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Processo nº 206/2020 Data: 24.02.2021
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Trabalhador não residente.
Autorização de permanência.
Revogação.
“Perigo para a segurança ou ordem pública”, (por conduta criminalmente relevante).
Conceito indeterminado.
Absolvição da imputada prática de crimes.
Questão nova.



SUMÁRIO

1. A expressão “perigo para a segurança ou ordem pública” vertida na “alínea 3 do n.° 1 do art. 11°” da Lei n.° 6/2004, constitui um “conceito jurídico indeterminado”.

2. A consideração no sentido de que um trabalhador não residente constitui “uma ameaça para a segurança ou ordem pública” para efeitos de revogação da sua autorização de permanência na R.A.E.M. implica uma “decisão administrativa judicialmente sindicável”.

3. A posterior absolvição do recorrente pela prática dos crimes cuja acusação levou à decisão de revogação da sua autorização de residência constituiu “questão nova” que não se pode conhecer em sede de um “recurso ordinário” (e de mera anulação como o presente).

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 206/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 16.07.2020, (Proc. n.° 868/2019), negou-se provimento ao recurso contencioso que A, com os restantes sinais dos autos, interpôs do despacho do SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA que rejeitou o recurso hierárquico do acto administrativo que lhe revogou a antes concedida autorização de permanência na R.A.E.M. como trabalhador não residente; (cfr., fls. 103 a 119-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Mantendo-se inconformado, do assim decidido traz o recorrente o presente recurso jurisdicional, motivando para, a final, e em síntese, afirmar que se incorreu em “errada aplicação de direito”; (cfr., fls. 127 a 149-v a 4 a 96 do Apenso).

*

Adequadamente processados os autos e nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal de Segunda Instância foram considerados como provados os factos seguintes:

“a) Em 27.06.2011 foi concedida ao Recorrente a autorização de trabalhador não residente nº XXXXXXXX, o qual tendo sido sucessivamente renovado era válido até 05.04.2020 – fls. 71 do PA –;
b) Em 16.05.2018 foi elaborada a Participação nº 130/2018-Pº.225.47 a qual consta de fls. 38 a 43 do processo administrativo apenso e aqui se dá integralmente por reproduzida de onde em síntese consta que o Recorrente durante o ano de 2018 contratou três pessoas para prestarem trabalho sem que possuíssem algum documento que as autorizasse a trabalhar em Macau;
c) Em 18.01.2019 foi o Recorrente acusado de ter incorrido, em autoria material e na forma consumada, na prática de 3 crimes de emprego ilegal, p. e p. pelo artº 16º nº 1, 1ª parte, da Lei nº 6/2004;
d) Em 03.04.2019 foi proferido despacho a revogar a autorização de permanência na qualidade de trabalhador não residente do aqui Recorrente com os fundamentos constantes de fls. 89 do processo administrativo apenso e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
e) Interposto recurso hierárquico necessário daquela decisão veio a ser negado provimento ao mesmo com os fundamentos constantes do despacho de fls. 116 a 120 do processo administrativo apenso cujo teor aqui se dá por reproduzido;
f) O Recorrente foi notificado daquela decisão em 10.07.2019 conforme consta de fls. 126 do processo administrativo apenso”; (cfr., fls. 113-v a 114).

Do direito

3. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, o presente recurso (jurisdicional) tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que negou provimento ao anterior recurso contencioso pelo recorrente interposto do despacho do Secretário para a Segurança que confirmou a revogação da autorização da sua permanência na R.A.E.M. como trabalhador não residente.

A fim de permitir uma boa percepção do que em causa (agora) está, comecemos por ver os termos da decisão ora recorrida.

Atenta a atrás transcrita “matéria de facto” considerada como adquirida, assim ponderou o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância para chegar à decisão de improcedência do anterior recurso contencioso:

“Nas suas alegações de recurso invoca o recorrente que o despacho recorrido enferma de erro nos pressupostos de facto uma vez que, baseando-se a acusação contra si deduzida em indícios de ter cometido os factos criminalmente puníveis que lhe são imputados e presumindo-se o arguido inocente até à condenação com trânsito em julgado, não está verificado que constitua perigo para a segurança ou ordem pública, nomeadamente pela prática de crimes ou sua preparação nos termos da al. 3, do nº 1 do artº 11º da Lei 6/2004.
Mais invoca que a permanência em Macau do recorrente não constitui perigo para a segurança e ordem pública e a violação do princípio de presunção de inocência, violação do princípio da proporcionalidade e violação do direito fundamental da liberdade de escolha de emprego.
Vejamos então.
O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
«O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
(…)
A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
a) A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
b) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
d) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objecto do ato administrativo;
e) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objecto do ato administrativo:
f) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
g) Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insusceptível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspecto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.
Toda a argumentação do Recorrente se reconduz ao vício de violação de lei, seja por erro nos pressupostos de facto, seja porque entende que foram violadas normas legais que indica.
Quanto ao erro nos pressupostos.
A autorização de permanência na RAEM do Recorrente foi revogada com base na alínea 3) do nº 1 do artº 11º da Lei nº 6/2004, porquanto ao Recorrente é imputada a prática de 3 crimes de emprego ilegal, previstos e punidos na primeira parte do nº 1 do artº 16º dessa mesma lei.
Segundo a alínea 3) do nº 1 do artº 11º da Lei nº 6/2004 «1. A autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade criminal e das demais sanções previstas na lei, por despacho do Chefe do Executivo, quando a pessoa não residente: (…) 3) Constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM.».
Entende o Recorrente que na decisão sob recurso não está demonstrada a existência de perigo para a segurança e ordem pública, porquanto ainda não foi condenado pela prática dos crimes em causa e a acusação é deduzida apenas com base em indícios.
Ora, tal como o Ilustre Magistrado do Ministério Público no seu Douto Parecer sustenta «nem só os factos accionáveis criminalmente em juízo são relevantes para a formulação do juízo de prognose acerca do perigo para a segurança ou ordem públicas, pois a norma, além de utilizar o advérbio nomeadamente, fala também em preparação de crimes, e é sabido que os actos preparatórios não são puníveis, em regra (artigo 20.º do Código Penal). Além disso, há ilícitos penais que apenas poderão ser submetidos a juízo se houver acusação particular (crimes particulares) ou for atempadamente exercido o direito de queixa (crimes semi-públicos).».
Por outro lado, tal como também resulta de todo o processo em momento algum o Recorrente põe em causa a prática dos factos que lhe são imputados, o que nada obstava que fizesse, demonstrando a sua inocência.
Destarte, a exigência de uma decisão penal condenatória não é requisito fundamental para que se possa concluir no sentido de estar verificado o “perigo para a segurança e ordem públicas”, desde que, o juízo da administração assente em factos, que não tendo sido contrariados, permitam concluir que a conduta do sujeito em causa constitui um perigo para a segurança ou ordem públicas, por exemplo se esses factos forem enquadráveis em situações que sejam susceptíveis de vir a preencher algum tipo legal de crime, como é o caso dos autos.
Assim sendo, sem necessidade de outras considerações, tendo sido apurado que o agora Recorrente contratou três indivíduos não residentes de Macau sem que aqueles fossem titulares de documento exigido por lei para serem admitidos como trabalhadores, o que, não sendo legalmente admissível constitui matéria criminal, constando tal facto do acto recorrido e tendo sido com base no mesmo que se concluiu que o comportamento do ora Recorrente era “gerador de potencial perigo para a segurança ou ordem públicas da RAEM nas suas vertentes sociais e económicas”, impõe-se concluir que o acto administrativo objecto deste recurso não enferma de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto.
Mais entende o Recorrente que o acto administrativo em causa ofende o princípio de presunção de inocência.
Mais uma vez remete-se para o que o Ilustre Magistrado do Ministério Público no seu Douto Parecer refere a respeito do princípio da presunção de inocência.
Este princípio apenas implica que até que seja condenado não podem recair sobre o “suspeito” quaisquer efeitos decorrentes da prática dos factos criminalmente puníveis que lhe são imputados.
No entanto, não invalida que noutra sede, que não a criminal, se possa fazer a prova dos mesmos factos para os efeitos que daí sejam decorrentes.
Mais uma vez, volta à colação que não se exige que aquele a quem é revogada a autorização haja sido “condenado” por crime algum, sendo bastante que se faça a prova de lhe serem imputados factos que eventualmente possam levar a uma condenação, ainda que por outras razões aquela possa até nunca acontecer.
No que concerne ao Recorrente, em sede de juízo criminal continua a beneficiar da alegada presunção, porém, aqui, onde os factos que lhe são imputados nem sequer são contraditados, face aos elementos existentes nos autos, convenceu-se a administração e este tribunal pela prática dos mesmos.
Pelo que, não enferma o acto impugnado do vício de violação de lei por violação daquele princípio.
Mais entende o Recorrente que o acto administrativo em causa ofende o princípio da proporcionalidade e o direito fundamental da liberdade de escolha de emprego.
Dispõe o artº 5º do Código do Procedimento Administrativo que:
Artigo 5.º
(Princípio da igualdade e da proporcionalidade)
1. Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever nenhum administrado em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.
2. As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.
O poder de revogar a autorização de residência é um poder discricionário a cargo da Administração.
Actualmente é pacífico o entendimento de que mesmo no exercício de poderes discricionários pode haver vício de violação de lei quando se ofenderem «os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais: o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa-fé, etc.» – Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit a pág. 352.
Para Vitalino Canas o princípio da proporcionalidade é um «princípio geral de direito, constitucionalmente consagrado, conformador dos actos do poder público e, em certa medida, de entidades privadas, de acordo com o qual a limitação instrumental de bens, interesses ou valores subjectivamente radicáveis se deve revelar idónea e necessária para atingir os fins legítimos e concretos que cada um daqueles actos visam, bem como axiologicamente tolerável quando confrontada com esses fins”1».
Tem vindo a ser entendimento deste Tribunal e do TUI que «a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.» - Acórdão do TUI de 31.07.2012, Procº nº 38/2012, entre outros.
A este respeito alega-se que da revogação da autorização de residência decorrem prejuízos para o cumprimento por banda do Recorrente das suas obrigações pessoais e familiares e a impossibilidade de continuar a exercer a sua actividade profissional em Macau.
O princípio da proporcionalidade haverá de ser aferido em função do objectivo preconizado pela norma em causa, isto é, dos bens e interesses que se pretendem proteger ou alcançar em função da norma.
Ora, os efeitos que resultam para os rendimentos do Recorrente por lhe ser revogada a autorização de residência não cabem no campo de protecção da norma em causa nem de outra que se sobreponha aos interesses que se pretendem garantir ao fazer depender a autorização de residência do cumprimento das regras de segurança e de ordem pública que enfermam o sistema jurídico da RAEM.
O mesmo se diga dos interesses da sociedade de que segundo diz é o Recorrente o único ou principal administrador, cabendo à sociedade em si – que é uma entidade/pessoa distinta do Recorrente – decidir como irá proceder no futuro face à impossibilidade do Recorrente de trabalhar em Macau, recorrendo a uma outra pessoa para o efeito ou deixando de exercer a sua actividade, não se sobrepondo, contudo, os interesses comerciais de uma sociedade à protecção de normas de segurança e de ordem pública que são a razão subjacente à norma que fundamenta o acto administrativo em causa.
O mesmo se passando com o direito à liberdade de escolha de emprego, o qual sendo um direito fundamental pode ser exercido na RAEM por quem for titular de documento exigido por lei para poder ser admitido como trabalhador e na medida do que estiver autorizado a exercer em Macau, situação na qual o Recorrente já não se enquadra uma vez que deixa de ter autorização de residência.
Destarte, sendo o princípio da proporcionalidade também entendido como a proibição do excesso, cabendo a decisão de revogação de autorização de residência à Administração no âmbito de poderes discricionários, estando em causa a segurança e ordem pública, tal como se refere na decisão recorrida, na sua vertente social e económica, não resulta que a decisão em causa tenha violado de modo intolerável os interesses do interessado.
Assim se concluindo que o acto recorrido não enferma dos vícios de violação de lei que o recorrente lhe imputa, deve em consequência ser negado provimento ao recurso.
Em sentido idêntico ao destes autos tem este Tribunal vindo a entender, nomeadamente, nos acórdãos proferidos em 20.02.2019, Procº nº 389/2019, em 21.11.2019, Procº nº 11/2019 e em 14.05.2020, Procº nº 642/2017.
(…)”; (cfr., fls. 114 a 119-v).

E, insurgindo-se contra o assim decidido, (e com o presente recurso), diz o recorrente que se incorreu em “errada aplicação de direito”, alegando, em longa motivação e conclusões, (só estas últimas, em número de 82) – e com excepção de um “aspecto” que mais adiante nos ocuparemos – os mesmos argumentos antes apresentados em sede do seu recurso contencioso, tentando rebater o “juízo” pela entidade recorrida efectuado e que pelo Acórdão recorrido foi confirmado, no sentido de que em face da “situação fáctica apurada”, verificado estava o pressuposto do “perigo para a segurança ou ordem públicas”, e que, como tal, impunha-se a decisão de revogação da autorização de permanência nesta R.A.E.M..

Atento o que se fez constar na decisão recorrida, e ponderando no que (agora) alega o ora recorrente, vejamos.

Nos termos do art. 11° da Lei n.° 6/2004, (que tem, precisamente, como epígrafe “revogação da autorização de permanência”):

“1. A autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade criminal e das demais sanções previstas na lei, por despacho do Chefe do Executivo, quando a pessoa não residente:
1) Trabalhar na RAEM sem estar autorizada para tal;
2) Manifestamente se desvie dos fins que justificam a autorização de permanência, pela prática reiterada de actos que violem leis ou regulamentos, nomeadamente prejudiciais para a saúde ou o bem-estar da população;
3) Constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM.
2. A pessoa a quem tenha sido revogada a autorização de permanência tem de abandonar a RAEM no mais curto prazo possível, não superior a 2 dias, excepto se:
1) Permanecer legalmente na RAEM por mais de 6 meses, caso em que dispõe de um prazo para abandoná-la não inferior a 8 dias, sem prejuízo do disposto na alínea seguinte;
2) Constituir grave ameaça para a segurança ou ordem públicas, caso em que pode ser decretado o abandono imediato.
3. O despacho de revogação da autorização de permanência fixa a data até à qual a pessoa tem de abandonar a RAEM.
4. A competência prevista no n.º 1 é delegável”; (sub. nosso).

E, como no Acórdão de 21.10.2020, (Proc. n.° 84/2020), já tivemos oportunidade de considerar:

«Apresenta-se-nos inquestionável que a expressão “perigo para a segurança ou ordem pública” vertida na referida “alínea 3 do n.° 1 do art. 11°”, constitui um “conceito jurídico indeterminado”.
Sobre o seu “sentido” e “alcance”, teceram-se já considerações abundantes, valendo a pena aqui lembrar o que este Tribunal já teve oportunidade de sobre o mesmo explanar:
“Como refere ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA2 a expressão conceito indeterminado pretende referir aqueles conceitos que se caracterizam por um elevado grau de indeterminação. A estes opõem-se os conceitos determinados, sendo os relativos a medidas (metro, litro, hora) ou a valores monetários (pataca, dólar norte-americano) os conceitos mais determinados.
Quase todos os conceitos jurídicos contêm algum grau de indeterminação, de tal sorte que PHILLIP HECK3 sublinhou que os conceitos absolutamente determinados seriam muito raros no direito.
A utilização pelo legislador de conceitos indeterminados constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários, como para «permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, ou para facultar uma espécie de osmose entre as máximas ético-sociais e o Direito, ou para permitir levar em conta os usos do tráfico, ou, enfim, para permitir uma “individualização” da solução4».
ROGÉRIO SOARES5 acentua que o legislador utiliza prodigamente os conceitos indeterminados perante as complexidades da sociedade moderna.
Pois bem, a distinção fundamental entre discricionariedade e conceitos indeterminados está em que, enquanto no primeiro caso, o órgão tem uma liberdade actuação quanto a determinado aspecto, no segundo caso estamos perante uma actividade vinculada, de mera interpretação da lei, com base nos instrumentos da ciência jurídica.
Aqui, nos conceitos indeterminados, não há liberdade. Logo que se apure qual a interpretação correcta da norma – e em direito só há uma interpretação correcta em cada caso – o aplicador da lei tem de a seguir necessariamente.
Por isso, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA6referiu que «a discricionariedade começa onde acaba a interpretação».
Deste modo, quando se conclua que a tarefa a efectuar é apenas a de interpretar a lei, o tribunal pode fiscalizar a aplicação do direito feita pela Administração.
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.05.2000, Proc. n.° 9/2000, com vasta doutrina sobre a questão).
In casu, apresenta-se-nos ser exactamente o que sucede, pois que a consideração no sentido de que o ora recorrente constituía “uma ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau”, implica uma “decisão administrativa”, mas “judicialmente sindicável”».

No âmbito do mesmo aresto, teve-se também oportunidade de
considerar que «Como salienta Pedro J. Lopes Clemente: “a ordem pública representa o ponto de equilíbrio entre a desordem suportável e a ordem indispensável, pois que a liberdade não sobrevive na anarquia …”, (in “Da Polícia de Ordem Pública”, Lisboa, Governo Civil do Distrito de Lisboa, 1998), sendo de se ter em consideração dois princípios fundamentais intrinsecamente ligados à matéria da “ordem pública”: o da “legalidade” e o da “proporcionalidade” (ou, “proibição do excesso”), necessário sendo um permanente e são equilíbrio entre as “razões” e os “meios utilizados” e os “resultados” que se pretendem obter, não se podendo olvidar igualmente que o tema da “ordem pública” tem vindo a desempenhar um papel cada vez mais relevante, exigindo uma redobrada atenção (e responsabilidade) na sua abordagem por parte do Legislador, da Administração, dos Órgãos Judiciários e da própria Opinião Pública.
Da mesma forma, (e relacionada com a questão), mostra-se de reconhecer que, como o salienta G. Marques da Silva, a questão da “prevenção criminal” é de sobeja importância, podendo-se considerar que até suplanta a ideia de punir os que prevaricam: “o que importa à colectividade, (…), não é tanto punir os que transgridem, mas evitar, pelo adequado uso dos meios legais de dissuasão, que transgridam”; (in “A Polícia e o Direito Penal”, 1993)».

Nenhum motivo se nos afigurando existir para não se ter por adequado o que se deixou exposto, apresenta-se-nos absolutamente claro que o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância fez uma correcta apreciação da “matéria de facto” (aí) dada como “provada”, tendo efectuado, igualmente, a um acertado “enquadramento jurídico”.

Com efeito, encontrando-se – no momento – o ora recorrente “acusado da prática de 3 crimes de emprego ilegal”, nenhuma razão existia para se censurar a decisão administrativa proferida (e então recorrida) que considerou verificada a situação da já referida “alínea 3, do n.° 1 do art. 11° da Lei n.° 6/2004” para efeitos da revogação da sua autorização de permanência na R.A.E.M..

Totalmente escusadas se nos apresentando outras mais alongadas considerações sobre o que se consignou, até porque o Acórdão recorrido se encontra em (total) sintonia com o que por esta Instância tem sido entendido sobre a matéria e questão, (cfr., v.g., o citado Ac. de 21.10.2020, Proc. n.° 84/2020), cabe, porém, atentar num “pormenor”.

É o seguinte.

Com a sua motivação de recurso que para este Tribunal de Última Instância apresentou o ora recorrente, juntou o mesmo uma certidão do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, datado de 10.09.2020, (Proc. n.° 715/2019), onde se decidiu revogar a sua anterior condenação pelo Tribunal Judicial de Base como autor da prática de 3 crimes de “emprego ilegal”, p. e p. pelo art. 16°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004, decretando-se a sua consequente absolvição; (cfr., fls. 150 a 153-v).

E, sendo estes os (mesmos) “3 crimes de emprego ilegal” que levaram à decisão administrativa de revogação da sua autorização de residência na R.A.E.M., compreende-se – perfeitamente – o inconformismo pelo ora recorrente manifestado.

De facto, (absolutamente) natural se apresenta a “solução” para um normal cidadão, (quiçá, leigo em direito), no sentido de que se deixaram de existir as razões da “decisão de revogação da sua autorização de residência”, adequada, (necessária, ou mesmo imprescindível), era a sua alteração, (anulação), a fim de se voltar à “situação anterior”, (pois que deixou de existir a própria razão que levou à tomada da dita decisão).

Pois bem, cabe dizer que – (muito) infelizmente – em sede dos presentes autos de “recurso jurisdicional” assim não é.

Vale aqui a pena ter presente as doutas considerações que o Ministério Público tece sobre esta questão:

“(…)
Com base nesta decisão judicial proferida no dito processo penal, veio o Recorrente, no presente recurso jurisdicional perante o Tribunal de Última Instância, alegar que os pressupostos do acto administrativo que impugnou contenciosamente perante o Tribunal de Segunda Instância se tornaram inexistentes e que o próprio acto administrativo se tornou inexistente pelo que o presente recurso deveria, em seu entender, ser julgado procedente com tal fundamento.
Salvo o devido respeito, o Recorrente não tem razão.
Desde logo, porque a questão agora trazida ao recurso é nova por isso que não foi apreciada pelo Tribunal a quo e, como tal, não sendo de conhecimento oficioso, ela não pode ser conhecida pelo Tribunal ad quem.
Além disso, a questão-suscitada pelo Recorrente é uma questão de facto, uma vez que o que verdadeiramente vem alegado é que, ao contrário do que foi decidido no recurso contencioso, resulta da sentença penal que o Recorrente não cometeu os três crimes de emprego ilegal cuja acusação esteve na base, em seu entender, da prática do acto de revogação da sua autorização de permanência em Macau. Para o Recorrente, com a sentença penal referida, estaria demonstrada a insubsistência dos pressupostos de facto do acto.
Todavia, de acordo com o artigo 152.º do CPAC, «o recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada», pelo que o Tribunal de Última Instância não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova (neste sentido, veja-se o acórdão de 2.6.2004, Processo n.° 17/2003) e é disso que se trata na questão suscitada pelo Recorrente. O que esta pretende discutir é a convicção formada pelo Tribunal recorrido relativamente à ocorrência dos factos que serviram de pressuposto à prática do acto impugnado e isso, face ao disposto no citado normativo legal, extravasa dos poderes de cognição do Tribunal de recurso.
Finalmente, importa referir que o recurso contencioso é de mera legalidade e tem por estrita finalidade a anulação dos actos recorridos (artigo 20.° do CPAC). Por isso, e para utilizarmos uma fórmula consagrada, a legalidade dos actos administrativos afere-se à luz do quadro fáctico e normativo vigentes à data da respectiva prática (tempus regit actum). Ora, a absolvição do Recorrente no âmbito do processo penal acima referido é posterior à prática do acto administrativo impugnado e, portanto, não pode servir para integrar o parâmetro de aferição da respectiva legalidade.
(…)”; (cfr., fls. 168-v a 169-v).

E, correcta sendo a solução pelo Ministério Público apresentada, é caso para se repetir que, in casu, e (muito) infelizmente, não se pode reconhecer razão ao ora recorrente.

Com efeito, dúvidas não havendo que o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância objecto do presente recurso é datado de 16.07.2020, e que a aludida absolvição do recorrente quanto aos antes imputados 3 crimes de “emprego ilegal” foi (apenas) decretada em 10.09.2020, (tendo transitado em julgado em 24.09.2020; cfr., fls. 150), portanto, em data “posterior”, inegável é assim que a “questão” com a dita absolvição agora colocada constitui uma “questão nova”.

Nesta conformidade, evidente é que, não sendo o “recurso” – como é o presente recurso ordinário – o meio processual próprio para se conhecer de “questões novas”, impõe-se-nos a solução que se deixou adiantada.

Por sua vez, há também que atentar no estatuído no art. 152° do C.P.A.C. – onde se preceitua que: “O recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada” – de onde resulta também evidente que o “poder de cognição” desta Instância não (é ilimitado e não) permite que nos debrucemos sobre a decidida “absolvição” do ora recorrente para, em apreciação deste (novo) “facto”, do mesmo extrair, (nestes autos), as tidas como devidas consequências.

Por fim, não se pode olvidar que o presente recurso é – tão só – de “mera anulação” (ou de “mera legalidade”; cfr., art. 20° do C.P.A.C.), inviável sendo assim aos Tribunais a prolação de decisões que constituam (ou integrem) a prática de actos (administrativos) em “substituição da Administração”.

Nesta conformidade, há pois que se julgar improcedente o presente recurso.

*

Tem-se, porém, como adequada, uma última nota.

Com efeito – e como, igualmente, com total acerto se notou no já referido Parecer do Ministério Público, apresentando-se-nos de justiça aqui referir, – “estamos em crer que aquela absolvição superveniente do Recorrente no processo penal que antes referimos pode não ser indiferente numa eventual reponderação da questão de saber se o mesmo constitui ou não um perigo para a segurança ou ordem públicas, tendo em vista a manutenção ou a revogação do acto revogatório da autorização de permanência”.

Tudo visto, resto decidir.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pelo decaimento pagará o recorrente a taxa de justiça de 5 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 24 de Fevereiro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

1 Em O princípio da proporcionalidade Uma Nova Abordagem em Tempos de Pluralismo, de Laura Nunes Vicente, pág. 23, Publicação de Instituto Jurídico, Faculdade De Direito da Universidade de Coimbra.
2 ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, «Conceitos Indeterminados» no Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, 1994, p. 23.
3 Citado por F. AZEVEDO MOREIRA, Conceitos Indeterminados: Sua Sindicabilidade Contenciosa Em Direito Administrativo, Revista de Direito Público, Ano I, n.º 1, Novembro de 1985, p. 34.
4 J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 114.
5 ROGÉRIO SOARES, Administração Pública e Controlo Judicial, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Coimbra, ano 127.º, p. 230.
6 ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, ob. cit., p. 217.
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