1/2XXXXX/3 e da sua substituição e renovação, bem como cancelar o BIRPM nº 12XXXXX(3) emitido em 18.11.1996 e o Passaporte da RAEM nº MAXXXXX80 emitido em 26.02.2015, formulando as seguintes conclusões e pedido:
1. A recorrente nasceu em Macau no dia 23 de Outubro de 1996, e possuiu o registo de nascimento n.º 5XX6 emitido pela Conservatória do Registo de Nascimentos, segundo o qual o pai era residente de Macau B, e a mãe era residente do Interior da China C.
2. No início do ano 1996, a mãe da recorrente C descobriu que o seu marido D tinha uma amante, pelo que separou-se do marido e coabitou com o residente de Macau B.
3. Logo depois da coabitação, a mãe C descobriu que era grávida, sendo o bebé a recorrente.
4. Por isso, quando a recorrente nasceu, a sua mãe C e o residente de Macau B consideram-se pais biológicos da recorrente, e requereram o BIRM para a recorrente.
5. Após o nascimento da recorrente, a sua mãe C e o residente de Macau B continuaram a coabitar por um tempo relativamente longo.
6. Posteriormente, por o marido ter mudado de opinião, a mãe C terminou a coabitação com o residente de Macau B, e levou a recorrente a viver com o marido D.
7. Desde o nascimento, a recorrente tem considerado sempre D como seu pai biológico, e só ao inscrever-se na universidade é que descobriu que na certidão de registo de nascimento, o nome do pai era B em vez de D.
8. Posteriormente, a recorrente propôs o teste de paternidade com C, D e B, e segundo o resultado do teste, C e D são pais biológicos da recorrente.
9. Para corrigir o referido erro de registo, em 2017, a recorrente decidiu intentar acção de impugnação de paternidade, que correu termos no Juízo de Família e de Menores do TJB, com o n.º FM1-17-0010-CAO.
10. O supracitado Juízo declarou que o pai biológico da recorrente era D em vez de B.
11. Tendo sido notificada da sentença do tribunal, a recorrente dirigiu-se de imediato à DSI e requereu a alteração dos dados do pai biológico.
12. A recorrente nasceu em Macau, onde cresce, estuda e vive.
13. Quando tinha 12 anos, a recorrente já passou no teste do nível 7 de piano, organizado pela Associação de Músicos Chineses.
14. Em 2014, a recorrente também passou no teste IELTS, obtendo a nota de 6 pontos.
15. Em 2015, a recorrente graduou-se, com boas notas, da Escola XX de Macau, que lhe atribuiu o “prémio escolar do segundo grau”.
16. Em 2015, a recorrente participou no exame de acesso ao ensino superior do Interior da China, e foi admitida pela Universidade XX e outras escolas do ensino superior.
17. Porém, a recorrente acabou por escolher a Universidade XX, frequentou o curso de “Governo e Administração Pública – Administração Pública”, e ganhou a “Bolsa do Exame de Acesso à Universidade XX Flor de Lótus do Ano Lectivo 2015/2016”.
18. Na universidade, a recorrente participou activamente nas práticas sociais, e o seu comportamento durante o estágio na “Antiga Residência de XX” foi reconhecido pelo departamento do estágio e pela Fundação Macau.
19. Em Junho de 2019, a recorrente graduou-se da Universidade XX, e obteve a licenciatura em Ciências Sociais (Governo e Administração Pública – Administração Pública).
20. Desde pequeno, a recorrente sempre queria tornar-se um funcionário público da RAEM, pretendendo prestar serviço e dar contribuição para a RAEM que a formou.
21. Os familiares da recorrente, incluindo o seu pai biológico D, a mãe biológica C, o irmão mais velho E e a irmã mais nova F, já fixaram residência em Macau por investimento em 2003. Actualmente, D é titular do BIRPM n.º 13XXXXX(4), com data da primeira emissão em 11 de Fevereiro de 2003, C é titular do BIRPM n.º 13XXXXX(9), com data da primeira emissão em 11 de Fevereiro de 2003, E é titular do BIRPM n.º 13XXXXX(4), com data da primeira emissão em 11 de Fevereiro de 2003, e F é titular do BIRPM n.º 13XXXXX(5), com data da primeira emissão em 3 de Março de 2003.
22. Já foram cancelados os registos de residência no Interior da China dos pais biológicos da recorrente D e C, que agora apenas possuem BIRPM (vide as cópias dos Salvo-condutos para Deslocação ao Interior da China para os Residentes de Hong Kong e Macau (Salvo-conduto para Deslocação à China) de D e C, constantes do processo administrativo).
23. Actualmente, toda a família da recorrente reside e vive em Macau.
24. Por um período de cerca de 22 anos desde o nascimento da recorrente até ao presente, Macau tem sido o centro da família, do estudo, da actividade profissional e da vida afectiva da recorrente.
25. Desde pequeno, a recorrente tem baseado o planeamento da vida e o sonho no desenvolvimento em Macau, e nunca pensou em trabalhar ou residir no exterior.
26. Com excepção de Macau, a recorrente não tem qualquer relação ou conexão com outros países ou regiões.
27. A recorrente nunca possuiu documento de identificação de qualquer outro país ou região, sendo o BIRM o seu único documento de identificação.
28. Se forem cancelados o BIRPM e o Passaporte da RAEM da recorrente, esta não pode obter qualquer documento legal noutras regiões, será apátrida e ficará sem casa.
29. A recorrente é uma pessoa honesta e nunca forneceu à Autoridade qualquer informação falsa.
30. O MP tinha instaurado processo contra a mãe da recorrente C e o residente de Macau B, para a investigação da falsificação de documento de especial valor, porém, já foi declarado o arquivamento do processo por efeito de prescrição.
31. Salvo o devido respeito, entende a recorrente que o acto recorrido incorreu no vício da violação de lei por violar o art.º 122.º, n.º 2, al. d) do CPA, e deve ser declarado nulo.
32. No caso sub judice, dos factos resulta que a recorrente não possui documento de identificação de qualquer outro país ou região, sendo o BIRM o seu único documento de identificação.
33. Em 2003, todos os familiares da recorrente obtiveram, através de imigração por investimento, os BIRPM, e agora vivem em Macau.
34. Já foram cancelados os registos de residência no Interior da China dos pais biológicos da recorrente D e C, que agora apenas possuem BIRPM.
35. A recorrente não tem qualquer relação ou conexão com outro país ou região.
36. Por isso, se forem efectivamente cancelados o BIRPM e o Passaporte da RAEM da recorrente, esta perderá o único documento de identificação.
37. Ao mesmo tempo, não pode a recorrente obter qualquer documento de identificação legal noutro país ou região.
38. Se forem efectivamente cancelados o BIRPM e o Passaporte da RAEM da recorrente, pode-se imaginar que a recorrente mudará, numa noite, de um indivíduo legal que deteve o BIRPM por mais de 22 anos desde o nascimento, para uma “pessoa sem identidade” em Macau.
39. Isso trará, sem dúvida, impacto irreparável e quase desastroso para os direitos fundamentais da recorrente, ou seja, uma estudante da universidade que nasceu, cresceu e estudou em Macau desde pequeno, e acabou de se graduar.
40. Se a recorrente perder o BIRPM e o Passaporte da RAEM, tornar-se-á numa pessoa sem qualquer documento de identificação legal em Macau.
41. Assim, não poderá a recorrente exibir o documento de identificação legal a qualquer serviço do Governo de Macau ou órgão privado, nem estabelecer qualquer relação jurídica com essas entidades.
42. Para a recorrente, é difícil procurar um emprego sem qualquer documento de identificação legal.
43. Ao mesmo tempo, a recorrente não poderá continuar a aperfeiçoar-se ou estudar, porque é quase certo que, na falta de documento de identificação legal, as universidades e outras instituições educativas de Macau não permitirão a admissão da recorrente a qualquer curso.
44. O pior é que, mesmo ao andar na rua em Macau, a recorrente terá medo de ser solicitada por agentes policiais para exibir o documento de identificação legal.
45. A recorrente também não poderá sair da RAEM para qualquer outro país ou região (nem mesmo a Hong Kong).
46. Não poderá a recorrente usufruir de todas as regalias dos residentes de Macau, incluindo os serviços de medicina gratuitos, os eventuais subsídios (de estudo, de desemprego, de casamento e de nascimento, entre outros), a comparticipação pecuniária no desenvolvimento económico, e a contribuição para a segurança social.
47. É de salientar que, a supracitada restrição dos direitos fundamentais da recorrente prejudica directamente o conteúdo essencial dos mesmos, porque tal restrição (quase) impede completamente o exercício, por parte da recorrente, desses direitos.
48. Por isso, é obviamente ofendido o conteúdo essencial do direito à residência (art.º 24.º da Lei Básica), do direito à dignidade humana (art.º 30.º da Lei Básica), do direito à liberdade de deslocação na RAEM e no exterior (art.º 33.º da Lei Básica), da liberdade de escolha de profissão e de emprego (art.º 35.º da Lei Básica), e do direito a benefícios sociais (art.º 39.º da Lei Básica).
49. Pelo exposto, o acto recorrido incorreu no vício da violação de lei (art.º 21.º, n.º 1, al. d) do CPAC) por violar o art.º 122.º, n.º 2, al. d) do CPA, e deve ser declarado nulo.
50. Se o MM.º Juiz do TSI não entender assim, ainda entende a recorrente que o acto recorrido, ao declarar, com base no art.º 122.º, n.º 1 e n.º 2, al. i) do CPA, a nulidade da emissão à recorrente do BIRM n.º 1/2XXXXX/3, e da substituição e renovação do BIRPM n.º 12XXXXX(3), incorreu no erro na qualificação jurídica.
51. De facto, o supracitado acto administrativo da declaração de nulidade deve ser anulável (em vez de nulo), por erro nos pressupostos de facto.
52. De acordo com o Professor Diogo Freitas do Amaral e o Acórdão de TSI de 26 de Abril de 2018, no Processo n.º 136/2016, o erro nos pressupostos de facto existe quando os factos que serviram de base do acto administrativo não sejam verdadeiros, ou no procedimento administrativo, o órgão administrativo reconheça erradamente os factos com fundamento dos quais praticou o acto administrativo.
53. No caso sub judice, no dia 18 de Novembro de 1996, a DSI, segundo os dados constantes do registo de nascimento da recorrente, emitiu-lhe, pela primeira vez, o BIRM n.º 1/2XXXXX/3.
54. Obviamente, na altura, a DSI considerou erradamente B como pai biológico da recorrente, e com base nisso praticou o supracitado acto administrativo.
55. Assim, juridicamente, o vício do aludido acto administrativo (primeira emissão) deve ser qualificado, de forma correcta, como vício de erro nos pressupostos de facto, em vez de vício de nulidade mencionado no art.º 122.º, n.º 1 do CPA.
56. Por outro lado, como entendeu o Professor Diogo Freitas do Amaral, actos a que falta qualquer dos elementos essenciais, referidos no art.º 122.º, n.º 1 do CPA, são, nomeadamente, os que não têm autor, objecto, conteúdo, forma ou fim público.
57. Por isso, por incorrer no vício de erro nos pressupostos de facto, o supracitado acto administrativo, conforme o art.º 124.º do CPA, deve ser acto anulável
58. De acordo com o art.º 125.º do mesmo Código, o acto anulável pode ser revogado nos termos previstos no artigo 130.º.
59. In casu, na altura, não foi interposto, por qualquer pessoa, recurso contencioso do referido acto, que não foi revogado no prazo de recurso contencioso (no prazo de 365 dias a contar da notificação ao recorrente (art.º 25.º, n.º 2, al. c) e art.º 26.º, n.º 2, al. a) do CPAC)), pelo que a invalidade do acto já foi sanada por decurso do tempo.
60. Por isso, o acto recorrido não pode declarar a nulidade do acto administrativo acima referido, nem revogar o mesmo com fundamento na anulabilidade.
61. A invalidade do respectivo acto administrativo já foi sanada, pelo que são válidos todos os posteriores actos administrativos praticados com base nesse acto.
62. Pelo exposto, o acto recorrido incorreu no vício da violação de lei por erro na qualificação jurídica, pelo que deve ser anulado.
63. Se o MM.º Juiz do TSI não entender assim, ainda entende a recorrente que, in casu, o acto recorrido não é acto absolutamente vinculado, e em contrário, ao praticar tal acto, deve-se considerar a aplicação dos princípios administrativos gerais.
64. Como referiram os autores Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim e Vieira de Andrade, em certas situações, mesmo que seja nulo o acto administrativo, não pode a Administração declarar a sua nulidade conforme o princípio da boa fé.
65. Por isso, não parece correcto o entendimento da entidade recorrida, segundo o qual a declaração de nulidade do acto é um acto absolutamente vinculado, e não há margem para qualquer poder discricionário.
66. Na verdade, é inegável que deve a Administração Pública, na maior parte dos casos, declarar nulos os actos administrativos que padecem do vício de nulidade.
67. Porém, nalguns casos, nomeadamente se a declaração de nulidade resultará em certa desrazoabilidade ou injustiça, a Administração Pública também tem de aplicar os princípios administrativos gerais. É de saber, para além das disposições legais, a Administração Pública tem que observar mais os princípios gerais dos actos administrativos.
68. Por outro lado, no caso vertente, não se verifica qualquer disposição legal que estipula expressamente o cancelamento obrigatório do bilhete de identidade de Macau e do passaporte do seu portador na situação acima referida.
69. Por isso, salvo o devido respeito, entende a recorrente que são aplicáveis ao presente caso os princípios gerais dos actos administrativos.
70. No entendimento da recorrente, o acto recorrido violou os princípios da boa fé, da confiança, da proporcionalidade e da justiça.
71. Em relação ao princípio da boa fé, obviamente, não se verifica qualquer culpa ou negligência da recorrente quanto ao erro nos dados do pai biológico no seu registo de nascimento.
72. À recorrente que na altura nasceu há menos de 1 mês, não é possível conhecer do respectivo erro, nem impedir a ocorrência do mesmo.
73. Desde o nascimento, a recorrente nunca tinha conhecimento desse erro nos dados constantes do seu registo de nascimento.
74. A recorrente só descobriu a respectiva questão ao inscrever-se na universidade.
75. Depois, a recorrente solicitou, de imediato e por iniciativa própria, a realização do teste de paternidade.
76. A recorrente podia não fazer nada depois de ser notificada do resultado do teste, no entanto, para corrigir, no plano jurídico, o respectivo erro, a recorrente intentou acção de impugnação de paternidade no Juízo de Família e de Menores do TJB.
77. E após o fim do processo, a recorrente apresentou, de imediato e por iniciativa própria, à DSI a certidão de sentença, requerendo a alteração dos dados do pai.
78. Daí resulta, claramente, que a recorrente sempre agiu com a maior bondade, que o supracitado erro não foi causado pela recorrente (que mesmo não tinha conhecimento do erro, nem podia impedir o mesmo), e que ao ter conhecimento da respectiva questão, a recorrente praticou, imediatamente e por iniciativa própria, um conjunto de actos no limite da sua capacidade, incluindo solicitar o teste de paternidade, intentar acção no tribunal e comunicar a respectiva questão à DSI.
79. Por isso, é inegável que a recorrente já fez o seu melhor e agiu com boa fé, até com uma atitude de colaboração activa com a Administração Pública, a fim de corrigir a irregularidade em causa.
80. Além disso, tudo o que a recorrente fez radicou-se na sua confiança na Administração Pública, porque nos últimos 22 anos, nenhum serviço ou órgão do Governo de Macau duvidou ou questionou o BIRM legalmente possuído pela recorrente, que por sua vez, tem tido sempre a convicção de que os seus documentos de identificação não serão cancelados.
81. A confiança depositada pela recorrente na Administração Pública reflecte-se directamente no seu sonho desde pequeno e no curso da universidade que frequentou.
82. Desde pequeno, a recorrente sempre queria tornar-se um funcionário público da RAEM, pretendendo prestar serviço e dar contribuição para a RAEM que a formou.
83. Não obstante que a recorrente participasse no exame de acesso ao ensino superior do Interior da China em 2015 e fosse admitida pela Universidade XX e outras escolas do ensino superior, ainda decidiu frequentar o curso de “Governo e Administração Pública – Administração Pública” da Universidade XX, e obteve a licenciatura em Ciências Sociais (Governo e Administração Pública – Administração Pública) em Junho do ano corrente.
84. Como disse o TUI no Processo n.º 937/2016, só faz sentido invocar a violação do princípio da boa fé quando a conduta da Administração Pública ofenda a confiança depositada pelo particular nela por longo tempo.
85. Por isso, in casu, o acto recorrido violou obviamente os princípios da boa fé e da confiança, e ao abrigo dos dispostos no art.º 123.º, n.º 3 do CPA e no art.º 21.º, n.º 1, al. d) do CPAC, deve-se decretar a anulação do acto recorrido.
86. Se assim não for entendido pelo MM.º Juiz do TSI, o acto recorrido também deve ser anulado por violação do princípio da proporcionalidade.
87. Como o TUI tem entendido, as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar. É este o princípio da proporcionalidade enunciado nas disposições do Direito Administrativo. O centro normativo do princípio da proporcionalidade é uma injunção de proibição do excesso.
88. In casu, sabemos que as normas violadas visam regular e garantir os direitos à identidade e à residência dos cidadãos de Macau.
89. Porém, não se pode esquecer que o cancelamento do BIRPM e do Passaporte da recorrente trará consequências desastrosas para a vida da recorrente.
90. A recorrente nasceu em Macau, e nos 22 anos passados, tem crescido e morado sempre em Macau.
91. A recorrente frequentou a escola primária, a escola secundária até a universidade em Macau.
92. A recorrente obteve, na Universidade XX, a licenciatura em Ciências Sociais (Governo e Administração Pública – Administração Pública), que apenas tem aplicação prática no trabalho nos serviços do Governo de Macau.
93. Ademais, trabalhar nos serviços do Governo de Macau tem sido o sonho da recorrente desde pequeno.
94. Desde pequeno, a recorrente tem baseado o planeamento da vida no desenvolvimento em Macau, e nunca pensou em trabalhar ou residir no exterior.
95. Todos os familiares da recorrente (o pai biológico, a mãe biológica, o irmão mais velho e a irmã mais nova) já fixaram residência em Macau por investimento em 2003, e são titulares de BIRPM.
96. Já foram cancelados os registos de residência no Interior da China dos pais biológicos da recorrente D e C, que agora apenas possuem BIRPM.
97. A família da recorrente mantém o centro da vida em Macau, onde vivem e trabalham todos os familiares da recorrente.
98. Com excepção de Macau, a recorrente não tem qualquer relação ou conexão com outros países ou regiões.
99. A recorrente não possui documento de identificação de qualquer outro país ou região, sendo o BIRM o seu único documento de identificação.
100. Assim, se forem cancelados o BIRPM e o Passaporte da RAEM da recorrente, esta não pode obter qualquer documento legal noutras regiões por não ter qualquer relação ou conexão com outros países ou regiões (mesmo no Interior da China), será apátrida e ficará sem casa.
101. Ao mesmo tempo, não poderá a recorrente utilizar os conhecimentos apreendidos, nem realizar o sonho desde pequeno.
102. A recorrente tem que até separar-se dos familiares, colegas e amigos.
103. Isso trará, sem dúvida, consequências graves e irreparáveis para os direitos e interesses fundamentais da recorrente, até para toda a sua vida.
104. Por isso, comparando o interesse público prosseguido com os danos grandes e irreparáveis causados à recorrente, deve prevalecer o interesse da recorrente, sob pena de incorrer-se no desequilíbrio grave.
105. Como indicou o TSI no Processo n.º 1284, na prossecução do interesse público não podem impor-se ao cidadão sacrifícios, ou encargos, que transcendam o indispensável para salvaguardar esse interesse.
106. Há que buscar uma “justa medida” para que os custos envolvidos não surjam em flagrante desproporção com as vantagens procuradas.
107. Por outro lado, os respectivos factos tiveram lugar em 1996, e já há 23 anos desde a sua ocorrência até à presente data. Não obstante que o interesse público fosse lesado na altura, com o decurso dum tempo tão longo, a respectiva lesão já foi reduzida ao mínimo; ao contrário, a estabilidade de todas as relações de direito e de facto já estabelecidas exige a manutenção do estado de residente de Macau da recorrente.
108. Mesmo no plano penal, os respectivos factos não podem ser tidos em consideração por efeito de prescrição.
109. Em fim, é de salientar que a recorrente não tem qualquer culpa ou negligência na violação das respectivas normas jurídicas.
110. Por isso, in casu, o acto recorrido violou obviamente o princípio da proporcionalidade, e ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 123.º, n.º 3 e 5.º do CPA e no art.º 21.º, n.º 1, al. d) do CPAC, deve-se decretar a anulação do acto recorrido.
111. Se assim não for entendido pelo MM.º Juiz do TSI, o acto recorrido também deve ser anulado por manifesta violação do princípio da justiça.
112. In casu, se forem efectivamente cancelados o BIRPM e o Passaporte da RAEM da recorrente, será, óbvia e gravemente, ofendido o direito mais fundamental da recorrente, bem como a sua dignidade. Os factos concretos já foram detalhadamente expostos no ponto 1 dos fundamentos de direito atrás mencionado, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
113. Desta forma, deve ser anulado o acto recorrido por manifesta violação do princípio da justiça.
114. Se o MM.º Juiz do TSI entender que não é aplicável qualquer princípio administrativo por ser vinculado o acto recorrido (por mera cautela de patrocínio), vem a recorrente indicar que o acto recorrido deve ser anulado por ser aplicável ao presente caso o art.º 123.º, n.º 3 do CPA.
115. Como é sabido, através do n.º 3 do art.º 123.º do CPA, o legislador estabeleceu a “teoria de efeitos jurídicos putativos”, segundo a qual não obstante a declaração de nulidade do acto administrativo, atendendo à necessidade de estabilidade das relações jurídicas e sociais estabelecidas há longo tempo, pode a Administração Pública ou o julgador atribuir certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes do acto nulo, de harmonia com os princípios gerais de direito.
116. Quanto ao requisito de tempo no n.º 3 do art.º 123.º do CPA, as doutrinas e jurisprudências dominantes exigem 10 anos, e em caso de “agentes putativos”, 3 anos.
117. No caso sub judice, por um período de mais de 22 anos desde o nascimento até ao presente, a recorrente tem possuído o BIRPM, considerando-se titular legítimo e legal do respectivo documento de identificação.
118. Por isso, nos últimos 22 anos, a recorrente usou sempre o seu BIRPM para estabelecer inumeráveis relações de direito e de facto com todos os serviços do Governo de Macau, as escolas, os órgãos privados e outras pessoas, o que nunca foi questionado.
119. Além disso, sabemos que o legislador tentou estabelecer, através do n.º 3 do art.º 123.º do CPA, um mecanismo semelhante ao de “usucapião” no direito civil, isto é, com o decurso do tempo, reconhecer, em termos jurídicos, os efeitos e as relações obtidas pelo interessado em termos factuais.
120. Para o efeito de usucapião, mesmo no caso de posse de má fé e sem registo, o tempo máximo exigido pelo Código Civil de Macau é de apenas 20 anos (art.º 1221.º do Código Civil).
121. Porém, no caso concreto, excedeu-se, obviamente, o tempo exigido pelas doutrinas e jurisprudências dominantes, até o tempo de 20 anos exigido no Código Civil para a usucapião (de má fé).
122. Assim, deve-se entender que a recorrente reúne o requisito do tempo exigido no n.º 3 do art.º 123.º do CPA.
123. Quanto à harmonia com os princípios gerais de direito, neste caso concreto, em virtude dos princípios da boa fé, da confiança, da proporcionalidade e da justiça, deve-se entender que o que tem acontecido à recorrente é obrigatoriamente protegido pela lei.
124. No aludido ponto 3 dos fundamentos de direito, a recorrente já explicou detalhadamente os supracitados princípios e sua aplicação ao presente caso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e vem formular as seguintes conclusões.
125. Desde o nascimento até ao presente, a recorrente sempre agiu com a maior bondade, não tinha qualquer culpa ou negligência no erro verificado no acto administrativo, entendeu, com maior confiança na RAEM, que tendo em conta que o seu nascimento e crescimento em Macau, bem como a detenção do BIRPM por cerca de 23 anos, não iria a RAEM cancelar o seu bilhete de identidade, e em consequência, através de actuações concretas e processo judicial, corrigiu, por iniciativa própria e de forma activa, o respectivo erro, comunicando a situação à entidade emissora; porém, após a prática dos aludidos actos, a resposta que a recorrente recebeu foi a de decidir cancelar o BIRPM e o Passaporte dela, 23 anos depois da ocorrência dos factos, quando a responsabilidade penal já se extinguiu. O cancelamento desses documentos de identificação trará, obviamente, consequências desastrosas e irreparáveis para os direitos fundamentais da recorrente, até para a sua vida. A recorrente mudará, num instante, dum graduado que está pronto a começar a carreira profissional, para uma “pessoa sem identidade”, não podendo trabalhar e estudar, até viver com dignidade em Macau.
126. Por outro lado, é inegável que temos de garantir o fim que os articulados da lei visam alcançar, no entanto, entende a recorrente que deve-se analisar as circunstâncias concretas do caso concreto para determinar os danos efectivamente causados ao interesse público, a sua gravidade e a imputabilidade. In casu, como acima referido, já decorreram cerca de 23 anos após a ocorrência dos factos, a responsabilidade penal já se encontra extinta, o erro não foi causado pela recorrente, mas em contrário, foi a recorrente que descobriu, por iniciativa própria, tal erro.
127. Por isso, perante, por um lado, o interesse público cujo dano sofrido já foi reduzido ao mínimo e não foi causado pela recorrente, e por outro lado, os grandes danos que serão causados aos direitos fundamentais e à vida da recorrente, entendemos que, de acordo com os princípios administrativos gerais, devem os direitos e interesses fundamentais da recorrente ser garantidos por lei de Macau.
128. Pelo exposto, entende a recorrente que deve-se aplicar ao presente caso o art.º 123.º, n.º 3 do CPA, e em consequência, declarar que o acto recorrido incorreu no vício da violação de lei, e é anulável.
Com base nisso, pede-se ao MM.º Juiz do TSI para:
1. Admitir o presente recurso contencioso, e declarar a nulidade do acto recorrido que incorreu no vício da violação de lei por violar o art.º 122.º, n.º 2, al. d) do CPA; se assim não for entendido,
2. Anular o acto recorrido que incorreu no vício da violação de lei por erro na qualificação jurídica; se assim não for entendido,
3. Anular o acto recorrido que incorreu no vício da violação de lei por violar os princípios da boa fé, da confiança, da proporcionalidade e da justiça; se assim não for entendido,
4. Anular o acto recorrido que incorreu no vício da violação de lei por violar o art.º 123.º, n.º 3 do CPA.
  
  Citada a entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Administração e Justiça contestar, apresentando as seguintes conclusões e pedidos:
1. A recorrente A nasceu em 23 de Outubro de 1996 em Macau, portadora do Registo de Nascimento n.º 5016 emitido pela Conservatória de nascimento. No qual se lê que é filha do residente de Macau B e da residente do Interior da China C.
2. Nos termos do art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M que regula a emissão do novo bilhete de identidade de residente de Macau, de 27 de Janeiro, aplicável ao nascimento da recorrente, em 18 de Novembro de 1996 a DSI emitiu pela primeira vez à recorrente o BIRM n.º 1/2XXXXX/3.
3. Mais tarde, nos termos do art.º 9.º, n.º 2 da Lei n.º 8/1999, bem como nos termos do art.º 2.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/2002, em 9 de Setembro de 2005, a DSI emitiu à recorrente, por substituição, o BIR permanente da RAEM n.º 12XXXXX(3).
4. Em 21 de Julho de 2010 e em 11 de Junho de 2015, respectivamente, nos termos do art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, a DSI autorizou à recorrente a renovação do BIR permanente da RAEM dela.
5. No entanto, segundo a sentença do Juízo de Família e de Menores do TJB, segundo declarava a sentença, o B não é o pai biológico da recorrente; foi mandado cancelar a entrada dentro do registo de nascimento da recorrente, segundo a qual o B era o pai biológico dele, enquanto o pai biológico da recorrente é o D. A sentença acima mencionada transitou em julgado em 3 de Novembro de 2017.
6. Também a Conservatória do Registo Civil já rectificou a Certidão Narrativa do Registo de Nascimento n.º 5016/1996/CR da recorrente, na qual se lê que o pai dela é D e que a mãe é C.
7. No momento do nascimento da recorrente em Macau, nenhum dos seus pais era residente de Macau; nem residia legalmente em Macau, portanto, a recorrente não preenchia os requisitos previstos no art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, e não era residente de Macau, portanto, não lhe devia ter sido concedido o BIRM.
8. Além disso, com base nisso, a recorrente nem preenchia os requisitos previstos no art.º 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/1999, pelo que não era residente permanente da RAEM; nem preenchia os requisitos previstos no art.º 2.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/2002 e no art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, pelo que não lhe devia ter sido concedido o BIR permanente da RAEM.
9. Nos termos do art.º 122.º, n.º 1 do CPA, faltou ao acto praticado pela DSI, i.e., o de emitir à recorrente o BIRM, fundamento de facto (ou seja, o elemento essencial: o pai biológico ou a mãe biológica devia ser residente de Macau ou residia legalmente em Macau), pelo que se trata de um acto nulo.
10. Segundo indicou o acórdão proferido pelo TUI em 30 de Maio de 2008 no processo n.º 11/2007, nos termos do art.º 122.°, n.º 2, al. i) do CPA, por maioria da razão, o acto consequente de acto administrativo nulo também é nulo.
11. Portanto, segundo o art.º 122.°, n.º 2, al. i) do CPA, como os actos praticados pela DSI de emitir à recorrente e renovar-lhe o BIR permanente da RAEM foram actos consequentes do acto nulo acima mencionado, portanto os actos consequentes são também nulos.
12. Como a recorrente não é residente permanente da RAEM, não preenche os requisitos previstos pelo art.º 5.º da Lei n.º 8/2009, não lhe devia ter sido emitido o passaporte da RAEM n.º MAXXXXX80.
13. Com base nisto, nos termos do art.º 123.º, n.º 2 do CPA, a DSI declarou que os actos administrativos de emitir os documentos à recorrente tinham sido nulos, e nos termos legais cancelou o BIR permanente da RAEM n.º 12XXXXX(3) portado pela recorrente, emitido pela primeira vez em 18 de Novembro de 1996 e o passaporte da RAEM n.º MAXXXXX80, emitido em 26 de Fevereiro de 2015.
14. O advogado mandatário apontava que a série dos actos praticados pela DSI, a saber, de emitir à recorrente o BIR e o passaporte tinham tido apenas o vício de erros em pressupostos de facto, que podia levar à anulabilidade; além disso, por razão de prescrição, o vício já está sanado. No entanto, a entidade recorrida não concorda.
15. Quanto aos elementos essenciais dos actos administrativos, existe o seguinte consenso entre as doutrinas judiciais e as jurisprudências: deve-se analisar caso a caso em função das circunstâncias concretas. Se os elementos em causa fazem parte dos elementos essenciais imprescindíveis para o órgão administrativo praticar um acto administrativo, então a falta do elemento conduz à nulidade do acto administrativo. (para referência: JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS nas páginas 178 a 179 na obra intitulada “Manual de Formação de Direito Administrativo de Macau”; MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM in “CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO COMENTADO” pág. 642, LINO JOSÉ BAPTISTA RODRIGUES RIBEIRO e JOSÉ CÂNDIDO DE PINHO in “Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado”, p. 705 e 706; e o acórdão proferido pelo TUI no processo n.º 82/2014.)
16. Nos termos do art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, “consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.” Segundo a DSI, o elemento essencial da disposição legal acima citada consiste no seguinte: deve ser residente legal em Macau o pai biológico ou a mãe biológica dum menor quando este nasce.
17. A razão é que segundo a disposição acima mencionada, os legisladores conferem a identidade de residente de Macau a um menor com base na identidade de residente de Macau do pai biológico ou da mãe biológica do próprio menor. O espírito de legislação continua a existir nos regimes jurídicos subsequentes sobre o BIR, também se mostra materializado no art.º 24.º, n.º 2 da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, no art.º 2.º do Parecer da Comissão Preparatória da Região Administrativa Especial de Macau da Assembleia Popular Nacional quanto à aplicação do parágrafo segundo do artigo 24.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, e no art.º 1, n.º 1 da Lei n.º 8/1999. Para que se obtenha a identidade de residente de Macau por nascimento, seja nascido em Macau ou fora de Macau, o pai biológico ou a mãe biológica deve ser obrigatoriamente residente de Macau.
18. Portanto, o elemento essencial do art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro é o seguinte: ou o pai biológico ou a mãe biológica é residente de Macau.
19. Além disso, o parentesco não fica sanado por prescrição. Por muitos anos que passem, um parentesco inverdadeiro não vai mudar; nem é possível passar a ser considerado nem deve ser considerado verdadeiro com o passar do tempo. Senão seria contrário à intenção original dos legisladores.
20. No presente caso particular, o facto de o pai biológico ou a mãe biológica da recorrente ser residente de Macau era um facto significativo durante a fase da constituição, que serviu como fundamento para o acto administrativo da autorização da emissão do BIRM, era o elemento essencial do acto em causa.
21. No entanto, mais tarde, o facto significativo foi confirmado como falso (era falsa a informação de identificação do pai da recorrente como constava do registo de nascimento), depois da acção declarativa no TJB. Como já está provado inexistente o parentesco entre a recorrente e o residente de Macau B, além disso a Conservatória do Registo Civil já rectificou a Certidão Narrativa do Registo de Nascimento da recorrente, a isso acresce o facto de que a recorrente não conseguiu provar que no momento do seu nascimento, o pai biológico ou a mãe biológica dela fosse residente de Macau ou tivesse residência legal em Macau, portanto, em todo o caso a recorrente não satisfaz o disposto no art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro. Desde o princípio não é residente de Macau e não lhe devia ter sido emitido o BIRM.
22. O registo de nascimento falso providenciado pelo B e pela C fez com que a DSI considerasse por engano que a recorrente fosse filha biológica do residente de Macau B, e em seguida confirmou a identidade de residente de Macau da recorrente; e emitiu-lhe o BIRM nos termos legais. Como já está provado que a recorrente não satisfaz a disposição legal acima mencionada, o acto praticado pela DSI de emitir o BIRM à recorrente enferma do vício de falta do elemento essencial.
23. Assim sendo, nos termos do art.º 122.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i) do CPA, foram todos nulos os actos praticados pela DSI de emitir à recorrente o BIRM, de lho substituir com um novo e de lhe renovar o BIR permanente da RAEM.
24. Nestes termos, a DSI deveu declarar nulos os actos acima referidos de emitir à recorrente os documentos, nos termos do art.º 123.º, n.º 2 do CPA. Os actos da DSI foram praticados nos termos legais e foram subscritos e confirmados pela entidade recorrida. Portanto, o acto recorrido não está inquinado com o vício de violação da lei, mais precisamente o de qualificação jurídica errada.
25. Deve-se sublinhar o seguinte: a lei estabelece directamente quais indivíduos são residentes permanentes de Macau. Apenas aos residentes permanentes de Macau é que a lei confere o direito de serem atribuídos o BIRM permanente e o passaporte da RAEM, enquanto a lei não confere aos indivíduos sem a identidade de residente permanente de Macau o direito de obter os documentos acima mencionados.
26. O que a DSI pode fazer limita-se a emitir o BIR da RAEM e o passaporte da RAEM nos termos legais aos indivíduos qualificados. Quanto ao conteúdo do acto, a DSI não tem qualquer direito a escolha. Portanto nisso não existe qualquer liberdade de determinar o conteúdo.
27. A declaração da nulidade de um acto nulo é igualmente considerado acto vinculado. Trata-se de um consenso tanto em doutrina quanto na prática jurídica. (Para referência: Viriato Lima e Álvaro Dantas in "Código de Processo Administrativo Contencioso Anotado", p. 310 e o acórdão proferido pelo TSI no processo n.º 299/2013)
28. Com base nisto, segundo a entidade recorrida, como a recorrente não é residente permanente de Macau, a DSI deve obrigatoriamente declarar nos termos legais nulo o acto de emitir os documentos à recorrente. Constitui um dever da DSI fazer declarações sobre um acto nulo praticado. Trata-se de um acto vinculado, não deixando qualquer margem de livre decisão, enquanto as disposições sobre os actos discricionários não se aplicam ao presente caso.
29. Além disso, no caso dos actos vinculados, não existe margem para discricionariedade para a Administração nem liberdade para a tomada de decisão, portanto, não dá lugar à violação dos princípios de boa-fé, de igualdade, de proporcionalidade e de justiça. (Para referência: o acórdão no processo n.º 54/2011 e o acórdão no processo n.º 14/2014 proferidos pelo TUI e o acórdão no processo n.º 299/ 2013 proferido pelo TSI)
30. Quanto à questão o TUI já reafirmou no acórdão proferido no processo n.º 26/2019 o entendimento uniforme do mesmo Tribunal no sentido de que no âmbito da actividade vinculada não se releva a alegada violação dos princípios da boa fé e da igualdade (e ainda dos princípios da justiça, da proporcionalidade, da tutela da confiança).
31. Disso pode-se ver que é improcedente a acusação apresentada pelo advogado mandatário, da violação por parte do acto recorrido dos princípios de boa-fé, de confiança, de proporcionalidade e de justiça que causou o vício da violação da lei.
32. Além disso, segundo o advogado mandatário, o acto recorrido violou o conteúdo essencial dos direitos básicos da recorrente. A entidade recorrida não concorda. Eis porque todos os direitos das recorrente mencionados pelo advogado mandatário na petição inicial, supostamente violados, fazem parte dos direitos e deveres exclusivamente conferidos aos residentes de Macau pela Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China.
33. A recorrente não é residente de Macau; por isso, logo desde o início a recorrente não tem os direitos básicos conferidos aos residentes de Macau pela lei.
34. Merece ser mencionado o seguinte: a Lei n.º 8/1999 é a lei específica para a implementação do art.º 24.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, em relação à obtenção do estatuto de residente permanente da RAEM. Portanto, ao confirmar se a recorrente é residente permanente de Macau, deve-se forçosamente aplicar a Lei n.º 8/1999.
35. Nos termos do art.º 1.º, n.º 1, alínea 1) da Lei n.º 8/1999, os cidadãos chineses nascidos em Macau são residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau apenas se o pai ou a mãe, à data do seu nascimento, tinha adquirido o direito de residência em Macau ou residia legalmente em Macau.
36. Como a recorrente não satisfaz o disposto acima citado, ele não é residente permanente de Macau, não tem o direito de residir em Macau, não reúne as condições para lhe poderem ser emitidos o BIR permanente da RAEM e o passaporte da RAEM. Isto é evidente.
37. Tal como indicou o TSI no acórdão proferido no processo n.º 114/2006, “se o pai biológico verdadeiro, antes do nascimento dele, não era residente permanente de Macau, então o miúdo não tem mais residência em Macau, nem está qualificado de ter o BIR permanente da RAEM.”
38. Portanto, segundo a entidade recorrida, a declaração da nulidade do acto de emitir à recorrente o BIR feita pela DSI não violou qualquer “direito” ou interesse protegido pela lei da recorrente, eis porque desde o início a recorrente não tem o “direito” de residir em Macau. Por isso, o acto recorrido não tem o vício de nulidade por violação do art.º 122.º, n.º 2, alínea d) do CPA como indicou o advogado mandatário.
39. Segundo o advogado mandatário, a recorrente é residente de Macau há mais de 22 anos. Indica também que a recorrente já satisfaz o disposto no art.º 123.º, n.º 3 do CPA; portanto, deve-se continuar a emitir BIR permanente da RAEM à recorrente.
40. Quanto aos efeitos jurídicos putativos previstos pelo art.º 123.º, n.º 3 do CPA, tomando como referência o acórdão proferido pelo TUI no processo n.º 76/2015, o simples motivo de decurso do tempo não faz com que um acto nulo produza efeito jurídico, tem que orientar-se pelos princípios gerais jurídicos para que se possa atribuir efeitos jurídicos a uma situação de facto decorrente dum acto nulo.
41. Além disso, como indica o TSI no acórdão proferido no processo n.º 782/2017: se atribuir ou não efeitos jurídicos a uma situação de facto decorrente dum acto nulo encontra-se no âmbito de discricionariedade da Administração. Quanto ao exercício do poder discricionário, este é sindicável pelo tribunal só nos casos do desvio de poder, de erro manifesto ou da total desrazoabilidade.
42. É necessário reiterar: no presente caso, como a identidade de residente de Macau da recorrente foi obtida através de informações falsas e já que está confirmado que a recorrente não satisfaz os requisitos e não reúne as condições para lhe ser emitido o BIR permanente da RAEM, a DSI deve declarar nos termos legais que é nulo o acto de emitir-lhe o BIR permanente da RAEM.
43. O efeito principal da declaração da nulidade é cancelar nos termos legais o BIR permanente da RAEM e o passaporte da RAEM portados pela recorrente. O advogado mandatário não devia ter considerar o efeito principal do acto nulo como o efeito jurídico putativo previsto pelo art.º 123.º, n.º 3 do CPA.
44. Se o Mm.º Juiz não concordar com a opinião acima mencionada, segundo a entidade recorrida, sempre não poderá atribuir à recorrente o efeito jurídico putativo previsto pelo art.º 123.º, n.º 3 do CPA.
45. Na petição inicial, o advogado mandatário referia que a recorrente tinha nascido, crescido e vivido em Macau; que tinha completado os ensinos primário, secundário e universitário em Macau e que a sua identidade nunca tinha sido objecto de dúvida. Segundo o mandatário, a recorrente está determinada de ser funcionária pública da RAEM e já tem a licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade de Macau. Indicava também que os conhecimentos que ela tinha obtido durante a licenciatura seriam colocados em prática apenas se trabalhasse para o governo de Macau.
46. Em primeiro lugar, deve-se indicar o seguinte: não corresponde à verdade o que disse o advogado, i.e., que a recorrente tivesse crescido em Macau. A verdade é antes a seguinte: a recorrente viveu sempre no Interior da China; só no terceiro ano da escola secundária-complementar é que voltou a Macau para frequentar o ano aqui; foi por isso é que ela obteve a graduação na escola secundária em Macau.
47. Além disso, o facto de que a recorrente tem a licenciatura em Ciências Sociais não quer dizer que a recorrente tenha tido sucesso na candidatura para ser funcionária pública da RAEM. O facto de que a sua identidade nunca foi objecto de dúvida no passado não quer dizer que a sua identidade fique a ser automaticamente legal, nem significa que o acto de obter o BIRM através de dados de identificação falsos não prejudique os interesses públicos. Além disso, não se pode pedir que sejam confirmados os factos acima referidos, enquanto efeitos e as relações já adquiridas pela recorrente no aspecto de factos.
48. A recorrente não satisfaz a disposição legal e não tem a identidade de residente de Macau permanente. A identidade não vai mudar por causa da opinião subjectiva da recorrente, de que ela é portadora legítima e legal do BIR permanente da RAEM.
49. Além disso, como o acto de emitir à recorrente o BIRM foi declarado nulo, nos termos do art.º 5.º, n.º 1 da Lei n.º 8/1999, não se pode presumir que no passado a recorrente tenha " residido habitualmente em Macau" quando se encontrava em Macau. Ou seja, por muitos anos que se tenha residido em Macau na realidade, não se pode ficar a ser residente permanente de Macau por ter residido habitualmente em Macau por 7 anos consecutivos.
50. Se mesmo depois de o caso ter sido revelado, a DSI continuasse a reconhecer à recorrente a identidade de residente permanente de Macau e assim continuasse a emitir-lhe o BIR Permanente da RAEM, induziria a população no engano de que se possa obter BIR Permanente da RAEM através de apresentação de informações falsas. Isso equivaleria a encorajar outras pessoas usar o mesmo método para atingir o objectivo idêntico. Isso ia encorajar actos ilegais e criar uma atmosfera maligna na sociedade, colocaria em causa seriamente a fé pública dos documentos de identificação. As práticas acima mencionadas são incompatíveis com o “princípio da prossecução do interesse público” previsto pelo art.º 4.º do CPA. Além disso, se o documento acima mencionado continuasse a ser emitido à recorrente, isso seria o oposto da finalidade que se pretende atingir com o regime de nulidade.
51. A isso acresce que seria uma violação grave do princípio de legalidade se a DSI emitisse o documento acima mencionado a um indivíduo que não seja residente permanente de Macau.
52. Apesar do facto de que o MP já arquivou o caso no qual a C e o B tinham sido suspeitos de ter apresentado informações falsas sobre o pai da recorrente para que esta obtivesse o BIRM, em todo o caso, independentemente de o acto de apresentar dados de identificação falsos ser condenado penalmente ou não, a identidade da recorrente de “residente de Macau”, confirmada no passado, foi obtida através de dados de identificação falsos.
53. O advogado mandatário indica na petição inicial que a recorrente não cometeu qualquer falta nem teve culpa. No entanto, mesmo que os dados de identificação falsos não foram providenciados à DSI pela recorrente e que a recorrente não teve parte no acto que provocaria a nulidade do BIR dela, o acto em discussão foi praticado para o interesse da recorrente, com o fim de obter para a recorrente um direito que não lhe devia ter sido atribuído, para que ela pudesse residir permanentemente em Macau.
54. Para com o acto de obter BIRM através de dados de identificação falsos, a DSI adoptou o critério que adopta desde sempre para todos os casos, declarou nulo o acto e cancelou o BIR portado pela recorrente nos termos legais. Se se concedesse à recorrente um tratamento preferencial diferente daquilo nos outros casos semelhantes, então seria uma violação do "princípio da igualdade" previsto pelo art.º 5.º do CPA, também prejudicaria a confiança tida pela população em relação ao modus operandi da DSI.
55. Portanto, depois de ter pesado as duas alternativas de, por um lado, combater a obtenção de BIRM com dados de identificação falsos, e de por outro lado garantir o interesse da recorrente de continuar a residir em Macau, a entidade recorrida entende que não se deve atribuir à recorrente o efeito jurídico putativo previsto pelo art.º 123.º, n.º 3 do CPA.
56. A entidade recorrida conhece a situação da recorrente. Todavia, mesmo se a recorrente com boa-fé rectificou o erro em causa por sua iniciativa e de forma proactiva, ou ainda por razões humanas, estes não são fundamentos principais pelos quais a DSI emite documentos ou ainda factores que a DSI deve obrigatoriamente considerar; o advogado mandatário, por sua vez, não pode pedir à DSI continuar a emitir BIR permanente da RAEM à recorrente com base naqueles motivos.
57. No entanto, deve-se indicar o seguinte: o acto praticado pela DSI de cancelar o BIR permanente da RAEM da recorrente não obsta a que a recorrente apresente pedidos de residência segundo outras disposições legais e à respectiva entidade competente.
58. Quanto à nacionalidade da recorrente, o acto recorrido não vai fazer com que a recorrente fique sem nacionalidade, mesmo que a recorrente não reúne as condições para lhe serem emitidos o BIR permanente da RAEM e o passaporte da RAEM. Nos termos do art.º 4.º da Lei da Nacionalidade da República Popular da China, "Um indivíduo nascido na China cujos progenitores, ou um deles, sejam cidadãos chineses tem nacionalidade chinesa." A recorrente tem nacionalidade chinesa.
Nestes termos, pede-se ao Mm.º Juiz julgar improcedente o presente recurso contencioso e sustentar o acto administrativo praticado pela entidade recorrida.

  Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
  
  Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido o seguinte parecer:
  1.
  A, melhor identificada nos autos, vem interpor recurso contencioso do acto praticado pela Secretária para a Administração e Justiça datado de 20 de Agosto de 2019 que indeferiu o recurso hierárquico interposto do acta da Directora dos Serviços de Identificação que declarou nulos os actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Residente (BIR) n.º 1/2XXXXX/3 e bem assim os actos da respectiva substituição e renovação e de cancelamento do passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM) n.º MAXXXXX80, alegando, em síntese, que o acto recorrido enferma dos seguintes vícios invalidantes:
(i) Nulidade do acto recorrido por ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental;
(ii) Violação de lei por erro na aplicação do direito;
(iii) Violação de lei por a administração ter considerado que o acto de declaração de nulidade é vinculado;
(iv) Violação dos princípios da boa fé da confiança da proporcionalidade e da justiça;
(v) Violação do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
  2
  2.1
  Não obstante a aparência de unicidade do acto recorrido e, consequentemente, da respectiva impugnação o certo é que estão em causa dois actos administrativos.
  Em primeiro lugar o acto que declarou a nulidade do acto de emissão do BIR do Recorrente e, em segundo lugar, o acto que declarou a nulidade do acto de emissão do passaporte da RAEM de que a Recorrente é titular.
  Estamos, por isso, em rigor, perante uma cumulação de impugnações que, face ao disposto no artigo 44.º do CPAC, nos parece legítima atenta a conexão que existe entre os respectivos objectos.
  2.2
  Num e noutro caso, a Administração utilizou o mesmo fundamento para justificar os seus actos, qual seja o de que os actos declarados nulos careciam de elementos essenciais e eram, por isso, enquadráveis no artigo 122.º, n.º 1 do CPA.
  De acordo com a fundamentação dos actos recorridos, a Recorrente beneficiou da emissão do BIR e do passaporte da RAEM porque, quando nasceu, ficou a constar do respectivo assento de nascimento como seu pai um residente de Macau. Entretanto, veio a verificar-se; na sequência da propositura de uma acção judicial de impugnação de paternidade que o pai da Recorrente não é aquele que inicialmente ficou a constar do registo civil, mas um outro individuo que à data do nascimento da Recorrente não era residente de Macau.
  Por isso, a Administração considerou que os actos de emissão de BIR e de emissão de passaporte são nulos porque lhes falta um elemento essencial, qual seja o da residência da Recorrente em Macau.
  Vejamos.
  2.2.1
  Estabelecia-se no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, em vigor à data da primeira emissão do BIR da Recorrente:
  «Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento».
  Consagrava-se na norma acabada de transcrever uma forma de aquisição originária do direito de residência em Macau fundada no nascimento e que resultava da conjugação de dois pressupostos: (i) por um lado, o nascimento do menor em Macau e por outro (ii) a residência legal em Macau de pelo menos um dos progenitores, ao tempo do nascimento do menor.
  Ora, está demonstrado e assente que a Recorrente, no dia 23 de Outubro de 1996, nasceu em Macau e que, por outro lado, nessa data, a pessoa que no registo civil figurava como seu pai, é dizer, a pessoa relativamente à qual se achava estabelecida a paternidade da Recorrente tinha o estatuto de residente de Macau. Portanto, no momento em que foi praticado, o acto de emissão do BIR não enfermava de qualquer vício, mostrando, ao invés, em absoluta conformidade com a lei (tempus regit actum).
  Sucede que, mais recentemente, por sentença proferida pelo Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial de Base no processo FM1-17-0010-CAO e transitada em julgado em 3 de Novembro de 2017, ficou estabelecido que a paternidade do Recorrente é de outra pessoa que não aquela que antes figurava no registo como seu pai, sendo certo que a mesma, à data do nascimento da Recorrente, não era residente de Macau.
  Não nos parece, no entanto, que esta circunstância implique, por si só, a nulidade do acto de emissão do BIR e do passaporte da RAEM do Recorrente por falta dos seus elementos essenciais como foi entendido pela Administração.
  2.2.3
  Como se sabe, a regra entre nós vigente e que resulta do artigo 124.º do CPA, é a de que os actos administrativos inválidos são meramente anuláveis e não nulos.
  A nulidade só ocorre quando a um acto faltem os elementos essenciais ou quando a lei comine expressamente essa forma de invalidade, tal como decorre do disposto no artigo 122.º do CPA.
  Compreende-se a opção do legislador em erigir a anulabilidade como regime-regra, dado que a mesma se mostra «determinada por considerações de oportunidade, que sobretudo se prendem com a necessidade de dotar as situações que são definidas por ato administrativo de um mínimo de estabilidade que proteja a confiança do amplo círculo de interessados que nelas podem estar envolvidos» (assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, 3.ª edição, Coimbra, 2015. P. 270).
  Sobre o que deva entender-se por elementos essenciais do acto cuja falta determina a chamada nulidade por natureza não existe, como se sabe, unanimidade na doutrina, havendo autores que adoptam um critério estrutural, enquanto outros utilizam um critério material de determinação do que sejam tais elementos essenciais (no primeiro sentido, MARCELO REBELO DE SOUSA - ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, pp. 160-161; no segundo sentido, por exemplo, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA - PEDRO COSTA GONÇALVES - J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1998, p. 645).
  Entre nós, o Tribunal de Última Instância, no seu acórdão de 5.11.2014, tirado no processo n.º 82/2014, já teve oportunidade de decidir que se consideram «elementos essenciais do acto aqueles cuja falta não permite a qualificação do acto como administrativo, podendo abrange factores cuja ausência é de tal modo grave que repugna à consciência jurídica a possibilidade da ilegalidade se sanar pelo decurso do tempo».
  Em nosso modesto entendimento, faltará um elemento essencial ao acto administrativo quando o mesmo se encontre desprovido de um elemento indispensável à sua caracterização como acto administrativo, como sejam o seu autor e o seu destinatário, o seu conteúdo, mas também quando lhe falte um requisito de tal modo essencial que o vício, pela sua gravidade, não pode ficar apenas submetido ao regime da anulabilidade. A este último propósito, a doutrina costumava ilustrar com o exemplo das verificações constitutivas, considerando-se que seria um elemento essencial a veracidade dos factos certificados (assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, - PEDRO COSTA GONÇALVES - J. PACHECO AMORIM, Código..., p. 642 e JOSÉ CARLOS VIEIRACDE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5.ª edição, Coimbra, 2018, p. 222. De resto, esta situação está hoje expressamente tipificada como causa de nulidade na alínea j) do n.º 2 do artigo 161.º do novo CPA português).
  No caso em apreço, não vemos que os actos administrativos de emissão do BIR e do passaporte da RAEM a favor da Recorrente enfermem da falta de qualquer elemento essencial de natureza estrutural. E também não vemos que lhes falte qualquer outro elemento que, pela gravidade dessa falta, justifique que se considere que tais actos são nulos.
  Repare-se. Para a emissão do BIR aos menores a lei exigia, como vimos, que os mesmos tivessem nascido em Macau e que, no momento do nascimento, fossem filhos de indivíduos autorizados a aqui residir nos termos da lei. Ao tempo da emissão do BIR estavam verificadas estas condições: (i) o Recorrente nasceu em Macau e (ii) nesse momento, o seu pai, de acordo com a paternidade então estabelecida, era também residente de Macau.
  Do mesmo modo com a emissão do passaporte.
  Nos termos do artigo 5.º da Lei n.º 8/2009, podem ser titulares de passaporte da RAEM as pessoas que satisfaçam os seguintes requisitos:
(i) Sejam cidadãos chineses;
(ii) Sejam titulares do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM.
  Ora, na data da emissão do passaporte da Recorrente tais requisitos era de verificação indiscutível pelo que se não vislumbra a falta de qualquer elemento essencial neste acto.
  A isto contrapõe a Administração que a Recorrente não tem o estatuto de residente de Macau porque à data do seu nascimento o seu pai não era residente de Macau e como tal, os actos que foram declarados nulos padecem, ab initio, da falta de um elemento essencial.
  Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar este entendimento.
  Como referimos, quando os actos foram praticados, a filiação da Recorrente encontrava-se estabelecida, embora, como mais tarde se veio a verificar, não existisse uma coincidência com a respectiva filiação biológica.
  Uma vez que a filiação se encontrava estabelecida, os efeitos jurídicos em matéria de aquisição do direito de residência por parte da Recorrente emergentes dessa filiação estabelecida produziram-se.
  A questão que se coloca é a de saber se tais efeitos produzidos à sobra da filiação anteriormente estabelecida se podem considerar destruídos retroactivamente, desde o nascimento do Recorrente, pelo facto de em 2017 ter sido estabelecida uma outra paternidade.
  Não nos parece.
  Sabemos que, de acordo com a norma do artigo 1650.º, n.º 2 do Código Civil, o estabelecimento da filiação tem eficácia retroactiva, o que significa que, em princípio, todo o conjunto de consequências jurídicas que são previstas por várias normas e que não se produziram antes, produzem-se agora como se a filiação tivesse sido estabelecida desde o nascimento (assim, GUILHERME DE OLIVEIRA, Estabelecimento da Filiação, 2019, p. 21).
  No entanto, essa regra da retroactividade dos efeitos da filiação exige uma aplicação criteriosa. Como a doutrina assinala, «a retroactividade é uma técnica jurídica não uma ficção da realidade» e a realidade é esta: no momento do nascimento da Recorrente, aquele a que lei confere relevância, o vínculo jurídico da sua filiação estava estabelecido em relação a um residente de Macau e o efeito que a lei associa a esse facto produziu-se com a atribuição à Recorrente do estatuto da residência que a mesma manteve, pacificamente, durante mais de 20 anos.
  Por outro lado, aquela regra da eficácia retroactiva que decorre da norma do artigo 1650.º, n.º 2 do Código Civil não é, nem pode ser de aplicação absoluta.
  Tem de se aceitar, como ensina a boa doutrina, que, em certas circunstâncias, daquela regra não resulte a completa destruição de determinados actos ou vínculos jurídicos entretanto criados com base na filiação anteriormente estabelecida, sob pena de se comprometer irremediável e intoleravelmente esse elemento essencial do Estado de Direito que é o da segurança jurídica (neste último mesmo sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA, Estabelecimento da Filiação, 2019, p. 22. Ainda que a Lei Básica não consagre expressamente uma referência ao princípio da segurança jurídica, deve entender-se que esse é um princípio essencial integrador do tecido normativo material de natureza constitucional que vigora na Região, porquanto reveste um carácter imprescindível a uma estruturação da vida social em paz jurídica. Neste sentido, JORGE REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Coimbra 2019, p. 149).
  Ora, a situação que os presentes autos documentam parece-nos ser uma daquelas em que o princípio da segurança jurídica reclama uma desaplicação daquela norma do n.º 2 do artigo 1650.º do Código Civil em toda a sua extensão. De contrário estar-se-ia a destruir, de forma irremediável e injustificada, o vínculo pessoal à Região que a Recorrente, desde o seu nascimento, ocorrido há cerca de 24 anos, legitimamente mantém.
  Afastada a aplicação da regra da retroactividade do estabelecimento da filiação à situação presente, ficarão salvaguardados os efeitos produzidos, em matéria de residência, com base na filiação anteriormente estabelecida e como tal terá de concluir-se que, nem o acto de emissão do BIR nem o acto de emissão do passaporte da RAEM carecem do elemento que a Administração reputou de essencial.
  Importa igualmente salientar que a norma do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, entretanto revogada, e, a norma do artigo 4.º da Lei n.º 8/2002, em vigor, têm como pressuposto de aplicação o de que em causa estejam menores uma vez que essas normas têm em vista regular a atribuição do estatuto de residente a menores, não a maiores. Queremos com isto dizer que os pressupostos relevantes, de acordo com aquelas normas legais, para a atribuição da residência aos menores são aqueles que se verificam durante a menoridade e, em princípio, só esses, irrelevando, pois, os que vierem a verificar-se uma vez atingida a maioridade. E a verdade é que a Recorrente, quando viu estabelecida a sua filiação relativamente a uma pessoa que, à data do seu nascimento, não era um residente de Macau, já era maior.
  Eis porque somos a concluir que o pressuposto de que partiu a Administração para considerar que aos actos declarados nulos faltava um elemento essencial não está demonstrado.
  3.
  Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o recurso contencioso deve ser julgado procedente devendo, em consequência, serem anulados os actos recorridos.
  
  Foram colhidos os Vistos.
  
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  O Tribunal é o competente.
  O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
  Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
  
  Cumpre assim apreciar e decidir.
  
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
  A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
1. A parte A nasceu em Macau aos XX de XX de 19XX, é titular do assento de nascimento n.º 5XX6, emitido pela Conservatória do Registo de Nascimento, do qual consta que o pai é residente de Macau B (titular do BIRM n.º 12XXXXX(3)), a mãe é residente do Interior da China C.
2. Em 18 de Novembro de 1996, em representação da parte, B pediu pela 1ª vez a emissão do BIRM perante a nossa Direcção. Segundo as informações do referido assento de nascimento, a Direcção emitiu à parte pela 1ª vez o BIRM n.º 1/2XXXXX/3.
3. Em 9 de Setembro de 2005, a nossa Direcção emitiu à parte o BIRM n.º 12XXXXX(3), que foi renovado respectivamente em 21 de Julho de 2010 e em 11 de Junho de 2015.
4. Em 11 de Julho de 2018, a parte apresentou à nossa Direcção a Certidão Narrativa de Nascimento n.º 5016/1996/CR, emitido pela Conservatória do Registo Civil, da qual consta que o pai é D, a mãe é C, e pediu a substituição do BIRM n.º 12XXXXX(3), com fundamento em rectificação das informações de identidade do pai.
5. Em 24 de Julho de 2018, a parte foi prestar à nossa Direcção a declaração n.º 629/DIR/2018, declarou que, “quando fazia candidatura à universidade, descobri que consta do assento de nascimento que o pai é B. Perguntei à mãe as informações do pai, ela não justificou, solicitei fazer o teste de paternidade com D. No último ano, a irmã mais nova, D, C e eu fomos fazer o teste de paternidade num determinado órgão, verificou-se que sou filha de D e C, deste modo, os pais constituíram advogado para ir ao tribunal rectificar para mim a identidade do pai, mas não para os irmãos, são sei porquê.”
6. Para proceder ao pedido de BIRM da parte, em 12 de Novembro de 2018, por carta n.º 5761/DIR/2018, a nossa Direcção solicitou à parte entregar a sentença civil do tribunal sobre a identidade do pai, o original e a cópia do relatório do teste de paternidade entre a parte, a irmã F e os pais, bem como solicitou a B, D e C ir à nossa Direcção prestar declaração sobre a identidade pessoal da parte.
7. Em 12 de Março de 2019, C, D e B foram à nossa Direcção prestar respectivamente as declarações n.º 219/DIR/2019, n.º 220/DIR/2019 e n.º 221/DIR/2019, nas quais todos declararam que, achavam que o pai é B, C e D só conheceram que o pai da parte é D até à feitura do teste de paternidade, B afirmou que não sabia o resultado do teste de paternidade.
8. Segundo o despacho n.º 5955/2003 do processo de inquérito do MP, recebendo a denúncia da Conservatória do Registo Civil, o MP suspeitou a arguida C e o arguido B de falsificar as informações de identidade do pai para facultar à parte obter o BIRM, arquivou parcialmente o teor do processo sobre o crime de falsificação de documento de valor especial.
9. A nossa Direcção recebeu a certidão do TJB, entregue pela parte, incluindo o relatório do teste de paternidade entre a parte, B, D e C (n.º BIO2017-234) e o acórdão civil n.º FM1-17-0010-CAO do Juízo de Família e de Menores do TJB, o qual declarou que B não é o pai biológico de A, ordenou cancelar a paternidade de B do registo de nascimento da parte e introduzir a paternidade de D, o acórdão transitou-se em julgado em 3 de Novembro de 2017.
10. Em 2003, D e C fixaram a residência em Macau por imigração com fundamento em investimento, o primeiro é titular do BIRM n.º 13XXXXX(4), cuja 1ª emissão é datada de 11 de Fevereiro, C é titular do BIRM n.º 13XXXXX(9), cuja 1ª emissão é datada de 11 de Fevereiro.
11. No momento de nascimento da parte, os pais não tinham a identidade de residente de Macau, nem moravam legalmente em Macau, portanto, a parte não tinha a identidade de residente de Macau. Em 21 de Maio de 2019, por carta n.º 211/DAG/2019, a nossa Direcção notificou a parte de que seriam cancelados o seu BIRM n.º 12XXXXX(3), cuja 1ª emissão é datada de 18 de Novembro de 1996, e o Passaporte da RAEM n.º MAXXXXX80, emitido em 26 de Fevereiro de 2015, bem como seria realizada a audiência escrita sobre o assunto.
12. Em 24 de Maio de 2019, a parte foi à Direcção receber a carta, em 3 de Junho de 2019 apresentou as alegações escritas, em que não ofereceu documento ou prova nova para verificar a identidade de residente de Macau da parte.
13. Em 24 de Junho de 2019, por proposta n.º 39/DAG/DJP/2019, a nossa Direcção decidiu declarar nulo o acto de emissão à parte do BIRM n.º 1/2XXXXX/3 e substituição e renovação do BIR permanente da RAEM n.º 12XXXXX(3), cancelar o seu BIR permanente da RAEM n.º 12XXXXX(3), cuja 1ª emissão é datada de 18 de Novembro de 1996, e o seu passaporte da RAEM n.º MAXXXXX80, emitido em 26 de Fevereiro de 2015.
14. Em 25 de Junho de 2019, por carta n.º 259/DAG/DJP/2019, a nossa Direcção notificou a parte da referida decisão de cancelamento, informou também o CPSP por carta no mesmo dia. Em 28 do mesmo mês, a parte foi à Direcção receber a carta.
15. Em 23 de Julho de 2019, a nossa Direcção recebeu a carta do Advogado da parte, na qual notificou a Direcção de que em 22 do mesmo mês a parte já interpôs recurso hierárquico necessário ao Secretário para a Administração e Justiça, também solicitou devolver à parte o seu BIRM.
16. Em 24 de Julho de 2019, a nossa Direcção recebeu o recurso hierárquico necessário, interposto pelo Advogado da parte sobre a decisão referida, remetido pelo Gabinete do Secretário.
17. O Advogado da parte indicou no recurso hierárquico necessário que o CPSP já arrecadou o BIRM da parte. Em 25 de Julho de 2019, a nossa Direcção solicitou por carta ao CPSP remeter o BIRM à Direcção para proceder.
18. Em 2 de Agosto de 2019, a parte foi à Direcção receber o seu BIRM.

b) Do Direito
  Tal como resulta do Douto Parecer supra transcrito são os seguintes os vícios imputados ao acto recorrido:
  1. Nulidade do acto recorrido por ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental;
  2. Violação de lei por erro na aplicação do direito;
  3. Violação de lei por a administração ter considerado o acto de declaração de nulidade é vinculado;
  4. Violação dos princípios da boa-fé da confiança da proporcionalidade e da justiça;
  5. Violação do artigo 123.º, nº 3 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
  
  Tal como também resulta daquele Parecer e aqui transcrevemos, «Não obstante a aparência de unicidade do acto recorrido e, consequentemente, da respectiva impugnação o certo é que estão em causa dois actos administrativos.
  Em primeiro lugar o acto que declarou a nulidade do acto de emissão do BIR do Recorrente e, em segundo lugar, o acto que declarou a nulidade do acto de emissão do passaporte da RAEM de que a Recorrente é titular.
  Estamos, por isso, em rigor, perante uma cumulação de impugnações que, face ao disposto no artigo 44.º do CPAC, nos parece legítima atenta a conexão que existe entre os respectivos objectos.».
  Posição esta à qual também aqui aderimos.
  Nos actos recorridos entendeu a Administração que por força da alteração da menção da paternidade quanto à Recorrente, passando aquela a ser atribuída a um sujeito que ao tempo do nascimento da Recorrente não era residente da RAEM, os actos de emissão de BIRPM e de Passaporte da RAEM são nulos nos termos do nº 1 do artº 122º do CPA por falta de elemento essencial.
  
  Apreciemos então os vícios imputados aos actos recorridos.
  
  1. Nulidade do acto recorrido por ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental;
  
  Sobre esta questão escreve Diogo Freitas do Amaral, em Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4ª Ed., pág. 368/369:
  «O artigo 161.º, n.º2, do CPA considera, exemplificativamente, como atos nulos.
  (…)
  D) Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;
  (…)
  Um dos preceitos mais difíceis de interpretar é o constante da alínea d): que deve entender-se, neste contexto, por direito fundamental?
  Cabe à jurisprudência e à doutrina delimitar o sentido e o alcance da norma legal: por nós, contudo, entendemos que a expressão direitos fundamentais só abrange, neste artigo, os direitos, liberdades e garantias, e os direitos de natureza análoga, excluindo os direitos económicos, sociais e culturais que não tenham tal natureza. Seria, com efeito, levar longe de mais o elenco das nulidades do ato administrativo considerar como atos todos os que de alguma forma pudessem ofender algum direito económico, social ou cultural sem natureza analogia à dos direitos, liberdades e garantias: por exemplo, não nos pareceria razoável fulminar com a sanção mais grave da nulidade todos os atos administrativos praticados no domínio da segurança social em que, por erro de facto ou por erro de cálculo, se violasse o direito subjectivo a uma certa prestação social. Aos atos desta natureza melhor se ajusta, em caso de ilegalidade ou de vício da vontade, o regime da anulabilidade, por razões de certeza e segurança do direito. O mesmo se diga dos direitos subjetivos públicos de carácter administrativo (por exemplo, direito de informação, direito à audiência prévia, direito à notificação, etc.), cuja violação é, quanto a nós, geradora de mera anulabilidade, por não estar em causa a proteção da dignidade da pessoa humana – a qual é o valor jurídico basilar do conceito de «direito fundamental»».
  Os Direitos e Deveres fundamentais dos Residentes de Macau encontram-se definidos nos artigos 24º a 44º da Lei Básica.
  Segundo a Jurisprudência comparada em Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 01.08.2016, proferido no processo 01665.0/10BEBRG-A, «II – O “conteúdo essencial de um direito fundamental” previsto no artigo 133.º, nº 2, alínea d), do CPA reporta-se ao núcleo duro de um direito, liberdade e garantia ou análogo, à ofensa chocante e grave de um princípio estruturante do Estado de Direito ou de outro direito fundamental suficientemente densificado na lei ordinária.
  A violação do “conteúdo essencial de um direito fundamental” só gera a nulidade do acto administrativo e, consequentemente, a possibilidade da sua impugnação a todo o tempo, quando, em consequência do acto administrativo em causa, seja afectado o mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir enquanto tal.».
  Ou seja, a nulidade prevista na al. d) do nº 2 do artº 122º do CPA só implica a nulidade do acto, se este – o acto – afectar a subsistência do direito em si.
  A Recorrente argumenta que com a prolacção dos actos impugnados ficou sem qualquer documento de identificação – Bilhete de Identidade e Passaporte – deixando de pertencer a Região ou País algum, uma vez que, os seus pais, sendo Chineses já passaram a ser residentes da RAEM tendo sido cancelados os registos de residência na China Continental, não tendo a Recorrente relação ou conexão com qualquer outro país.
  O facto de ficar sem os documentos de identificação – Bilhete de Identidade e Passaporte – emitidos pela RAEM porque eventualmente não reúne as condições nos termos do artº 24º da Lei Básica para ser residente de Macau não constitui a violação de direito fundamental algum.
  O direito fundamental que no caso sub judice está em causa é o direito a ser residente e esse só poderá ser afectado se, estando preenchidos os pressupostos que levam à concessão do direito este não for concedido, o que, no caso em apreço, nos reconduz à apreciação dos demais vícios invocados, ficando prejudicada a apreciação daquele outro.
  
  2. Vício de violação de lei por erro na aplicação do direito.
  Relativamente a esta matéria é elucidativo o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público nos seus pontos 2.2.1 e 2.2.3. e onde se conclui que por força da não retroactividade absoluta da norma do nº 2 do artº 1650º do C.Civ. os actos de atribuição e emissão à Recorrente do BIRPM nº 12XXXXX(3) emitido em 18.11.1996 e do Passaporte da RAEM nº MAXXXXX80 em 26.02.2015, não são nulos face ao disposto no nº 1 do artº 122º do CPA uma vez que quando foram praticados não lhes faltava elemento algum.
  Concordamos inteiramente com a posição assumida no referido Parecer.
  Para além da Doutrina já naquele citada mostra-se também adequado citar José Carlos Vieira de Andrade em “A Nulidade Administrativa essa Desconhecida” in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, pág. 772:
  «Sendo a gravidade substantiva definida pela lei por referência aos “elementos essenciais” do acto, deve tal entender-se como uma menção relativa aos momentos estruturais, mas compreendidos numa perspectiva valorativa, funcional e prática – a gravidade dos vícios mede-se relativamente aos aspectos principais do sujeito, do objecto, do fim, do conteúdo, da forma e do procedimento, do modo que o acto, pressuposta a sua existência, será nulo quando os vícios de que sofre impliquem ou se equiparem à falta de algum desses elementos, em função do respectivo tipo legal.».
  Ora, no caso em apreço o apontado vício do acto não contende com nenhum dos elementos essenciais do acto.
  Quando os actos que agora se pretende sejam nulos foram praticados a filiação de um sujeito nascido em Macau encontrava-se estabelecida.
  E ao tempo do nascimento foi estabelecida quanto à paternidade relativamente a um residente de Macau.
  A validade do acto tem de ser aferida em função dos elementos que existem quando foi praticado – tempus regit actum -.
  O que sucedeu é que, posteriormente aquele elemento veio a ser alterado, circunstância que já não é contemporânea da prática dos actos que foram considerados nulos pelos actos aqui impugnados e objecto destes autos.
  O facto do estabelecimento da filiação retroagir ao momento do nascimento não apaga nem inquina todos os actos que hajam sido praticados com base na filiação que se encontrava estabelecida, os quais ao tempo foram praticados de acordo com o que constava do registo.
  Inclusivamente a impugnação da maternidade ou paternidade por não estar conforme com a biológica pode não lograr proceder de acordo com o disposto no nº3 do artº 1665º, aplicável à paternidade por força do disposto no nº 3 do artº 1697º, todos do C.Civ..
  No caso em apreço – e como já é referido no Parecer do Ministério Público – é preciso ser cauteloso no que concerne aos efeitos retroactivos da impugnação/fixação da paternidade.
  Decorrência da concepção biológica do ser humano justifica-se a norma do nº 2 do artº 1650º do C.Civ., uma vez que não se pode ter um pai até determinada idade e a partir daí um outro, no entanto os efeitos jurídicos a retirar da norma em causa têm de ser ponderados.
  Por outro lado, e se tal não fosse já bastante não podemos abstrair do princípio “tempus regit actum” – já antes citado e também referido no parecer do Ministério Público -, segundo o qual se diz no Acórdão de 04.07.2002 do Supremo Tribunal Administrativo Português, proferido no processo 0852/02 “É pacífica a jurisprudência deste Tribunal que afirma, no âmbito do contencioso administrativo, a vigência do princípio “tempus regit actum”, segundo o qual, a apreciação da legalidade dos atos administrativos deve ter em conta, apenas, a realidade fáctica existente no momento da sua prática e o quadro normativo então em vigor (Acórdãos STA de 6.2.02, no recurso 37633, Pleno, e de 7.2.02, no recurso 48295)”.
  Ora, à data em que os actos foram praticados a factualidade necessária para o efeito existia e correspondia ao que constava do registo de nascimento, pelo que, se impõe concluir não estar demonstrado que aos actos declarados nulos faltava um elemento essencial.
  Assim sendo, impõe-se concluir que os dois actos impugnados ao concluírem pela nulidade dos actos de emissão de BIRPM e de Passaporte, por não estar demonstrado que àqueles faltava elemento essencial, enfermam de vício de violação de lei, sendo consequentemente anuláveis nos termos do artº 124º do CPA.
  Mas ainda que assim não se entendesse e concluísse pela nulidade dos actos de atribuição de BIRPM e de Passaporte da RAEM, sempre haveria que avaliar dos efeitos putativos do acto.
  
  Vejamos então, dos demais vícios invocados.
  3. Violação de lei por a administração ter considerado o acto de declaração de nulidade é vinculado;
  4. Violação dos princípios da boa-fé da confiança da proporcionalidade e da justiça;
  5. Violação do artigo 123.º, nº 3 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
  
  Relativamente a estas três questões, da forma como são invocadas e face ao efeito pretendido pela Recorrente todas elas se encadeiam de modo a serem apreciadas conjuntamente.
  Sendo o acto nulo não produz efeitos, pelo que, segundo o purismo dos conceitos nada mais haveria a discutir a não ser retirar da nulidade as consequências devidas.
  É tradicionalmente aceite pela Jurisprudência e Doutrina que o reconhecimento por banda da Administração da nulidade do acto é um acto vinculado.
  Contudo, o nº 3 do artº 123º do CPA, a propósito da não produção de efeitos jurídicos do acto nulo, consagra que não fica prejudicada «a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito».
  Veja-se a este respeito José Carlos Vieira de Andrade em “A Nulidade Administrativa essa Desconhecida” na obra supra indicada a pág. 776:
  «O panorama apocalíptico associado ao regime legal da nulidade compreender-se-á numa perspectiva histórica, na medida em que o regime foi elaborado tendo em mente os actos da “administração agressiva” (e, entre nós, da administração local) e com base numa enumeração, taxativa e concreta, das situações ou dos vícios geradores de nulidade – mas é excessivamente radical e não responde em termos adequados à realidade dos tempos de hoje, em que se impõe a consideração das relações jurídicas estabelecidas pelos actos administrativos.
  Por um lado, o regime puro não funciona bem perante o alargamento do conceito e das espécies de acto administrativo, agora muitas vezes actos constitutivos de direitos e interesses legalmente protegidos, que exigem a produtividade ou merecem a estabilidade da situação de facto originada pelo acto. Por outro lado, não se coaduna com a definição qualitativa das nulidades por natureza e com o consequente carácter problemático da qualificação da invalidade – menos ainda entre nós, quando a definição legal de nulidade substancial se refere à falta de elementos essenciais, em termos que abrangem uma diversidade relevante de situações.
  Como vimos, a questão da invalidade dos actos administrativos e dos respectivos efeitos constitui um problema, a resolver através da ponderação entre os valores da legalidade, de um lado, e os da segurança jurídica e da estabilidade das decisões, por outro lado – sendo especialmente relevante a protecção da boa fé e da confiança dos cidadãos quando estejam em causa decisões que lhes sejam favoráveis.».
  A questão tem normalmente sido abordada a propósito dos agentes putativos e de questões de urbanismo, contudo não se limita a essas situações, podendo a aplicabilidade da norma abranger outras situações de facto que hajam sido geradas por actos que se venha apurar ao fim de determinado espaço de tempo que são nulos.
  Sendo certo que, no caso dos actos putativos não se trata do aproveitamento do acto nulo (o que por força da nulidade é impossível) mas do aproveitamento dos efeitos (do acto) – veja-se Inês Ramalho em “O Princípio do Aproveitamento do Acto Administrativo”, Tese de Mestrado, Faculdade Direito de Lisboa em CJP, CIDP.
  Relativamente ao anterior Código do Procedimento Administrativo de Macau aprovado pelo Decreto-Lei nº 35/94/M de 18 de Julho, Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho em anotação ao nº 3 do artº 115º1 escreviam que:
  «O disposto no n.º 3 do artigo 115.º veio consagrar um regime de nulidade que a doutrina e a jurisprudência já admitia, sobretudo a propósito dos agentes putativos. Como acontece em muitas situações jurídicas, reconhece-se que o tempo é um facto natural produtor de efeitos jurídicos. Assim, um acto nulo, que desde a sua emanação não produz quaisquer efeitos jurídicos (mas que os produz de facto) pode, pelo simples decurso do tempo, vir a produzi-los.
  A intenção do legislador é temperar o rigor que constitui a destruição total de situações de facto constituídas à sombra do acto nulo. À transformação de situações de facto em situações de direito pelo decurso do tempo chama-se, sobretudo no direito privado, usucapião. Como se vê, este instituto também desempenha um papel, embora menor, no Direito Administrativo.
  No entanto, o decurso do prazo não é suficiente para que o acto nulo venha a produzir efeitos jurídicos. Como a lei expressamente refere, tal só deve acontecer «de harmonia com os princípios gerais de direito». Faz-se apelo a princípios como os da protecção da confiança, da boa fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça, do não enriquecimento sem causa, da realização do interesse público. Estes princípios, que são vinculativos para a Administração, podem ser chamados a resolver situações de injustiça derivadas da nulidade dum acto administrativo.
  O caso mais tratado pela doutrina e jurisprudência é o dos agentes putativos, que são pessoas que actuando, em circunstância normais, como titulares de um órgão administrativo, não o são de direito, quer porque o seu provimento resulta de um acto inválido, quer porque já cessou o efeito do acto do seu provimento legal. (…).
  Ora, por razões de protecção da boa fé e da estabilidade da função pública, a doutrina e a jurisprudência admitem que os funcionários providos em virtude dum acto nulo possam, pelo decurso do tempo, adquirir o direito ao lugar e que os actos administrativos por si praticados não serão inválidos por esse facto.
  As relações entre o agente putativo (aquele que se faz acreditar) e a pessoa colectiva em que está inserido levam a que ao fim de determinado tempo aquele se torne agente de direito. A lei nada diz quanto ao período de tempo necessário para que ocorra aquela transformação. O professor Marcello Caetano, por analogia com a situação prevista no artigo 1298.º, alínea b) do Código Civil, fazia referência ao prazo de dez anos. Mas os tribunais administrativos portugueses eram mais benevolentes e, em certos casos, admitiam mesmo prazos inferiores, pouco excedentes a três anos. Mas além do decurso dum prazo suficiente, exige-se ainda que o exercício das funções públicas seja pacífico, contínuo e público, e que o facto que originou a situação não tenha sido gerado de forma dolosa ou erro grosseiro do interessado.».
  Em sentido idêntico já sustentava o Prof. Marcello Caetano em Manual de Direito Administrativo, Vol. I, pág. 517.
  Mais recente, Luiz S. Cabral de Moncada2 em anotação ao nº 3 do artº 162º do Código do Procedimento Administrativo Português, diz:
  «2. Os efeitos do acto nulo
  2.1. Segundo a doutrina tradicional, o acto nulo não gera efeitos. Parte-se do princípio segundo o qual o acto nulo não gera efeitos. O princípio é lógico mas não corresponde à realidade. Trata-se um belo exemplo da metodologia hermenêutica da jurisprudência dos conceitos e do «método da inversão» dela própria que consiste em deduzir as consequências dogmáticas apenas das abstracções conceituais desprezando os dados empíricos. Apenas se admite que do acto nulo resultem efeitos «putativos», que a Administração poderá resguardar, se for caso disso, em homenagem a determinados valores, como vimos, valendo o acto como se fosse válido. Ora, se assim é, também os efeitos do acto nulo, mesmo que só envergonhadamente «putativos», poderão ter de ser retroactivamente destruídos para garantir a reconstituição de uma situação hipotética actual favorável a um beneficiário, precisamente porque o prejudicaram, mesmo que só putativamente para não chocar os mais ortodoxos, tal como sucede se o acto for apenas anulável. A final, tendo em conta razões de justiça material, os regimes do acto nulo e do acto anulável, este à frente versado, aproximam-se em vez de se afastarem.
  E há outro argumento, à frente exposto; é que os actos nulos são agora susceptíveis de reforma ou conversão, de acordo com o n.º 2 do art. 164.º. E porquê? Por não terem efeitos? Não certamente.
  Nesta conformidade se entende agora a ampla possibilidade de atribuir efeitos a situações de facto resultantes de actos nulos não apenas pelo decurso de tempo mas em atenção aos princípios gerais de direito administrativo.
  2.2. Desconhecer os efeitos do acto nulo é não querer ver que o acto administrativo até à declaração da respectiva nulidade ou à sua desaplicação com esse fundamento beneficia de uma presunção de legalidade, relativa evidentemente, mas que gera efeitos como se válido fosse, ficando ainda apoiados nos poderes de hierarquia de que o superior faz uso para impor actos nulos quiçá por ele próprio praticados. O direito de resistência a actos nulos, salvo nos casos em que co-envolvem a prática de um crime, é fraco paliativo para tais efeitos tema, contudo, que aqui não pode ser desenvolvido.».
  Como tem vindo a ser desenvolvido pela Doutrina mais recente subjacente ao aproveitamento dos efeitos putativos do acto nulo subjazem os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e proporcionalidade com base nos quais se tem vindo a sustentar que se aceite a produção de efeitos decorrido que seja determinado espaço de tempo.
  Ora, no caso em apreço o que aconteceu é que a Recorrente, quando nasceu em Outubro de 1996 foi registada como sendo filha de um residente de Macau tendo-lhe sido atribuído o estatuto de residente permanente de Macau.
  Passados 21 anos, em Novembro de 2017 veio a ser proferida decisão que manda eliminar aquela menção de paternidade e inscrever uma outra passando a figurar como pai um sujeito que ao tempo do nascimento da Recorrente não era residente de Macau.
  Segundo consta da factualidade apurada o processo crime por falsidade das declarações quanto à identidade do pai foi arquivado pelo Ministério Público.
  Em 2003 os pais biológicos da agora Recorrente obtiveram o estatuto de residentes em Macau.
  Ou seja, em termos práticos o que ocorre é que sendo a Recorrente um recém-nascido, por força da natureza não tem qualquer intervenção nos actos que (eventualmente) indevidamente hajam sido praticados quanto ao registo da filiação e que segundo a Administração levam à nulidade dos actos recorridos.
  Isto é, dúvidas não há quanto à boa-fé da Recorrente, até porque, se não a tivesse, nunca iria encetar uma acção de impugnação de paternidade que levou a afastar aquela paternidade com base na qual lhe foi atribuído o estatuto de residente de Macau, sendo a Recorrente quem diligencia pela correcção do registo de nascimento e renovação/alteração dos BIRPM e Passaporte.
  No entanto o resultado prático é que aqueles que eventualmente foram os autores dos factos – os progenitores – não são objecto de qualquer responsabilidade criminal por força do tempo decorrido e entretanto até passaram a ter o estatuto (de residente) que justificaria que o mesmo houvesse também sido atribuído à Recorrente se não se desse o caso de já o ter.
  E a Recorrente que não tendo qualquer participação activa na prática dos actos que levam à nulidade, depois de cerca de 24 anos a viver e a estudar em Macau perde o estatuto de residente, sem que subjectivamente lhe possa ser assacada alguma responsabilidade.
  Não podemos deixar de ponderar que o legislador ao permitir a prescrição do procedimento criminal relativamente aos factos que estão na génese da situação entendeu que dado o espaço de tempo decorrido os mesmos já não tinham qualquer relevância que justificasse a punição.
  Ora, se o facto enganoso, que por sua vez seria aquele que estaria na génese da nulidade do acto administrativo já não tem para o legislador qualquer relevância que justifique a punição, entendemos que esse argumento é também bastante, para concluir que por força do decurso do mesmo espaço de tempo, deve ser reconhecido efeitos jurídicos às situações de facto decorrentes dos actos nulos que eventualmente hajam sido praticados na sequência daqueles, isto em obediência ao princípio da unidade do sistema jurídico.
  Embora o objecto desta acção seja um acto administrativo isso não nos pode impedir de ver para além disso e ponderar as consequências que dele decorrem que na prática são a perda do estatuto de residente da RAEM a alguém que aqui nasceu, viveu, estudou e onde tem as suas raízes e está culturalmente ligada sem que tenha contribuído em nada, seja para beneficiar desse estatuto, seja para as razões que agora se invocam para o perder.
  Chamando à colação os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade parece-nos que a situação pode e deve ser enquadrada na previsão do nº 3 do artº 123º do CPA.
  Sobre a relevância dos princípios da boa-fé e da confiança, com consagração legal no artº 8º do CPA e a sua relevância para o reconhecimento dos efeitos putativos do acto é abundante a Doutrina e Jurisprudência a respeito, nada havendo a acrescentar, remetendo-se, pela sua clareza, para o trabalho de Ana Gouveia Martins em “Responsabilidade da Administração com Fundamento na Declaração de Nulidade ou Revogação de Actos Inválidos”, in Colecção de Estudos, Nº1, Instituto do Conhecimento AB.
  Reconhecendo-se, com base em tudo antes exposto, a boa-fé da Recorrente, a questão que agora se coloca é como é que se torna efectiva a produção dos efeitos putativos do acto nulo.
  Para o Professor Doutor Marcello Caetano a tutela dos efeitos putativos do acto era feita com recurso às regras da usucapião.
  Vieira de Andrade vem dar mais relevância aos interesses em causa deixando a fixação do período tempo necessário para a produção de efeitos para o intérprete.
  «O rigor do regime legal da nulidade pode em muitas circunstâncias revelar-se excessivo, designadamente quanto à impossibilidade aparentemente absoluta de ratificação, de reforma e até de conversão (artigo 137º, n.º 1 do CPA) e quanto ao regime de imprescritibilidade do poder de declaração da nulidade por qualquer autoridade administrativa ou judicial (artigo 134.º, n.º 2 do CPA). A moderação desse rigor resulta da possibilidade de reconhecimento jurídico de efeitos de facto produzidos pelo acto nulo, com base no decurso do tempo e com fundamento em princípios jurídicos fundamentais (designadamente, os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima ou o princípio da proporcionalidade) – prevista no n.º 3 do artigo 134.º do CPA.» - Cit. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, pág. 201 -.
  Entre a exigência de instauração de uma acção para o efeito, a possibilidade de serem reconhecidos os efeitos do acto em sede de execução, a necessidade de juridificação do reconhecimento dos efeitos ou a possibilidade de ser a própria a administração a fazê-lo, entre as mais sugeridas soluções, tem a Doutrina e a Jurisprudência procurado soluções para um direito que consagrado na lei cabe encontrar como o reconhecer numa jurisdição que começando a ser de anulação tem vindo a evoluir no sentido da plena jurisdição.
  Segundo Vieira de Andrade na já citada obra “A nulidade Administrativa essa Desconhecida” a pág. 780/781, «Nas situações em que se ponha o problema do reconhecimento jurídico da situação de facto decorrente do acto nulo o juiz não pode alegar que a sua tarefa é meramente hermenêutica, que só visa aplicar uma solução previamente definida na lei – ele não se limita a conhecer, decide a solução do caso concreto e é juridicamente responsável por ela, devendo, para além de evitar injustiças extremas e situações de impraticabilidade (…), respeitar a proibição do excesso, pois só atendendo aos efeitos reais da decisão se alcança a paz social que a justiça almeja.».
  Como vem sendo esclarecido o que está em causa não é a produção de efeitos de um acto nulo, o qual por força da nulidade nunca poderia produzir efeitos.
  O que está em causa é reconhecerem-se efeitos jurídicos às situações de facto geradas pelo acto nulo.
  Ora este efeito tanto pode ser conseguido através da administração e aqui no exercício de um poder discricionário ou pelo tribunal.
  No caso em apreço está em causa o estatuto de residente da RAEM.
  Não colhe qualquer sucesso a argumentação da Autoridade Recorrida na sua conclusão 50ª quando de alguma forma demanda ainda que veladamente o interesse público para a não emissão do BIRPM e do Passaporte, quando face ao sistema jurídico da RAEM a situação de facto subjacente já nem criminalmente é punível pelo decurso do tempo o que demonstra o desinteresse do legislador face a este género de situações (pelo decurso do tempo, como já se havia referido). Menos ainda, será sustentável a imposição de consequências de um acto por outros praticado a quem a ele é alheio (neste caso a Recorrente) em manifesta violação do princípio da culpa, égide de um estado de direito, em prol da defesa do interesse público e da prevenção criminal.
  Para além de que, está apenas em causa o reconhecimento de uma situação pretérita, decorrida há 24 anos, em que as circunstâncias e os meios eram completamente distintos dos que hoje existem, sendo que, actualmente este género de situações podem ser – e na prática são – evitadas com recurso a testes de ADN, bastando para o efeito se necessário legislar-se nesse sentido.
  Logo, o reconhecimento da situação subjacente aos autos em nada belisca o interesse público.
  No que concerne aos princípios fundamentais de direito da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança consagrados nos artº 5º e 8º do CPA demandam o reconhecimento da situação – o estatuto de residente – a quem ao longo de toda a vida, actualmente com 24 anos sempre usufruiu do estatuto de residente de Macau e adequou a sua vida a Macau como resulta dos sinais dos autos.
  Entendemos também, que na senda do que tem vindo a ser sustentado pela Doutrina mais hodierna, neste tipo de situação não importa tanto o tempo decorrido desde a prática do acto, mas sim a situação existente no momento em que se conclui pela nulidade, sendo certo que, o comando contido no nº 3 do artº 123º do CPA manda dar relevância ao tempo.
  Porém, se a pessoa a quem foi concedido o estatuto de residente da RAEM quando se vem a apurar que o acto é nulo por não ser descendente de residentes de Macau ainda é menor, por força da dependência dos progenitores, do exercício do poder paternal e a guarda que lhe está associada, antes de atingida a maioridade nada justifica que se reconheçam efeitos ao acto independentemente do tempo que haja decorrido.
  No entanto, se entretanto tiver atingido a maioridade, entendemos que devem ser reconhecidos efeitos ao acto, havendo aqui, por força da exigência feita no nº 3 do artº 123º do CPA de fixar um espaço de tempo que se entenda razoável para o efeito, o qual entendemos poder ser igual aos 7 anos exigidos pela lei para a atribuição do estatuto de residente permanente – Lei nº 8/1999, artº 1º, nº 1, 2) -, contados desde da prática do acto que se tem por nulo.
  Destarte, em face da factualidade apurada e tendo em consideração os princípios supra indicados que no caso em apreço se verificam, haveria de, nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA ter sido reconhecidos efeitos aos actos de atribuição de BIRPM e de Passaporte da RAEM à Recorrente, mantendo-os.
  Não tendo sido feito como concluir?
  Aqui chegados e sem prejuízo do reconhecimento da nulidade ser um acto vinculado o certo é que, o nº 3 do artº 123º do CPA atribui à administração um campo de discricionariedade que lhe permitiria ter actuado de outra forma.
  O reconhecer ou não efeitos ao acto nulo nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA implicando um poder discricionário pode ser sindicado pelo tribunal de acordo com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da confiança e imparcialidade.
  Ao não reconhecer à Recorrente o estatuto de residente não actuou a Administração de acordo com o princípio da proporcionalidade, da confiança e da boa-fé os quais já antes analisados se entendeu que justificavam que fosse reconhecido o respectivo estatuto.
  Nada tendo feito a Administração, num contencioso de anulação ficaria o tribunal impossibilitado de corrigir a situação reconhecendo efeitos ao acto.
  A solução encontramo-la no já citado trabalho “Responsabilidade da Administração …” de Ana Gouveia Martins, a pág. 67/68 com a figura da supressão do poder de declarar a nulidade:
  «Todavia, uma vez declarada a nulidade, nada obsta a que, com base no princípio da tutela da confiança, sejam atribuídos efeitos putativos às situações de facto decorrentes de actos nulos, se, por força do decurso de tempo, os princípios gerais impuserem a sua consolidação (art. 134.º, n.º 3 do CPA). Indispensável para tanto é que seja praticado um acto que, reconhecendo e declarando a nulidade, justifique a atribuição desses efeitos putativos e declare quais os efeitos que se devem considerar consolidados pelo decurso de tempo.
  Acresce que, apesar de a boa-fé não ter, em geral, por efeito neutralizar a ilegalidade cometida, convalidando o acto ilegal, tem-se admitido a título excepcional que quando a administração considerou, «durante um longo espaço de tempo, uma dada situação conforme ao direito (apesar de ilegal), mas pretender agora, porque a manutenção dela já não lhe aproveita, invocar a sua nulidade», que a boa-fé obste à declaração dessa nulidade. Com efeito, o princípio da boa-fé proíbe actuações que consubstanciem um «venire contra factum proprium (ou proibição de comportamento contraditório) – de acordo com a qual se veda (ou impõe) o exercício de uma competência ou de um direito, quando tal exercício (ou não exercício) entra em flagrante e injustificada contradição com o comportamento anterior do titular, por este ter suscitado na outra parte uma fundada e legítima expectativa de que já não seriam (ou o seriam irreversivelmente) exercidas – a supressio ou verwirkung (que da anterior se distingue pelo facto de a dimensão temporal ganhar uma relevância autónoma), etc.»
  Com efeito, em determinadas e circunscritas constelações de casos o princípio da boa-fé pode obstar à revogação ou à declaração da nulidade de actos administrativos ilegais por consubstanciar um exercício inadmissível de direitos. Nomeadamente é possível invocar a figura da supressio que determina a paralisação ou redução do conteúdo de certas posições jurídicas em função do seu não exercício durante um amplo lapso temporal, in casu, uma supressão de competências.».
  Ou seja, tudo se reconduziria a que por força do tempo decorrido os efeitos do acto (nulo) se haviam consolidado na esfera jurídica do particular não produzindo a nulidade todos os seus efeitos.
  Ao não se ter optado pela figura da supressão do poder de declarar a nulidade reconhecendo efeitos aos actos (nulos) de acordo com os princípios da boa-fé e da confiança, são os actos impugnados anuláveis impondo-se que se decida em conformidade.
  Não sendo argumentável em sentido contrário que o acto de declaração de nulidade é um acto vinculado e como tal não é susceptível de ser apreciado em função dos indicados princípios, pois o que está em causa não é a declaração de nulidade mas o reconhecimento dos efeitos fácticos do acto os quais demandavam uma abstenção de agir a que não se obedeceu em violação dos referidos princípios, e nesta parte já estamos no domínio da discricionariedade.
  A não se entender assim nunca o acto de reconhecimento de efeitos putativos do acto nulo poderia ser objecto de decisão e apreciação do tribunal uma vez que não pode ser objecto de acção para a prática do acto administrativo devido porque não é um acto vinculado mas discricionário. O que levaria a que só haveria possibilidade de apreciar os efeitos putativos do acto se a administração o reconhecesse e desse acto fosse interposto recurso para o tribunal, mas se nada reconhecer já não haveria acção judicial para o efeito.
  Logo não se aceitando que esta questão possa ser apreciada através do instituto da supressão do poder de declarar a nulidade, seria o mesmo que declarar que ao direito consagrado no nº 3 do artº 123º não corresponde acção judicial alguma o que viola o princípio do acesso à justiça consagrado no artº 14º do CPA.
  Em igual sentido veja-se e-Pública: Revista Electrónica de Direito Público, Vol. 1, nº 2, Lisboa Junho 2014 “Os efeitos putativos da nulidade dos actos urbanísticos: entre a tutela da confiança e o interesse público”: «Todavia, não excluímos que mesmo em sede de acção administrativa especial de impugnação do acto, o juiz possa atribuir efeitos jurídicos à situação de facto, desde que os requisitos que acima elencámos se encontrem cumpridos, em particular o decurso do tempo.».
  Concluindo, entendemos que no caso em apreço não se tendo a administração abstido de declarar a nulidade dos actos reconhecendo implicitamente à Recorrente o direito a beneficiar do estatuto de residente da RAEM e consequentemente, emitindo-lhe o BIRPM e o Passaporte de Macau, enfermam os actos impugnados do vício de violação de lei por violação do princípio da boa-fé e da confiança, sendo anuláveis nos termos do artº 124º do CPA.
  
IV. DECISÃO
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anulam-se os actos recorridos.
  Sem custas por delas estar isenta a entidade recorrida.

Discutido e apreciado em conferência, este projecto não foi acolhido pela maioria do Colectivo.

Assim, o 1º Adjunto do Colectivo passou a encarregar-se de elaborar o seguinte Acórdão de acordo com a posição de vencimento:

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

As questões ora suscitadas nos presentes autos são exactamente iguais às questões já tratadas no recente Acórdão do TSI de 10DEZ2020, tirado no processo nº 1191/2019, de que é Relator o 2º Adjunto deste Colectivo, em que as mesmas foram apreciadas e decididas nos termos seguintes:
  IV – FUNDAMENTOS
  Neste recurso o Recorrente veio a imputar à decisão ora posta em crise os seguintes vícios:
  1) - Nulidade do acto recorrido por ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental;
  2) - Violação de lei por erro na aplicação do direito;
  3) - Violação de lei por a administração ter considerado que o acto de declaração de nulidade é vinculado;
  4) - Violação dos princípios da boa fé da confiança da proporcionalidade e da justiça;
  5) - Violação do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
*
  1) Nulidade do acto recorrido por ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental:
  Comecemos pela primeira questão suscitada.
  O que está em causa é o direito à residência na RAEM.
  Esta matéria estava inicial regulada pelo DL nº 6/92/M, de 27 de Janeiro, depois, com a revogação do mesmo, passou a ser disciplinada pelo DL nº 19/99/M, de 10 de Maio, e, depois da criação da RAEM, a mesma matéria passou a ser objecto da regulação da Lei nº 8/2002, de 8 de Maio.
  Ora, quer no primeiro diploma legal citado, quer no segundo ou neste último referido, mantém-se a mesma disposição reguladora das condições de que depende o reconhecimento do direito à residência em Macau.
  No caso, como o Recorrente nasceu em 20/11/1994, altura em que estava em vigor o DL nº 6/92/M, de 27 de Janeiro, é este que rege a situação em causa. Dispõe o artigo 5º (Residência de menores) deste diploma legal:
  1. Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.
  2. Para efeitos de concessão de BIR a prova de residência dos menores a que se refere o número anterior faz-se pela apresentação de documento que, nos termos da legislação em vigor, comprove a residência no Território, à data do nascimento, de um dos pais.
  A mesma disposição veio a ser mantida pelo DL nº 19/99/M, de 10 de Maio (artigo 5º).
  A redacção passou a ser a seguinte com a Lei nº 8/2002, de 8 de Maio, sendo mantidas as mesmas exigência:
  São residentes da RAEM os menores, naturais de Macau, se ao tempo do seu nascimento, o pai ou mãe residia legalmente em Macau.
  
  É de ver que são dois requisitos para ter o direito a residir legalmente em Macau para os menores:
  - Natural de Macau;
  - Um dos progenitores reside legalmente em Macau aquando do nascimento da criança (que pretende reclamar o direito em causa).
  No caso, o Recorrente não preencheu este 2º requisito, ao tempo do seu nascimento, porque a paternidade na altura estabelecida com base no registo de nascimento era inverídica. Ou seja, na altura, a Administração Pública competente praticou um acto na suposição da existência de pressupostos de facto que a lei exigia, mas certo é que tal não existiu!
  Ou seja, falta o pressuposto abstracto, é uma situação em que carece, em absoluto, da base legal. Dito doutra maneira, o acto (emissão do BIRM) foi praticado com base na “fantasia”.
  Tendo em conta critério ínsito no artigo 122º do CPA, que é o de interesse público e o da gravidade da lesão, o acto da emissão do BIRM sofreu do vício de nulidade. Tal como a Entidade Recorrida defende, há falta de elemento essencial, para que o órgão competente pudesse praticar o acto em causa.
  Nesta óptica, como não se verificam os pressupostos legalmente exigidos, o Recorrente não pode afirmar que tem direito a residir em Macau e como tal falece o seu argumento de a decisão do cancelamento do seu BIRM padecer do vício de nulidade! Pois, simplesmente o direito reclamado nunca existiu nos termos legalmente fixados na sua esfera jurídica.
  O que é bastante para julgar improcedente o argumento do primeiro vício da decisão sob impugnação.
*
  2) - Violação de lei por erro na aplicação do direito:
  No entender do Recorrente, ainda que se admita que se verificam erro nos pressupostos de facto (traduzidos em emissão do BRIM), a sequência será a de anulabilidade, e não nulidade, e como tal o acto podia ser revogado, mas como trata-se de um acto constitutivo de direito, cuja revogação está sujeito ao prazo fixado pelo artigo 130º do CPA.
  Como não agiu desta maneira, o acto está viciado e como tal o Tribunal devia anulá-lo.
  Ora, na sequência da exposição anterior, importa salientar que, em matéria do regime da invalidade dos actos administrativos, não vigora o princípio da tipicidade entre o vício e a invalidade, basta ler o artigo 122º do CPA, fica a perceber-se que a nulidade está reservada para aquelas situações em que os actos padecem de vícios invalidantes graves, com lesão grave para o interesse público, incumbindo-se de uma tarefa interpretativa a ao aplicador de Direito.
  No caso sub judice, está em causa o direito à residência em Macau, a matéria em si pode integrar-se no catálogo dos direitos fundamentais dos residentes da RAEM, só que para tal é preciso que tal direito já tenha entrado na esfera jurídica do interessado, o que não se verificou no caso. Assim, não se pode afirmar-se que o erro nos pressupostos conduz necessariamente à anulabilidade do acto ora atacado.
  Pelo que, improcede também este argumento do recurso, invocado pelo Recorrente.
*
  De seguida, passemos a ver a 3ª e 4ª questão em conjunto.
  - Violação de lei por a administração ter considerado que o acto de declaração de nulidade é vinculado e
  - Violação dos princípios da boa fé da confiança da proporcionalidade e da justiça:
  
  Nos termos acima analisados, não resta dúvida que a situação de reconhecimento do direito a residir em Macau é uma situação vinculativa, desde que estejam preenchidos os pressupostos legalmente fixados, o agente administrativo tem de reconhecer tal direito, não lhe restando quase nenhum espaço da opção. Pelo que, torna-se inútil invocar os princípio gerais do Direito Administrativo, já que o controlo do acto administrativo praticado no exercício do poder vinculado é muito apertado.
  Nesta óptica, improcede também estes argumentos do Recorrente, julgando-se também improcedente o recurso nesta parte.
*
  Finalmente, passemos a ver o último vício invocado pelo Recorrente:
  Violação do artigo 123.º/3 do Código do Procedimento Administrativo (CPA):
  Este normativo (Regime da nulidade) tem o seguinte teor:
  1. O acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade.
  2. A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal.
  3. O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito.
  Este normativo tem por destinatário o órgão administrativo competente, que pode “salvar” alguns efeitos decorrentes dos actos administrativos nulos, só que tal norma não impõe uma decisão nesses sentido, mas sim, é um poder conferido à Administração. Nesta medida, o Tribunal não pode obrigar o órgão administrativo competente aplicar-se efectivamente este artigo ao caso em apreciação (nesse sentido, cfr. acs. do STA, de 6/7/89 (rec. nº26.865; e de 02/12/2003).
  A propósito deste normativo (idêntico constante do CPA de Portugal), anotou-se (Cfr. Código do Procedimento Administrativo Comentado, Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim, 2ª edição, Almedina, 1998, pág. 654 a 655):
  “(…)
  IV. A possibilidade de produção dos chamados efeitos putativos, diz-se (e já se referiu na nota II dos Preliminares desta Secção), seria uma característica própria do regime do acto nulo, face ao do acto inexistente.
  A proposição deve, contudo, ser tomada com muitas cautelas: nem todo o acto nulo tem efeitos putativos e não é inconcebível que os possa ter o acto juridicamente inexistente posto em prática, desde que o rodeiem as circunstâncias de boa-fé, plausibilidade e estabilização no tempo, próprias da categoria dos efeitos putativos.
  Exemplo de escola sobre efeitos putativos (neste enquadramento) é o aos funcionários ou agentes putativos, com dez anos de exercício pacífico, contínuo e público de funções, em que tenham sido investidos por acto nulo; ou, então, o caso previsto no Decreto-Lei n.º 413/91 (de 19 de Outubro) sobre o provimento, em lugares do quadro correspondente, de funcionários que tenham sido promovidos com preterição das disposições legais respectivas, que gere nulidade ou inexistência jurídica.
  Os efeitos putativos considerados no preceito legal são apenas os derivados do decurso do tempo, ou seja, os que resultam da efectivação prática dos efeitos do acto nulo por um período prolongado de tempo - o que mostra quão falaciosa é, do ponto de vista jurídico-prático, a ideia de que o acto nulo não produz efeitos, independentemente da declaração da sua nulidade.
  A verdade é que também há (pode haver) efeitos putativos ligados a outros factores de estabilidade das relações sociais, como os da protecção da confiança, da boa-fé, do suum cuique tribuere, da igualdade, do não locupletamento, e até da realização do interesse público - princípios que podem, todos, ser chamados a colmatar situações de injustiça derivadas da aplicação estrita do princípio da legalidade e da "absolutidade" (Rebelo de Sousa, rev. cit., pág. 48) do acto nulo.
  Não pode, nunca, é assacar-se efeitos putativos favoráveis ao particular em cuja conduta se funda a nulidade do acto, como nos casos de coacção ou crime, ou até, simplesmente, de dolo ou má-fé do interessado.”
  Pois, em rigor das coisas, a emissão pela primeira vez do BIRM para o Recorrente com base nas declarações falsas sobre a sua paternidade (o que constituiu um crime), sendo certo que ele não tinha culpa, mas o seu pretenso direito foi “construído” fantasiosamente!
  
  Nestes termos, não pode concluir pela violação pela Entidade Recorrida do normativo em causa. Improcede também esta parte do recurso.
  *
  Síntese conclusiva:
  I – Quer em face do DL nº 6/92/M (artigo 5º), de 27 de Janeiro, quer em do DL nº 19/99/M, de 10 de Maio (artigo 5º), ou mesmo nos termos da Lei 8/2002 (artigo 4º), de 8 de Maio, a aquisição pelo menor (nascido em Macau) do direito a residir em Macau/RAEM depende do preenchimento dos 2 requisitos:
  - Natural de Macau;
  - Um dos progenitores reside legalmente em Macau aquando do seu nascimento.
  II – Quando o Recorrente nasceu (20/11/2004), ficou a constar do assento de nascimento como seu pai um residente de Macau. Entretanto, veio a verificar-se, na sequência da propositura de uma acção judicial de impugnação de paternidade que o pai do Recorrente não é aquele constante do registo civil, mas um outro individuo que não tem nem nunca teve o estatuto de residente de Macau, é de concluir que o acto administrativo de emissão do BIRM foi praticado na falta de um elemento essencial que a lei exige: que um dos progenitores resida legalmente em Macau à data do nascimento, e por outro lado, a prática do acto ficou também a dever-se ao erro induzido pelo particular, para além de tal constituir um crime de falsas declarações, como tal o acto padece de vício invalidante da nulidade.
  III - Os efeitos putativos reconhecidos pelo artigo 123º/3 do CPA são apenas os derivados do decurso do tempo, ou seja, os que resultam da efectivação prática dos efeitos do acto nulo por um período prolongado de tempo, mas não se pode assacar os efeitos putativos favoráveis ao particular em cuja conduta se funda a nulidade do acto, como nos casos de coacção ou crime, ou até, simplesmente, de dolo ou má-fé do interessado.
*
  Tudo visto, resta decidir.
* * *
  V - DECISÃO
  Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Não se vê razão para não manter a posição já assumida por este TSI no processo nº 1191/2019, é de produzir aqui toda a fundamentação do Acórdão tirado nesse processo, para, mutatis mutandis, servir de fundamentos no presente Acórdão, julgando improcedente o presente recurso contencioso.

Resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 10 UC.

Registe e notifique.

RAEM, 21JAN2021

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Lai Kin Hong Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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Fong Man Chong
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Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Vencido pelos fundamentos constantes do Acórdão na parte em que fui relator.
1 A redacção daquele preceito corresponde hoje ao nº 3 do artº 123º do CPA.

2 Em Código de Procedimento Administrativo Anotado, 2ª edição, pág. 512.
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1013/2019-1