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Processo nº 4/2021 Data: 10.03.2021
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Divórcio por mútuo consentimento.
(Trânsito em julgado da sentença).
Declaração de culpa.
Cessação da coabitação.
“Retroacção dos efeitos do divórcio”.
Pedidos deduzidos em acção em separado.



SUMÁRIO

1. Após o trânsito em julgado da sentença que homologou e decretou o “divórcio por mútuo consentimento” – onde revelada não foi a “causa do divórcio” – viável já não é, ainda que em acção em separado, o pedido de declaração de culpa de um dos (ex-)cônjuges.

2. O art. 1644°, n.° 2 do C.C.M. permite que qualquer dos cônjuges requeira a “retroacção dos efeitos do divórcio”, de forma a os fazer coincidir com a “data da cessação da coabitação”.

3. Porém, (e como no referido preceito legal se explicita), tal pretensão pressupõe que a dita data (da cessação da coabitação) já esteja “provada”.

4. Se o casamento foi dissolvido por “divórcio por mútuo consentimento”, (onde nenhuma referência existe à aludida “cessação da coabitação”), aplicável não é o comando do art. 1644°, n.° 2 do C.C.M..

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 4/2021
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Nos Autos de Recurso Civil e Laboral n.° 518/2020 proferiu o Tribunal de Segunda Instância o seguinte Acórdão:

“ I. Relatório
A Autora, A (甲), melhor identificada nos autos, não se conformou com a decisão proferida em 17 de Fevereiro de 2020 pelo Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base, pelo que veio interpor recurso para este Tribunal, cujos fundamentos foram detalhadamente constantes de fls. 105 a 111 dos autos que aqui se dão por integralmente reproduzidos1.
Face ao recurso interposto, o Réu, B (乙), formulou a resposta, cujo teor consta de fls. 116 a 127 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
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II. Factos
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:
1. Em 2 de Dezembro de 1971, A (甲) e B (乙) contraíram matrimónio em Macau.
2. A (甲) e B (乙) geraram três filhos na constância do matrimónio:
- C (丙), nascida a 30 de Março de 1973;
- D (丁), nascido a 30 de Setembro de 1975;
- E (戊), nascido a 26 de Fevereiro de 1979.
3. Em 20 de Novembro de 2018, B (乙) intentou a acção de “divórcio litigioso” (processo n.º FM1-18-0179-CDL) contra A (甲), com base na separação de facto por mais de 2 anos; na reunião da tentativa de conciliação realizada em 16 de Janeiro de 2019, os cônjuges conciliaram a passagem do “divórcio litigioso” para o “divórcio por mútuo consentimento” (processo n.º FM1-19-0063-CPE), acordaram que os mesmos seriam isentos do pagamento da pensão alimentícia entre eles, bem como não tiveram residência da família comum para ser partilhada; assim, o Juízo homologou imediatamente o acordo em apreço, declarando a dissolução do casamento celebrado entre as partes, através da sentença que transitou em julgado em 11 de Fevereiro de 2019.
4. Em 11 de Março de 2019, B (乙) intentou a “acção de inventário” (FM1-19-0063-CPE-A) contra A (甲), solicitando a partilha do património comum existente na constância do casamento, contudo, tal acção foi suspensa em virtude da propositura duma outra acção que corre os seus termos no processo n.º FM1-19-0030-CAO.
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III. Alegações de motivos
O teor da sentença a quo:
“…
Embora as supracitadas excepções deduzidas pelo Réu na “contestação” sejam julgadas improcedentes por este Juízo, isto não significa que os requerimentos formulados pela Autora sejam viáveis. No entendimento deste Juízo, face a esta questão, é indispensável prestar atenção a seguintes assuntos:
1) O n.º 1 do art.º 1644º do Código Civil de Macau prevê: “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se torna definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.”; isto é, geralmente, a relação matrimonial entre os cônjuges dissolve-se e os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a sentença de divórcio transita em julgado, mas retrotraem-se à data da proposição do processo de divórcio quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges;
2) O n.º 2 do art.º 1644º do Código Civil de Macau prevê: “Se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença deve fixar, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro.”; em suma, se estiver provada no processo de divórcio a cessação de coabitação entre os cônjuges iniciada em tempo mais anterior, qualquer deles pode requerer que seja fixada na sentença a data da cessação de coabitação e que os efeitos do divórcio se retrotraiam à referida data, com vista à protecção dos interesses do cônjuge inocente ou do não predominantemente culpado;
3) In casu, na reunião da tentativa de conciliação da “acção de divórcio litigioso” realizada em 16 de Janeiro de 2019, a Autora e o Réu conciliaram a passagem do “divórcio litigioso” para o “divórcio por mútuo consentimento”, e não era necessária a realização da 2ª reunião por filhos destes serem maiores, assim, o Juízo homologou imediatamente o acordo de divórcio, declarando a dissolução da relação matrimonial existente entre as partes, através da sentença da “acção de divórcio por mútuo consentimento” que transitou em julgado em 11 de Fevereiro de 2019; porém, após o trânsito em julgado da sentença em causa, visando resolver o litígio tratado na “acção de inventário”, relativo aos bens adquiridos depois da separação do casal, a Autora requereu nesta causa a determinação da data da cessação de coabitação e a retroacção dos efeitos do divórcio até ao dia 31 de Dezembro de 1992;
4) Quanto à questão de saber se, após o trânsito em julgado da sentença da “acção de divórcio por mútuo consentimento”, é permissível intentar outra acção para a determinação da data da cessação de coabitação e a retroacção dos efeitos do divórcio, conforme o n.º 2 do art.º 1630º do Código Civil de Macau que preceitua o “divórcio por mútuo consentimento”, os cônjuges, ao requerer o “divórcio por mútuo consentimento”, não têm de revelar a causa do divórcio, e limitam-se a acordar sobre a prestação de alimentos ao cônjuge, o exercício do poder paternal relativamente aos filhos menores e o destino da casa de morada da família, assim, por não haver audiência de julgamento nem necessidade de revelar a causa do divórcio, não é possível provar a causa e os factos destinados à determinação do cônjuge culpado que violou os deveres conjugais, e da separação de facto; a par disso, no processo de divórcio trata-se das relações jurídicas pessoais que são indisponíveis, por conseguinte, as partes não podem confessar os requerimentos nem os factos, ou seja, na “acção de divórcio por mútuo consentimento”, elas também não podem acordar sobre a determinação da data da cessação de coabitação; por cima, o n.º 2 do art.º 1644º do Código Civil de Macau apenas salvaguarda os interesses do cônjuge inocente ou do não predominantemente culpado, aliás, na “acção de divórcio por mútuo consentimento”, as partes chegam a um acordo de divórcio com a conciliação destas na desistência da efectivação da responsabilidade do culpado, tampouco nela se determina o cônjuge culpado;
5) Daí se vislumbra que, apesar de o Réu ter requerido, inicialmente, na acção de “divórcio litigioso”, o divórcio, com base na separação de facto por mais de 2 anos entre os cônjuges, enfim, as partes conciliaram a passagem do “divórcio litigioso” para o “divórcio por mútuo consentimento”, ou seja, como acima referido, não há qualquer oportunidade ou mecanismo para determinar o cônjuge culpado e a data da cessação de coabitação no caso de “divórcio por mútuo consentimento”.
Pelo exposto, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 429º do Código de Processo Civil de Macau, este Juízo indefere os requerimentos apresentados pela Autora, onde pediu que se fixasse a data da cessação de coabitação, se decretasse a retroacção dos efeitos do divórcio à data em que cessou a coabitação e se determinasse que o Réu era culpado exclusivo.
Custas pela Autora.
…”.
Estamos de pleno acordo com a argumentação e decisão feitas pelo Tribunal a quo face à questão em causa, pelo que, nos termos do disposto no n.º 5 do art.º 631º do Código de Processo Civil, invocando a aludida decisão e os respectivos fundamentos, negamos provimento ao recurso.
(…)”; (cfr., fls. 139 a 141 e 14 a 21 do Apenso que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada, a A., recorrente, traz o assim decidido (pelo Tribunal de Segunda Instância) à apreciação desta Instância, pedindo a sua revogação; (cfr., fls. 148 a 162 e 22 a 51 do Apenso).

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Observada que está a tramitação processual legalmente prescrita, cumpre decidir.

Fundamentação

2. Como resulta do que se deixou relatado, o presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a decisão do Tribunal Judicial de Base que – em sede de despacho saneador, e ao abrigo do art. 429°, n.° 1, al. b) do C.P.C.M. – julgou improcedentes os pedidos pela A., ora recorrente (aí) deduzidos; (cfr., 96 a 98-v e 139 a 141).

E, sem prejuízo do muito respeito por (eventual) entendimento em sentido diverso, não se vê como reconhecer razão à A., ora recorrente, muito não se mostrando necessário aqui consignar para o demonstrar.

Vejamos.

Da matéria de facto pelo Tribunal Judicial de Base dada como provada – e não impugnada – colhe-se que a dita recorrente e o ora recorrido foram casados entre si, e que o seu casamento veio a ser dissolvido por “divórcio por mútuo consentimento”, decretado por sentença que transitou em julgado em 11.02.2019; (cfr., Proc. n.° FM1-19-0063-CPE).

Resulta, igualmente, dos presentes autos que, no âmbito do inventário que corre por apenso ao dito processo de divórcio, a ora recorrente e recorrido ter-se-ão desentendido quanto à “partilha de bens”, o que veio a originar a acção por aquela proposta no Tribunal Judicial de Base que, como se viu, foi julgada improcedente, vindo o decidido a ser confirmado pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância agora objecto do presente recurso.

Assim, em face do consignado, e atento o “peticionado” na dita acção, evidenciada cremos que fica a improcedência do presente recurso.

Como efeito, com a referida a “acção (ordinária)” que a ora recorrente intentou, pretendia a mesma que o R., ora recorrido, fosse “declarado o único culpado” do divórcio (por mútuo consentimento) antes decretado – cuja sentença já havia transitado em julgado – peticionando, também, a “retroacção dos efeitos do decretado divórcio à data de 31.12.1992”, alegando ser esta a data em que, por culpa do dito R., “deixaram de coabitar”; (cfr., p.i. a fls. 2 a 11).

Ora, não se nega que nos termos do art. 36° da L.B.R.A.E.M., (pela ora recorrente também invocado), “aos residentes de Macau é assegurado o acesso ao Direito e aos Tribunais”, prescrevendo também – em sintonia – o art. 1°, n.° 2 do C.P.C.M. que : “A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção”.

Porém, e como é bom de ver, tais normativos não tem a virtude de tornar toda e qualquer pretensão apresentada em juízo como “válida” e “meritória” para, como tal, ser judicialmente reconhecida e declarada.

Como salientam Cândida Pires e Viriato Lima;

“O direito de “acesso ao Direito, aos tribunais, à assistência por advogado na defesa dos seus legítimos direitos e interesses, bem como à obtenção de reparações por via judicial”, que a Lei Básica da RAEM, no seu art. 36.°, 1.° parágrafo, assegura genericamente aos residentes da Região inclui, desde logo, no seu âmbito normativo, o direito de acção judicial, aqui previsto no n.° 2 com três fins essenciais: a declaração ou reconhecimento do direito; a efectivação coerciva do direito violado; e um fim auxiliar, a garantia da utilidade da decisão judicial. (…)”; (in “C.P.C.M., Anotado e Comentado”, Vol. I, pág. 26).

Contudo, (logo) advertem (também) os mesmos autores que:

“É muito discutida na doutrina a natureza jurídica do direito de acção judicial. Tende a prevalecer a orientação de que o direito de acção é um direito meramente processual, que tem como objecto o exame da pretensão deduzida e que se distingue do direito ou da relação jurídica substancial. É, assim, um direito instrumental que se dirige contra o Estado”; e que,
“Modernamente, alguma doutrina refere-se ao direito de acção como direito à jurisdição, ou seja: o “direito de todo o súbdito à prestação em seu favor da actividade judicial ou jurisdicional do Estado – o direito a haver justiça” (ZANZUCCHI); ou “o direito à protecção do Estado na ordem interna” (SANTI ROMANO); ou ainda “o poder jurídico de provocar a actividade do tribunal, um direito à jurisdição cujo exercício cria um dever para o órgão judicial” (EDUARDO COUTURE).
(…)
Em suma: na sua actual redacção, o art. 1.° e seus dois números explicitam as diversas vertentes do princípio do acesso à justiça: outorga-se o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional mediante a abertura de um processo (direito de acção), com o consequente dever do mesmo órgão de sobre essa pretensão se pronunciar em decisão fundamentada, com força de caso julgado; (…)”; (ob.cit., pág. 30 e 31, podendo-se, sobre a questão, ver também Rui Pinto in, “C.P.C. Anotado”, Almedina, pág. 34, onde se observa que, “o fundamento constitucional do direito de acção determina que se tenha direito de acção mesmo que não se tenha razão, pelo que se a todo o direito corresponde uma acção, uma afirmação inversa – de que toda a acção corresponde um direito – não é correcta: a titularidade do direito de fundo não é constitutiva do direito da acção”).

Nesta conformidade, cremos que – claramente – demonstrado fica que o “direito”, por lei reconhecido, de propor “acções” e de nelas apresentar “pretensões” em juízo, não implica, (automaticamente), o seu – necessário – reconhecimento.

In casu, é – exactamente – o que sucede.

Não se podendo negar o direito que à A., ora recorrente, assiste de deduzir os atrás referidos “pedidos” na acção que propôs no Tribunal Judicial de Base, totalmente inviável se apresenta, porém, reconhecer-lhe qualquer mérito (ou razão) em relação ao que pretende.

Passa-se a (tentar) explicitar este nosso ponto de vista.

Como – de forma clara – considera o Prof. Manuel Trigo, (valendo a pena aqui ter presente):

“O casamento pode extinguir-se por anulação ou por dissolução, por morte ou divórcio (art. 1555.°; cfr. arts. 65.° e 1643.°).
As causas de dissolução admitidas no direito de Macau são justamente a morte, e o divórcio, reguladas pela lei civil para todos os casamentos.
(…)
O divórcio é uma forma de dissolução do casamento decretada pelo tribunal ou pelo conservador do registo civil, normalmente ainda em vida de ambos os cônjuges, a requerimento de um ou dos dois, nos termos da lei.
(…)
São duas as modalidades de divórcio admitidas na lei: o divorcio por mútuo consentimento e o divórcio litigioso.
A primeira modalidade é a do divórcio por mútuo consentimento, que resulta de acordo entre os cônjuges, e está regulada nos arts. 1628.°, 1629.° e 1630.° e seguintes do CC e nos arts. 1242.° a 1248.° e seguintes do CPC. É a modalidade que a lei prefere (cfr. arts.1629.°, n.° 2, CC e 954.°, n.° 3, CPC).
(…)
A segunda modalidade é a do divórcio litigioso, que é pedido por um cônjuge contra o outro com fundamento em determinada causa e está regulado nos arts. 1628.° e seguintes e 1635.° e seguintes do CC e nos arts. 953.° a 957.° do Código de Processo Civil.
(…)
O divórcio por mútuo consentimento é aquele que é obtido por acordo entre os cônjuges, sem que a sua causa seja revelada, carecendo de homologação do tribunal ou do conservador do registo civil.
(…)
Se há acordo supõe-se que há razões para o divórcio litigioso e permite-se aos cônjuges que não as tornem públicas e não litiguem sobre as suas razões, por se entender que é preferível o acordo ao litígio. A lei prefere o divórcio por mútuo consentimento ao divórcio litigioso confinando nas razões dos cônjuges e desdramatizando o processo de divórcio.
(…)
No divórcio por mútuo consentimento os cônjuges não têm de revelar a causa do divórcio mas têm de estar de acordo para o divórcio (cfr. art. 1630.°).
Como requisito prévio, estabelece-se a exigência da duração do casamento por um ano, ou que os cônjuges estejam casados há mais de um ano (n.° 1 do art. 1630.°), ou seja, um prazo mínimo de duração do casamento, quer para terem tempo de estabelecer uma comunhão de vida quer para se convencerem da sua inviabilidade.
(…)
Em segundo lugar, é necessária a existência de acordo dos cônjuges ou mútuo consentimento para o divórcio (arts. 1628.°, n.os 1 e 2, e 1630.°, n.° 1).
Por último, é necessário ainda que haja acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça, sobre o exercício do poder paternal relativamente aos filhos menores e sobre o destino da casa de morada da família, acordos para vigorarem durante e após o processo (cfr. art. 1630.°, n.os 2 e 3, CC e art. 1242.°, n.os 1, al. c), e 2, CPC)”; (in “Lições de Direito da Família e das Sucessões”, Vol. II, F.D.U.M., pág. 325 e segs.).

No caso dos presentes autos, e como “provado” está, a ora recorrente e recorrido acordaram em por termo ao seu casamento pela via do “divórcio por mútuo consentimento”, e dado que preenchidos os seus requisitos, por sentença foi o mesmo decretado.

Como se viu – e foi o que efectivamente sucedeu – revelada não foi, (porque desnecessária), a “causa do divórcio”, e, como tal, a ninguém foi a mesma imputada, com a declaração da sua (exclusiva ou maior) culpa pela dissolução do casamento.

Pretender-se, agora, “inverter” este “estado de coisas” objecto de “livre acordo” (no âmbito do processo de divórcio) celebrado, e que foi, por sua vez, posteriormente homologado pelo Tribunal, constitui, a nosso ver, um “uso reprovável do processo”, a raiar a “má fé processual”; (cfr., art. 385° do C.P.C.M.).

Com efeito, como fazer “tábua rasa” de todo o processado e decidido no referido processo de divórcio, dando o “dito por não dito”, em (frontal) colisão com o acordo voluntariamente celebrado e judicialmente homologado, pretendendo-se, agora, discutir o que, (no “momento” próprio para o efeito) se considerou ser “irrelevante”?

E, então, como pretender-se que – agora, fora do dito processo de divórcio – se venha a declarar o ora recorrido o (único ou principal) culpado por um “divórcio por mútuo consentimento” já decretado, com sentença transitada em julgado?

Ora, como cremos que os próprios contornos da questão demonstram e impõem, manifesta e totalmente inviável é a pretensão da ora recorrente.

Porém, uma outra nota se mostra de consignar.

É que diz a ora recorrente que o seu pedido quanto à “retroacção dos efeitos do divórcio à data de 31.12.1992” tem a cobertura do preceituado no art. 1644° do C.C.M., onde se prescreve que:

“1. Os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se torna definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
2. Se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença deve fixar, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro.
3. Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença ou decisão”.

E, mais concretamente, invocando o “n.° 2” do transcrito comando legal, bate-se pela procedência desta sua pretensão.

Contudo, e como é bom de ver, evidente se nos mostra o equívoco, nenhum sentido fazendo o raciocínio pela recorrente efectuado no sentido de que, no caso dos presentes autos, (à posteriori, e em acção separada), nada obste a que se deduza tal pedido e se profira decisão de retroacção dos efeitos do seu divórcio à “data em que (alegadamente) cessou a coabitação” com o ora recorrido.

De facto, não se ignora que a questão da “retroacção dos efeitos do divórcio” tem sido objecto de estudo, (e de alguma polémica), surgindo, essencialmente, duas posições: uma em que se admite que tal pedido seja deduzido até a prolação da sentença de divórcio, e outra que o considera admissível mesmo após o seu trânsito em julgado; (cfr., v.g., sobre a questão, F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in, “Curso de Direito da Família”, Vol. I, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pág. 748; P. Coelho in, “Divórcio e Separação Judicial de Pessoas e Bens na Reforma do Código Civil”; Pires de Lima e A. Varela in, “C. Civil Anotado”, Vol. III, pág. 561; Tomé d'Almeida Ramião in, “O divórcio e questões conexas – regime jurídico actual”, pág. 86 e segs.; Abel Delgado in, “O Divórcio”, 2ª ed., pág. 131, podendo-se, também, e entre outros, cfr., os Acórdãos do S.T.J. de 11.07.1989, Proc. n.° 078040; de 22.01.1997, in C.J.S.T.J., Tomo I, pág. 63; de 15.10.2002, Proc. n.° 02A2378; de 19.10.2004, Proc. n.° 04A2781; de 07.11.2006, Proc. n.° 06A2918; de 19.12.2006, in C.J.S.T.J., Tomo III, pág. 176 e, mais recentemente, de 07.06.2018, Proc. n.° 2159/10, in “www.dgsi.pt”).

Porém, como nos parece evidente, (e, se bem ajuizamos, neste sentido converge o entendimento sobre a questão), para tal decisão de retroacção dos efeitos do divórcio à data em que teve início a separação de facto entre os cônjuges – no caso, recorrente e recorrido – imprescindível é que essa mesma “data” esteja apurada e fixada em sede de matéria de facto dada como provada no processo de divórcio, (cfr., o art. 1644°, n.° 2 do C.C.M. e, v.g., os autores citados), o que, como se viu, (e pelos próprios motivos da modalidade do decretado divórcio), não é o caso.

Dest’arte, (independentemente do demais), e assente não estando tal “facticidade”, vista está a solução para o presente recurso.

Decisão

3. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça de 8 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 10 de Março de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Conclusão de recurso apresentada pela Autora:
1. Embora a relação matrimonial existente entre a Recorrente e o Recorrido seja dissolvida no processo de divórcio por mútuo consentimento, cuja sentença já tenha transitado em julgado, conforme a interpretação da Recorrente, no processo de divórcio por mútuo consentimento, o juiz pode, após a confirmação da vontade de divórcio dos cônjuges, declarar imediatamente a dissolução da relação matrimonial pessoal existente entre os mesmos, pelo que não é necessário apreciar a questão de saber “se existe cônjuge culpado”.
2. No caso vertente, a Recorrente e o Recorrido já se separaram há muitos anos, o amor conjugal destes esfriou-se há muito tempo, por isso, na reunião de divórcio, eles conciliaram o pedido de divórcio por mútuo consentimento, contudo, as partes ou, pelo menos, a Recorrente não desistiu na reunião do gozo do direito de partilha dos bens do casal no futuro, nomeadamente pediu o esclarecimento das questões relativas às causas da separação do casal e à respectiva data para que pudesse efectivar a responsabilidade do cônjuge culpado por ter provocado a separação do casal (e não divórcio).
3. Na verdade, após a dissolução do casamento entre a Recorrente e o Recorrido decretada no processo de divórcio por mútuo consentimento, o Recorrido intentou logo a acção de inventário contra a Recorrente, invocando que o bem imóvel adquirido pela Recorrente depois da separação entre esta e o Recorrido era um bem comum do casal, e pedindo a partilha deste.
4. Deste modo, a Recorrente tinha de intentar a presente acção, solicitando que o Tribunal apreciasse e apurasse as matérias supracitadas, bem como declarasse que o Recorrido era culpado exclusivo pela cessação da coabitação dos cônjuges e decretasse a retroacção dos efeitos do divórcio à data em que cessou a coabitação, a fim de poder deduzir oposição à partilha do bem imóvel em causa na acção de inventário.
5. No que concerne à viabilidade dos pedidos formulados pela Recorrente na petição inicial, como várias decisões judiciais de Portugal, invocadas pelo Dr. Abílio Neto na nota do artigo 1789º do Código Civil de Portugal, defendem que, após o término do processo de divórcio, pode determinar-se, em outros processos, o cônjuge culpado existente na constância do casamento, a data da cessação de coabitação e os efeitos do divórcio.
6. Assim sendo, por haver razões ponderáveis, mesmo após o término do processo de divórcio, qualquer uma das partes pode, mediante meio processual geral, pedir ao tribunal que determine e declare os factos e o cônjuge culpado existentes na constância do casamento.
7. Objectivamente, no entendimento da Recorrente, consideram-se idóneas a invocação dos factos acima expostos e a apresentação dos respectivos pedidos na presente acção declarativa, já que os artigos 1642º (Declaração do cônjuge culpado) e 1644º (Declaração da data em que se produzem os efeitos do divórcio) do Código Civil apenas indicam que a declaração deve ser feita na “sentença” e não obrigam que esta seja feita no processo de divórcio litigioso ou de divórcio por mútuo consentimento.
8. Ademais, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 1º do Código de Processo Civil, a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção.
9. Na acção declarativa ora intentada pela Recorrente, esta invocou a separação de facto ocorrida na constância do casamento, o divórcio, entre outros factos, e os obstáculos encontrados ao longo do processo de inventário proposto depois do divórcio; face aos factos invocados pela Recorrente, o regime processual civil confere mecanismo especializado ao Recorrido para deduzir oposição e apresentar meio de prova; em seguida, as partes são ouvidas na audiência de julgamento e o Juízo profere a decisão final.
10. Daí se vislumbra que, no apuramento dos aludidos factos realizados na acção declarativa, as posições contraditórias da Recorrente e do Recorrido são iguais, sendo protegidas e permitidas por lei.
11. Pelo exposto, salvo o devido respeito, entende a Recorrente que a sentença a quo violou os artigos 1642º e 1644º do Código Civil, e art.º 1º do Código de Processo Civil, padecendo do vício de violação de lei, por conseguinte, deve a mesma ser revogada.
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