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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso laboral
N.º 27 / 2007

Recorrente: A
Recorrida: B








   1. Relatório
   B instaurou uma acção ordinária laboral contra a A, pedindo que esta seja condenada a pagar à autora determinada quantia em dinheiro a título de retribuição, compensação por descanso anual, descanso semanal, feriados e licença de parto, indemnização rescisória e indemnização emergente da violação de direitos não patrimoniais da autora.
   Por sentença do Tribunal Judicial de Base, a acção foi julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar à autora compensação e indemnização por descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios.
   Inconformada com a decisão, a ré recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 58/2007, foi anulado o julgamento efectuado no Tribunal Judicial de Base por deficiência e obscuridade da resposta a quesitos.
   Deste acórdão vem agora a ré recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   - O acórdão de que ora se recorre violou os art.ºs 571.º e 629.º do CPC.
   - Mais do que obscura ou deficiente, a douta decisão do TSI ora em crise é contraditória.
   - De facto, constam do processo em primeira instância “todos os elementos de prova que serviram de base à decisão”. Termos em que entende a recorrente que o tribunal a quo não podia ter utilizado da faculdade ou do poder verdadeiramente excepcional previsto no n.° 4 do art.º 629.º do CPC.
   - Face à contradição insanável entre o julgamento da matéria de facto e a decisão de condenação da recorrente, deveria ter havido uma reparação da decisão da primeira instância feita pelo TSI.
   - A ora recorrente entende que, mais do que obscuridade ou até deficiência entre a matéria de facto provada e a decisão final, o que existe é uma contraditoriedade da decisão de facto, que apenas e só poderia ter levado à absolvição da recorrente do pedido.
   - Não pode levar à condenação da ora recorrente em custas judiciais.
   - A regra da insindicância da apreciação pelo TUI das decisões do TSI, no âmbito do art.º 629.º do CPC, não tem consagração legal em Macau.
   - Assim, entende a recorrente, que em Macau, o Tribunal de Última Instância pode verificar, sindicar ou apreciar da conformidade dos poderes exercidos pelo TSI. Não estamos no reino dos factos, mas da censura legal e judicial dos poderes decisórios do tribunal de segunda instância.
   - A anulação do julgamento pelo TSI, não retira a contradição entre a matéria de facto considerada provada e a decisão de direito que foi proferida pelo TJB.
   
   A recorrida não apresentou resposta.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de factos
   Foram considerados provados os seguintes factos pelas instâncias:
   “- Desde o início da década de 1960 que a ré foi concessionária de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casinos por adjudicação do então Território de Macau; (alínea a)
   - Essa licença de exploração terminou em 31 de Março de 2002 por força do Despacho do Chefe do Executivo n.º XXX/2001, de 18 de Dezembro de 2001; (alínea b)
   - Por Despacho do Chefe do Executivo n.° XX/2002, foi adjudicada uma licença de exploração à C; (alínea c)
   - A autora começou a trabalhar para a ré em 15 de Janeiro de 1971 na área de actividade desta ligada à exploração de jogos de fortuna ou azar; (alínea d)
   - Na data referida na alínea anterior, a ré pagava à autora, a título de remuneração fixa diária a quantia de MOP$4,10 até 30 de Junho de 1989, data em que passou a pagar HKD$10,00 e passando a ser de HKD$15,00 a partir de 1 de Maio de 1995 e até à cessação da relação laboral entre as partes; (alínea e)
   - Além disso, a autora, ao longo do período em que esteve ao serviço da ré recebeu uma quota-parte, variável, do total das gorjetas entregues pelos clientes da ré a todos os trabalhadores, cujo montante era diariamente reunido e contabilizado por esta e, em cada dez dias, distribuído por ela a todos os seus trabalhadores, lidassem ou não directamente com os clientes e de acordo com a respectiva categoria profissional; (alínea f)
   - Em 23 de Julho de 2002, a autora celebrou com a referida C um acordo escrito cujo teor consta de fls. 138 a 140 e aqui se dá por integralmente reproduzido; (alínea g)
   - Com data de 8 de Agosto de 2002, a autora enviou à C que, por sua vez, recebeu, a carta cujo teor consta de fls. 148 e 149 (em língua chinesa) e 150 e 151 (em língua portuguesa) e que aqui se dá por integralmente reproduzido; (alínea h)
   - Durante o ano de 1984, a autora recebeu da ré, a quantia de MOP$114.960,00; (resposta ao quesito 1º)
   - Englobando a remuneração fixa e a quota-parte referidas nas alíneas e) e f) da matéria de facto assente; (resposta ao quesito 2º)
   - Durante o ano de 1985, a quantia que a autora recebeu da ré, englobando a remuneração fixa e a quota-parte referidas nas alíneas e) e f) da matéria de facto assente, foi de MOP$115.824,00; (resposta ao quesito 3º)
   - No ano de 1986, foi de MOP$104.178,00; (resposta ao quesito 4º)
   - No ano de 1987, foi de MOP$111.849,00; (resposta ao quesito 5º)
   - No ano de 1988, foi de MOP$120.058,00; (resposta ao quesito 6º)
   - No ano de 1989, de MOP$152.495,00; (resposta ao quesito 7º)
   - Durante o ano de 1990, de MOP$175.366,00; (resposta ao quesito 8º)
   - Durante o ano de 1991, a quantia de MOP$159.395,00; (resposta ao quesito 9º)
   - Durante o ano de 1992, a quantia de MOP$174.379,00; (resposta ao quesito 10º)
   - Durante o ano de 1993, a quantia de MOP$182.976,00; (resposta ao quesito 11º)
   - Durante o ano de 1994, a quantia de MOP$171.387,00; (resposta ao quesito 12º)
   - Durante o ano de 1995, a quantia de MOP$206.306,00; (resposta ao quesito 13º)
   - Durante o ano de 1996, a quantia de MOP$193.945,00; (resposta ao quesito 15º)
   - Durante o ano de 1997, a quantia de MOP$185.343,00; (resposta ao quesito 16º)
   - Durante o ano de 1998, a quantia de MOP$181.233,00; (resposta ao quesito 17º)
   - Durante o ano de 1999, a quantia de MOP$154.870,00; (resposta ao quesito 18º)
   - Durante o ano de 2000, a quantia de MOP$165.016,00; (resposta ao quesito 19º)
   - Durante o ano de 2001, a quantia de MOP$165.016,00; (resposta ao quesito 20º)
   - A autora precisava de autorização da ré para ser dispensada dos serviços e durante estes períodos de dispensa autorizada a autora não recebia qualquer remuneração; (resposta aos quesitos 22º a 27º)
   - Na altura de ser admitida, a autora aceitou que as flutuações e até a eventual inexistência em determinado momento temporal da quota-parte referida na alínea f), corriam por sua conta; (resposta ao quesito 32º)
   - Ao longo dos anos, quando gozaram dias de descanso, nunca os trabalhadores da ré, nomeadamente a autora, solicitaram àquela o pagamento de qualquer compensação ou remuneração nesses dias; (resposta ao quesito 34º)
   - Nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios em que a autora trabalhava auferia rendimento. (resposta aos quesitos 35º e 36º)
   
   
   2.2 Sindicabilidade da decisão sobre matéria de facto
   A recorrente entende que há contradição entre os factos provados e a decisão de primeira instância e que o Tribunal de Segunda Instância devia absolver a recorrente, em vez de anular o julgamento de primeira instância, por não ter sido provado que a autora nunca gozou os descansos e feriados. E pugna pela possibilidade de o Tribunal de Última Instância sindicar a decisão do Tribunal de Segunda Instância de anular o julgamento de primeira instância em uso do poder previsto no n.º 4 do art.º 629.º do Código de Processo Civil (CPC).
   
   O tribunal recorrido considerou que as respostas aos quesitos n.ºs 22 a 27 e 35 e 36 eram deficientes e obscuras por se ficar sem saber se a autora trabalhou ou não nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, tal como alegado na petição inicial. Ao abrigo do n.º 4 do art.º 629.º do CPC, foi anulado o julgamento efectuado em primeira instância para, em novo julgamento, se suprir as apontadas deficiências, podendo o Tribunal Judicial de Base ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições na decisão.
   
   Perante esta decisão oficiosamente tomada pelo tribunal recorrido, põe-se a questão da sua sindicabilidade pelo Tribunal de Última Instância.
   A questão já foi abordada nos acórdãos deste Tribunal de 23 de Maio de 2001 do processo n.º 5/20011, de 19 de Outubro de 2005 do processo n.º 18/2005 e, num caso semelhante ao presente, de 11 de Março de 2008 do processo n.º 51/2007, e tem sido decidida sempre no mesmo sentido que será mantido no presente recurso.
   
   De acordo com o art. 47.º, n.º 2 da Lei de Bases de Organização Judiciária (Lei n.º 9/1999):
   “Excepto disposição em contrário das leis de processo, o Tribunal de Última Instância, quando julgue em recurso não correspondente a segundo grau de jurisdição, apenas conhece de matéria de direito.”
   
   Ou seja, no julgamento do recurso de terceiro grau, como no presente caso, o Tribunal de Última Instância conhece, em princípio, apenas matéria de direito, salvo disposição em contrário de leis processuais.
   Assim, é mister atender aos seguintes artigos do Código de Processo Civil:
“Artigo 649.º
(Âmbito do julgamento)
   1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
   2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   
Artigo 650.º
(Insuficiência da matéria de facto e contradição na decisão de facto)
   1. Se entender que a matéria de facto pode e deve ser ampliada para fundamentar a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão de facto que inviabilizam a decisão de direito, o Tribunal de Última Instância manda julgar novamente a causa no Tribunal de Segunda Instância.
   2. O Tribunal de Última Instância fixa logo o regime jurídico aplicável ao caso; se, por insuficiência da matéria de facto, ou contradição na decisão de facto, o não puder fazer, fica a nova decisão que o Tribunal de Segunda Instância proferir sujeita a recurso para o Tribunal de Última Instância, nos mesmos termos que a primeira.”
   
   Destes dois artigos citados pode chegar as seguintes conclusões:
   O Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime jurídico aos factos fixados pelo tribunal recorrido e só pode alterar a decisão deste sobre matéria de facto quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   E pode anular a decisão recorrida e mandar julgar novamente a causa no tribunal recorrido quando seja insuficiente a matéria de facto ou ocorra contradição na decisão de facto.
   
   O art.º 629.º, n.º 4 do CPC em que fundamenta a decisão do tribunal recorrido permite que “o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
   E considerar se as respostas a quesitos são deficientes, obscuras, contraditórias ou até ininteligíveis constitui uma questão de facto e não de direito, pois está em causa a percepção por homem médio de realidade veiculada pelos factos constantes das respostas a quesitos e a sua comparação, que não envolve qualquer qualificação ou apreciação jurídicas.
   Sendo uma decisão sobre questão de facto, é insindicável pelo Tribunal de Última Instância em via de recurso, salvo houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   
   Com os quesitos n.ºs 22 a 27 e 35 e 36 cujas respostas foram consideradas insuficientes e obscuras pelo tribunal recorrido pretende-se saber se a autora trabalhou nas férias, feriados obrigatórios e descansos semanais, sem qualquer acréscimo salarial nem possibilidade de conviver com a família, e qual a razão de prestar trabalho nestes períodos.
   Ao considerar as respostas aos quesitos em causa deficientes e obscuras por se ficar sem saber se a autora trabalhou ou não nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, o tribunal recorrido não violou nenhuma norma legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   Assim, por falta do poder de cognição, o Tribunal de Última Instância não aprecia, no presente recurso, a decisão do tribunal recorrido de anular o julgamento de primeira instância por deficiência e obscuridade de respostas a quesitos com base no poder conferido pelo n.º 4 do art.º 629.º do CPC.
   
   Por manterá a decisão do tribunal recorrido de anular o julgamento realizado pelo Tribunal Judicial de Base e consequentemente serão dadas novas respostas a quesitos, fica prejudicado o conhecimento da alegada contradição entre os factos provados e a sentença condenatória da primeira instância.
   
   
   2.3 Responsabilidade por custas
   A recorrente entende que o acórdão recorrido não pode levar a sua condenação por custas.
   
   Trata-se manifestamente de um equívoco da recorrente.
   Na parte de decisão o tribunal recorrido limitou a fixar as custas pelo vencido a final, ou seja, a recorrente não foi condenada em custas na segunda instância. De acordo com o disposto no art.º 376.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas ficam a cargo da parte vencida no final do processo, pois a decisão de anular o julgamento de primeira instância foi tomada oficiosamente pelo Tribunal de Segunda Instância, que não foi suscitada pelas partes do processo, portanto, não há parte vencida no recurso de segunda instância.
   Já nesta instância, a recorrente será responsável por custas do presente recurso, porque deu causa ao presente recurso e ficará vencida.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
   Custas pela recorrente.
   
   
   
   
   Aos 5 de Novembro de 2008




Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM, 2001, p. 593.
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Processo n.º 27 / 2007 12