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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos relevantes
A intentou acção especial de prestação de contas contra B, pedindo que a ré apresentasse contas ou contestasse a acção, sob pena de não poder deduzir oposição às contas que a autora apresentasse.
Por decisão proferida em 6 de Abril de 2001, o Ex.mo Juiz do Tribunal Judicial de Base condenou a ré a prestar contas à autora, no prazo de 10 dias, nos termos do artigo 1014.º, n.º 5 do Código de Processo Civil de 1961.
Em recurso interposto pela ré, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 11 de Março de 2004, transitado em julgado, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão que condenou a ré a prestar contas à autora.
O processo prosseguiu com apresentação de contas pela ré e sua contestação pela autora e, realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, em 14 de Setembro de 2007, pelo Ex.mo Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base que, considerando a acção procedente, se limitou a considerar prestadas as contas pela ré. E mais não disse, porque entendeu que foi isto apenas que a autora pediu e que o juiz não pode ir além do pedido pelo autor, atento o princípio dispositivo.
Recorreu apenas a autora para o TSI, pedindo a condenação da ré a pagar MOP$4,231,454.95, e defendendo que o Juiz de 1.ª Instância não se podia ter limitado a considerar prestadas as contas, mas devia apurar o saldo a favor da autora e condenar a ré no seu pagamento.
A ré sustentou a improcedência do recurso, invocando o disposto no artigo 564.º do actual Código de Processo Civil, segundo o qual “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.
O TSI, por Acórdão de 15 de Maio de 2008, julgou improcedente a reclamação para a conferência, apresentada pela ré, do despacho do Ex.mo Relator que julgou procedente o recurso da autora e condenou a ré a pagar à autora a quantia de MOP$4,231,454.95.
Inconformada, recorre a ré para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do Acórdão recorrido e pedindo a remessa do processo ao Tribunal de 1.ª Instância, para que este profira nova decisão ou, se assim se não entender, se dê cumprimento ao disposto no artigo 630.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, antes de o TSI proferir decisão.
Para tal, formulou as seguintes conclusões úteis:
O Venerando Juiz Relator jamais poderia substituir-se ao tribunal recorrido, proferindo decisão que substitui a decisão recorrida, sob pena de à ora Recorrente ser coarctado um direito fundamental que é o de recorrer do julgamento da matéria de facto;
Efectivamente, num caso como o dos autos, em que o tribunal de recurso conclui pela existência de uma omissão de pronúncia do tribunal recorrido não poderá nunca vigorar o sistema de substituição, que prevê que o primeiro julga em lugar do segundo;
É que, a optar-se por tal sistema em detrimento do sistema de cassação, que prevê que o tribunal de recurso se limita a revogar a decisão recorrida e a reenviar o processo ao tribunal a quo para que profira nova decisão, está-se, a impedir que à Ré, ora Recorrente, seja facultada a possibilidade de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto e, consequentemente, a suprimir-se a possibilidade de recurso do respectivo acórdão;
Com efeito, a sentença de 1.ª instância não condenou a ora Recorrente no pagamento de qualquer quantia, pelo que, não tendo ficado vencida, carecia, por força do disposto no artigo 585.º do CPC, de legitimidade para recorrer da referida decisão e também da decisão de facto, cuja impugnação tem lugar e deve constituir objecto do recurso interposto da sentença;
Também por não ser parte vencida, não podia a Ré, ora Recorrente, interpor recurso subordinado, nos termos do disposto na 2.ª parte do n.° 2 do artigo 587.° do CPC;
Assim, ao condenar a Ré no pagamento da quantia em apreço com base nos factos que resultaram provados na 1.ª Instância, condenação essa que o Tribunal a quo omitiu, o despacho reclamado e confirmado pelo Acórdão ora recorrido, eliminou a possibilidade de a Ré recorrer da decisão de facto, o que constitui uma violação do disposto no artigo 599.º do CPC e constitui uma nulidade, isto tendo evidentemente em conta que os recursos para o Tribunal de Última Instância não podem versar sobre a modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto;
Acresce que, ao contrário do que se defende no Acórdão ora recorrido, o relator, antes de proferir qualquer decisão deveria ter convidado as partes a pronunciar-se, conforme dispõe o n.° 3 do artigo 630.º do CPC;
Ao preterir esta formalidade, o despacho de fIs. 891 violou o disposto no referido normativo e consequentemente, incorreu no vício de nulidade;
O cumprimento de tal formalidade não é uma faculdade é, antes, um dever do relator e sobretudo um direito das partes, o qual não se confunde com o direito de responder às alegações de recurso, a que se refere o n.° 2 do artigo 613.º do CPC;
Com efeito, não tendo o Tribunal de 1.ª Instância concluído, em resultado da matéria de facto provada, que a Ré deveria ser condenada no pagamento à Autora da quantia de MOP$4,231.454.95, a Ré, ora Recorrente, não teve oportunidade de se pronunciar sobre essa questão, pois nesse caso, como supra se disse, teria recorrido dessa decisão;
Nestes termos, o Acórdão ora recorrido é também nulo com fundamento na violação do disposto no n.° 3 do artigo 630.° do Código de Processo Civil.

II – O Direito
1. As questões a resolver
São duas as questões fundamentais a resolver.
A primeira é a de saber se o TSI, após ter declarado nula a sentença de 1.ª Instância, em vez de ter conhecido do objecto do recurso - como fez - aparentemente como determina o n.º 1 do artigo 630.º do Código de Processo Civil, devia ter antes devolvido o processo à 1.ª Instância, para que o juiz decidisse se havia saldo a favor da autora e, havendo-o, condenasse a ré no seu pagamento. Isto para que a ré tivesse tido a oportunidade de impugnar a decisão de facto, dado que, na tese da ré, esta não teve tal oportunidade, porque não pôde recorrer da sentença de 1.ª Instância, visto não ter ficado vencida.
Subsidiariamente, isto é, para o caso da primeira questão não proceder, importa apurar se o Acórdão recorrido violou o disposto no n.º 3 do artigo 630.º do Código de Processo Civil, que determina que “O relator, antes de ser proferida decisão (que declare nula a sentença de 1.ª Instância e conheça do objecto do recurso), ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias”.

2. Recurso principal e recurso subordinado
Ao presente recurso e também ao que foi interposto para o TSI aplica-se o actual Código de Processo Civil, nos termos da alínea c) do n.º 5 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8 de Outubro.
As normas doravante citadas sem indicação de proveniência são do mencionado Código.
  A tese da ré é esta:
  i) É certo que o n.º 1 do artigo 630.º consagra a regra da substituição ao tribunal recorrido, quando o TSI conhece de nulidade da sentença de 1.ª Instância, ao determinar que “O Tribunal de Segunda Instância conhece do objecto do recurso, mesmo que a sentença proferida na primeira instância seja declarada nula ou contrária a jurisprudência obrigatória”.
ii) No caso dos autos tal norma não pode aplicar-se, devendo antes o Acórdão recorrido ter ordenado a baixa do processo à 1.ª Instância, para que o juiz suprisse a nulidade de omissão de pronúncia, a fim de que a ré, no caso de a 1.ª Instância a condenar a pagar o saldo das contas, poder impugnar a decisão de facto, o que não ocorreu nos autos. Isto porque, na tese da ré, não tendo ficado vencida com a decisão, não poderia ter recorrido da mesma.
Há que começar por ponderar se a ré ficou vencida, total ou parcialmente, com a decisão da 1.ª Instância. É que se ficou vencida com a decisão, poderia ter recorrido da decisão de facto, nos termos do artigo 599.º do Código de Processo Civil, pelo que não teria razão ao afirmar que não teve oportunidade de impugnar a decisão de facto.
A ré não ficou, na verdade, vencida com a decisão. Esta limitou-se a considerar prestadas as contas, mas esta questão tinha deixado de ser controvertida a partir do Acórdão do TSI, de 11 de Março de 2004, transitado em julgado, que confirmou decisão do Juiz de 1.ª Instância, que condenou a ré a prestar contas à autora.
Ora, a ré já tinha prestado contas, no decurso do processo, pelo que é manifesto que não ficou vencida com a decisão.
A pedra de toque para comprovar esta asserção é esta: para aqueles, como a autora e, de certa forma, o Acórdão recorrido, que consideram que a ré ficou vencida e que poderia recorrer, ao menos subordinadamente, qual seria, então, o objecto do recurso da ré? O que é que ela iria pedir ao TSI? Iria recorrer de quê, se a sentença de 1.ª Instância não lhe impôs qualquer obrigação?
Logo, não sendo parte vencida não poderia ter interposto recurso principal ou subordinado, já que, mesmo para se interpor um recurso deste último tipo é essencial ser-se parte vencida (artigo 587.º).
E não se diga, como faz a autora, que a ré poderia ter interposto recurso subordinado após conhecer os fundamentos do recurso da autora.
Não é assim. É que, ainda que a ré pudesse ter interposto recurso subordinado – e não podia, como se viu – tal recurso é interposto no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho que admita o recurso da parte contrária (n.º 3 do artigo 587.º). Ora, quando a autora entregou a sua alegação (30 dias a contar da notificação do despacho que admita o recurso), já teria passado o prazo para a ré interpor recurso subordinado, pelo que a ré não poderia ter interposto tal recurso em função do conteúdo da alegação da autora, recorrente, que, na ocasião, ainda não tinha sido apresentada.
Em conclusão, a ré não poderia ter interposto recurso principal ou subordinado da sentença de 1.ª Instância.

3. Impugnação da decisão de facto pelo recorrido
Dito isto, há que colocar a seguinte questão: a ré, recorrida no recurso para o TSI, não teve qualquer possibilidade de impugnar a decisão de facto?
É que se o recorrido não tiver a possibilidade de impugnar a decisão de facto, a regra do n.º 1 do artigo 630.º, atrás transcrito (regra da substituição ao tribunal recorrido quando se julga procedente nulidade da sentença), encerraria uma forte limitação dos direitos das partes. E, então seria plausível a sua não aplicação e o reenvio do processo à 1.ª Instância.
Só que a lei contém uma solução para a questão, uma possibilidade que a ré não utilizou, prevista no n.º 2 do artigo 590.º.
Depois de, n.º 1 do artigo 590, se prever que “Se forem vários os fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.”, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo 590.º:
“2. Pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnada pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas” (o sublinhado é nosso).
Quer dizer, a ré, recorrida, após ter tomado conhecimento da alegação da autora, recorrente, designadamente que esta pedia que o TSI condenasse a ré a pagar-lhe a ela, autora, a quantia de MOP$4,231.454.95, face à omissão da sentença de 1.ª Instância, prevenindo a hipótese de procedência do pedido da autora, e conhecendo a regra do n.º 1 do artigo 630.º, poderia - dizíamos nós - a ré ter impugnado a decisão de facto, nos termos do artigo 599.º.
Ou seja, prevendo a hipótese de o TSI dar razão à autora, entendendo que o saldo entre as receitas e as despesas era de MOP$4,231.454.95, a favor da autora, poderia a ré ter utilizado o mecanismo previsto no artigo 599.º, consentido expressamente pelo n.º 2 do artigo 590.º1.
Não é, portanto, exacto que o Acórdão recorrido tenha eliminado a possibilidade de a Ré recorrer da decisão de facto. Ela podia ter recorrido da decisão de facto na contra-alegação de recurso para o TSI, a título subsidiário, como se disse. Não o fez, não pode, agora, queixar-se da disciplina do n.º 1 do artigo 630.º.
Não foi, assim, coarctado à ré o direito de recorrer do julgamento da matéria de facto.
Improcede, por conseguinte o 1.º fundamento do recurso.

4. Nulidades de decisão e outras nulidades processuais
Nas suas conclusões, a ré defende que o Relator, antes de proferir qualquer decisão deveria ter convidado as partes a pronunciarem-se, conforme dispõe o n.° 3 do artigo 630.º.
A ser assim – e não tomamos posição sobre a questão, por não ser necessário, como se verá – teria sido praticada uma omissão de uma formalidade, que constitui nulidade processual, nos termos do artigo 147.º, n.º 1, por a irregularidade poder influir na decisão da causa, por estar em causa a violação do princípio do contraditório.
Mas então, a ré, logo que tomou conhecimento de tal omissão – e isso terá acontecido quando foi notificada do despacho do Relator que a condenou a pagar a quantia à autora - devia ter arguido a nulidade processual, no prazo de 10 dias, perante o próprio Relator, nos termos do artigo 151.º, a decidir por este, de acordo com o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 619.º.
Tendo reclamado para conferência, andou mal e, portanto, não pode agora recorrer para o TUI da decisão da conferência, já que o vício alegadamente em causa não é a nulidade do Acórdão da conferência (artigos 633.º e 571.º), nem sequer a nulidade do despacho do Relator (artigos 571.º e 569.º, n.º 3), mas antes a nulidade processual consistente em omissão do contraditório (artigo 147.º, n.º 1), que terá sido cometida nos autos antes da prolação do despacho do Relator.

III – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pela ré.
Macau, 11 de Novembro de 2008.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai – Chu Kin
1 Neste sentido, AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil,Coimbra, Almedina, 8.ª edição, 2008, p. 155 e 156 e LEBRE DE FREITAS e RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume 3.º, 2003, p. 37.
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Processo n.º 37/2008