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Processo n.º 1155/2020 Data do acórdão: 2021-3-11
Assuntos:
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.o 400.o, n.o 2, alíne a), do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Como após lida a fundamentação fáctica do acórdão recorrido, em confronto com a factualidade descrita na acusação pública, não se vislumbra que haja existido qualquer lacuna da investigação, levada a cabo pelo tribunal recorrido, sobre o objecto probando do processo, não pode ter ocorrido nessa decisão recorrida o vício, referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
2. Há erro notório na apreciação da prova, como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1155/2020
(Autos de recurso penal)
  Recorrente (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 172 a 181 do Processo Comum Colectivo n.º CR3-20-0059-PCC do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que o condenou como co-autor material, na forma consumada, de um crime de usura para jogo, p. e p. pelos art.os 13.o e 15.o da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho, em conjugação com o art.o 219.o, n.o 1, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão (suspensa na execução por dois anos) e na sanção de interdição de entrada em todos os casinos de Macau pelo período de dois anos e seis meses, veio o arguido Arecorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão, na sua motivação apresentada a fls. 188 a 207 dos presentes autos correspondentes, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, para pedir a sua absolvição, bem como a invalidação da decisão de declaração de perdimento do telemóvel apreendido nos autos.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 212 a 216 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 225 a 227, pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A acusação então deduzida pelo Ministério Público contra o arguido ora recorrente consta de fls. 126 a 128 dos autos, cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido.
2. Sobre a matéria dessa acusação, o arguido, na contestação apresentada a fl. 163, limitou-se materialmente a oferecer o merecimento dos autos a seu favor, para além de arrolar as testemunhas da acusação como sendo também as testemunhas dele.
3. O acórdão ora recorrido consta de fls. 172 a 181v dos autos, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
Desde já, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, esgrimido pelo arguido recorrente à decisão recorrida: a razão não está no lado dele, porquanto após lida a fundamentação fáctica do acórdão recorrido, em confronto com a factualidade descrita na acusação pública, não se vislumbra que haja existido qualquer lacuna da investigação, levada a cabo pelo Tribunal recorrido, sobre o objecto probando do processo (no caso, constituído apenas pela factualidade então acusada a ele pelo Ministério Público), isto porque o Tribunal recorrido já especificou e descreveu quais os factos dados por provados e quais os não provados – e sobre o sentido e alcance próprios do vício da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014.
E agora da assacada contradição insanável da fundamentação como vício referido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP: mais uma vez, não assiste razão ao recorrente, uma vez que da leitura da fundamentação fáctica e probatória do aresto recorrido, também não se detecta qualquer contradição irredutível.
O recorrente não deixou de apontar à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP:
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, depois de vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se mostra patente que o Tribunal recorrido tenha violado quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência da vida humana, ou ainda quaisquer leges artis vigentes no julgamento da matéria de facto, tendo esse Tribunal, ao invés, explicado, de modo lógico e razoável, o processo de formação da sua livre convicção sobre os factos (cfr. sobretudo as considerações tecidas pelo mesmo Tribunal no último parágrafo da página 13 e nos primeiro e terceiros parágrafos da página seguinte, ambas do texto do aresto recorrido, a fl. 178 a 178v), pelo que não pode ter havido vício de erro notório na apreciação da prova conducente à condenação penal do recorrente.
E ante a matéria de facto já dada por provada em primeira instância (sem nenhum dos três vícios do n.o 2 do art.o 400.o do CPP), é legal a condenação do arguido pelo crime de usura para jogo por que aí vinha condenado.
Por fim, em face da matéria de facto provada em primeira instância, é legal e justa a decisão tomada pelo mesmo Tribunal (em sede materialmente do art.o 101.o do Código Penal) na parte final do dispositvo do acórdão recorrido, de declaração de perdimento do telemóvel então apreendido nos autos, considerado por esse Tribunal como meio usado nas telecomunições na prática do crime, ainda que tenha sido, manifestamente por lapso de escrita, indicado aí erroneamente o nome do CPP, já que deveria ser o Código Penal como real contentor daquele art.o 101.o sobre a declaração de perdimento, lapso esse que se manda rectificar agora, nos termos do art.o 361.o, n.os 1, alínea b), e 2, do CPP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso, bem como mandar rectificar um lapso manifesto de escrita, contido na penúltima linha da página 18 do texto do acórdão recorrido, a fl. 180v dos autos, nos termos seguintes: onde se lê “Código de Processo Penal” se deve ler “Código Penal”.
Custas do recurso pelo recorrente, com oito UC de taxa de justiça.
Macau, 11 de Março de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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