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Processo nº 200/2020(II) Data: 18.06.2021
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Arguição de nulidade.
Omissão de pronúncia.
Má fé processual.
Multa.



SUMÁRIO

1. Existe litigância de má-fé quando um sujeito processual, agindo a título de dolo ou negligência grave, tenha no processo, um comportamento desenvolvido com o intuito de prejudicar a outra parte ou para perverter o normal prosseguimento dos autos.

A condenação de uma parte como litigante de má fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando o respeito pelos Tribunais, a moralização da actividade judiciária e o prestígio da justiça.

2. Considerando-se que ocorreu um “uso abusivo do processo”, em desrespeito dos princípios da “cooperação”, da “boa fé processual” e da “recíproca correcção”, (cfr., art°s 8°, 9°, e 10° do C.P.C.M.) – e mostrando-se de considerar também que a falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão que deve ser observada nos usos correntes da vida não deixa de integrar o conceito de “negligência grave” – impõe-se decisão de condenação do sujeito processual em questão por litigância de má fé na multa a que diz respeito o art. 385°, n.° 1 do C.P.C.M. e art. 101°, n.° 2 do R.C.T. aprovado pelo D.L. n.° 63/99/M de 25.10.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 200/2020(II)
(Autos de recurso civil e laboral)
(Incidente)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por acórdão de 24.02.2021 decidiu-se negar provimento ao recurso que B, (乙), com os restantes sinais dos autos, interpôs do aresto do Tribunal de Segunda Instância, datado de 18.06.2020, (Proc. n.° 708/2019), confirmando-se o decidido no âmbito do seu processo de divórcio litigioso com A (甲), recorrida; (cfr., fls. 553 a 573 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Notificado do dito veredicto, (e por expediente de 10.03.2021), veio o referido recorrente pedir o “esclarecimento” do decidido relativamente à (a) relevância de determinada matéria de facto considerada provada para efeitos da decisão quanto ao cônjuge culpado pelo divórcio, assim como quanto às (b) razões da decisão quanto a alimentos; (cfr., fls. 578 a 581-v).

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Através de acórdão prolatado em 21.04.2021, indeferiu-se o deduzido pedido de esclarecimento; (cfr., fls. 586 a 592).

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Ainda inconformado, (e em expediente datado de 06.05.2021), vem agora arguir a nulidade do (1°) acórdão prolatado em 24.02.2021 com o qual se negou provimento ao recurso a esta Instância trazido; (cfr., fls. 597 a 601).

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Adequadamente processados os autos, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

2. Com o expediente apresentado requer-se:
- o suprimento de uma alegada nulidade; e, subsidiariamente,
- a declaração de nulidade do referido (1°) acórdão proferido em 24.02.2021; (cfr., fls. 597 a 601).

Entende o recorrente que se incorreu na dita “nulidade” por falta de pronúncia “relativamente aos pedidos 1), 2) e 3) constantes das alegações de recurso de fls. 499 a 523 dos autos”; (cfr., fls. 601).

Resulta do teor do expediente apresentado que o dito recorrente reconhece que “nos termos do art. 571.° n.° 1 al. d) do Cód. Proc. Civil, é nula a sentença: quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”; (cfr., fls. 597-v).

E, assim sendo, cabe consignar que nenhuma nulidade existe, pois que não deixou esta Instância de se pronunciar (expressamente), “relativamente aos pedidos 1), 2) e 3)…”.

Como – exactamente sobre estes “pedidos” – se consignou no dito (1°) acórdão de 24.02.2021:

“(…)
E passando-se então à apreciação das “questões” trazidas à apreciação desta Instância, vejamos.
Das suas – longas – alegações e conclusões de recurso que, como se sabe, delimitam o seu objecto, (e que, no caso, infelizmente, não se apresentam tão claras quanto seria desejável), colhe-se que o ora recorrente volta a colocar as mesmas questões antes já colocadas ao Tribunal de Segunda Instância, insistindo nos mesmos “vícios” que assaca à “decisão da matéria de facto” e de “direito”.
–– Em relação à “decisão da matéria de facto”, ponderando no que – de relevante – vem alegado e concluído, e em síntese que se nos mostra adequada, constata-se que o R., ora recorrente, mantém o seu inconformismo em relação à resposta dada aos “quesitos 3°, 11° e 14°”, considerando que “devem ser apreciados de novo”; (cfr., v.g., conclusões 1ª a 18ª).
Sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento que se possa ter sobre esta questão, (o certo é que) labora o ora recorrente em – manifesto – equívoco.
A resposta pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base dada aos referidos quesitos não merece o mais pequeno reparo.
Com efeito, e como se consignou na respectiva “fundamentação” – que não obstante, sintética, se apresenta completa, lógica e (absolutamente) inteligível, (cfr., fls. 386-v a 387) – a decisão do dito Colectivo assentou na análise global e cruzada efectuada aos documentos juntos aos autos e ao teor dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, tendo-se esclarecido (expressamente) a razão da preferência dada ao teor dos depoimentos das testemunhas pela A. arroladas em termos perfeitamente razoáveis e aceitáveis, (invocando-se, nomeadamente, a sua qualidade de seus “filhos” e “amigos”, e assim, com conhecimento pessoal e directo dos factos sobre os quais depuseram), nenhuma razão assistindo ao R. ora recorrente na questão em apreciação, pois que os elementos probatórios em causa foram objecto da “livre apreciação” (e convicção) do Tribunal, sem o mínimo desrespeito a qualquer regra de direito probatório, (cfr., v.g., o art. 558° do C.P.C.M.), mostrando-se de consignar também que o pelo R. invocado “relatório” pelo Instituto de Acção Social elaborado e junto aos autos não constitui elemento probatório ao qual estivesse o Tribunal “vinculado” dado não se tratar de nenhum “documento autêntico”, com “força probatória plena”; (cfr., v.g., Viriato Lima in, “Manual de Direito Processual Civil”, 3ª edição especial, 2018, pág. 411 e segs.)”; (cfr., fls. 6 a 8 do referido acórdão de 24.02.2021, que se voltou a transcrever, na íntegra, no acórdão de 24.04.2021, onde se indeferiu o anterior pedido de esclarecimento).

Ora, pode-se – obviamente – não concordar com o que se deixou consignado.

Porém, (e em face do seu teor), considerar, mesmo assim, que se incorreu em “omissão de pronúncia” é, (no mínimo), não querer ver o que se decidiu no aresto em questão, mais não se mostrando de dizer por, absoluta, ociosidade.

3. Aqui chegados, cumpre apreciar – e não omitir pronúncia sobre – o “pedido de condenação por litigância de má fé do requerente” que a ora requerida deduziu em sede de resposta ao expediente que se deixou apreciado; (cfr., fls. 604).

Pois bem, nos termos do art. 385° do C.P.C.M.:

“1. Tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa.
2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé”.

Nas palavras de Rodrigues Bastos, “A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266.º e 266º-A. Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má-fé”; (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. II, 3ª Edição, pág. 221 e 222, podendo-se, sobre o tema, ver também A. dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 262 e segs.; J. L. Freitas e Isabel Alexandre in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 457 ; Menezes Cordeiro, in “Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo”, pág. 26 e segs.; e A. S. Abrantes Geraldes, P. Pimenta e L. F. Pires de Sousa in, “C.P.C. Anotado”, Vol. I, pág. 593)

Existe assim litigância de má-fé, quando um sujeito processual, agindo a título de dolo ou negligência grave, tenha no processo, um comportamento desenvolvido com o intuito de prejudicar a outra parte ou para perverter o normal prosseguimento dos autos.

Mostra-se de considerar também que na verificação de tal má-fé, importa proceder com cautela, já que há que reconhecer o direito a qualquer sujeito processual de pugnar pela solução jurídica que, na sua perspectiva, se lhe parece a mais adequada ao caso, isto, obviamente, com excepção dos casos em que se demonstra de forma clara e inequívoca a intenção de pretender prejudicar a outra parte ou perturbar o normal prosseguimento dos autos.

Ponderando sobre a “situação dos autos”, cremos que a conduta do ora requerente integra a referida má fé, pois que, (na pior das hipóteses), só com negligência grave poderá ter feito o pedido agora em questão, já que, como se viu, e cremos que sem esforço se colhe do que se deixou consignado, não deixou este Tribunal de se pronunciar sobre todo o objecto do recurso, nomeadamente, sobre a referidos “pontos” que, nas respectivas “conclusões” correspondiam, exactamente, às enumeradas com os “n°s 1° a 18°”, cabendo notar que (muito) infeliz se apresenta a referida conduta, até porque o anterior “pedido de esclarecimento” apresentado pressupunha, necessariamente, uma análise ao teor do acórdão em questão, justificável não se apresentando o pedido agora feito, que se mostra, assim, “sem qualquer fundamento”, o que não podia ser ignorado, do mesmo resultando, também, o “protelamento do trânsito em julgado” da decisão em questão, impondo-se-nos, desta forma, a conclusão a que se chegou.

Na verdade, a condenação de uma parte como litigante de má fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando o respeito pelos Tribunais, a moralização da actividade judiciária e o prestígio da justiça.

Emergente dos princípios da “cooperação”, da “boa fé processual” e da “recíproca correcção”, (cfr., art°s 8°, 9°, e 10° do C.P.C.M.), a figura da má fé processual pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, ponha em causa tais princípios, que a eles tem subjacente a boa administração da Justiça.

Em conformidade com o exposto, considerando-se que no âmbito dos presentes autos de recurso ocorreu um uso abusivo do processo, em desrespeito dos aludidos princípios, mostrando-se-nos de considerar também que a falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida não deixa de integrar o conceito de negligência grave, e observado que foi o contraditório, vai o requerente/recorrente condenado por litigância de má fé na multa de 20 UCs; (cfr., art. 385°, n.° 1 do C.P.C.M. e art. 101°, n.° 2 do R.C.T. aprovado pelo D.L. n.° 63/99/M de 25.10).

Considerando-se igualmente verificada a circunstância a que diz respeito o art. 388° do C.P.C.M., cabe também decidir em conformidade.

Decisão

4. Nos termos que se deixam expendidos, em conferência, acordam
- indeferir a arguida nulidade;
- condenando-se o arguente como litigante de má fé na multa de 20 UCs e nas respectivas custas com taxa de justiça de 5 UCs.

Notifique e comunique em conformidade à Associação dos Advogados de Macau.

Macau, aos 18 de Junho de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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