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Processo nº 22/2021 Data: 07.07.2021
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Insolvência.
Efeitos (da sua declaração sobre os negócios celebrados).
Contrato-promessa de constituição da hipoteca.
Execução específica.



SUMÁRIO

1. O “processo falimentar” – cujos princípios aplicam-se ao processo de “insolvência” – tem, essencialmente, duas finalidades: a “recuperação da empresa” e/ou a “protecção dos seus credores”, (sistemas jurídicos havendo que, consoante os tempos, adoptam, de forma mais ou menos acentuada, um, ou outro, “modelo”).

2. Um dos “primeiros efeitos” (patrimoniais) da declaração de “insolvência” é a apreensão judicial dos bens visando duas finalidades distintas: a sua “preservação”, (“estabilização”), e subsequente “venda”, com a participação de todos os credores no processo sujeitos a um tratamento igualitário segundo a “qualidade” dos seus direitos.

3. Estando a R. declarada em “estado de insolvência”, (por sentença já transitada em julgado quando o próprio pedido do ora recorrente é deduzido), motivos não existem para se não aplicar o que por Lei está estatuído e deve suceder a todo e qualquer seu alegado credor, ou seja, o de ter de “reclamar” o crédito que alega ter, (sobre a recorrida, insolvente), em sede de “liquidação em benefício dos credores”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 22/2021
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), propôs acção declarativa contra B (乙), pedindo que fosse:

“a) ordenada, através de sentença que produza os efeitos da declaração negocial em falta do Réu, a execução específica do contrato-promessa de constituição da hipoteca sobre:
i) O prédio situado em Macau, na [Rua] n.° 42, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° XXXX; e
ii) O prédio situado em Macau, na [Rua] n.° 54, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° XXXX”.

Subsidiariamente, pediu que fosse:

“b) a Ré condenada a reembolsar ao Autor o montante de débito no valor de HKD$26.000.000,00 (MOP26,832,000.00) garantido pelo contrato-promessa de 29/11/2018”; (cfr., fls. 2 a 5 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, conclusos os autos ao Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base, proferiu o mesmo a seguinte decisão:

“O A. pede a execução específica de um contrato de promessa de hipoteca e subsidiariamente o reembolso ao A. do montante de HKD$26.000.000,00 em que a insolvente é devedora.
O efeito da execução específica de um contrato de promessa consiste em obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso se não oponha a natureza da obrigação assumida (cfr. o disposto do n.° 1 do artigo 820.° do CCM).
Nos presentes autos, a parte contrária foi declarada insolvente (cfr. sentença nos autos principais de insolvência).
Nos termos do artigo 1095.° n.° 1 ex vi artigo 1187.°, todos do CPCM, a declaração da insolvência produz a inibição da insolvente para administrar e dispor dos seus bens presentes ou futuros os quais passam a integrar à massa falida.
Os bens que o A. pretende fazer valer a execução específica do contrato de promessa de hipoteca encontram-se integrados na massa falida.
Como se vê, uma vez declarada insolvente, à insolvente lhe é inibido administrar e dispor dos seus bens, por outro lado, os referidos bens já integraram à massa falida, evidentemente a pretensão do A. não pode proceder.
Quanto ao pedido subsidiário, também não é a presente acção o meio adequado para a sua efectivação,
Se o A. afirme que é credor da insolvente, deve lançar mão ao instituto de reclamação de créditos estipulado no n.° 1 do artigo 1140.° do CPC.
Nestes termos, indefere-se liminarmente o pedido do A. nos termos do artigo 394.° n.° 1 al d) do CPC.
Custas pelo A.
Notifique.
(…)”; (cfr., fls. 66 a 66-v).

*

Do decidido recorreu o A. imputando à decisão recorrida “errada aplicação do direito” e “nulidade processual por inobservância do estatuído art. 6°, n.° 1 do C.P.C.M.”; (cfr., fls. 92 a 97).

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Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 15.10.2020, (Proc. n.° 728/2020), confirmou-se a decisão do Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 116 a 120-v).

*

Ainda inconformado, traz o dito A. o presente recurso, onde, nas suas alegações, produz as conclusões seguintes:

“a) No acórdão recorrido o TSI manteve a decisão do Tribunal Judicial de Base que indeferiu os pedidos principais e subsidiárl formulados pelo ora Recorrente.
b) O TJB considerou que nos termos do art.° 1095.°, n.° 1 ex vi art.° 1187.° do CPC, a declaração de insolvência produz a inibição da insolvente para administrar e dispor dos seus bens presentes ou futuros os quais passam a integrar a massa falida.
c) O TJB também entendeu que os bens sobre os quais o ora Recorrente pretende fazer valer a execução especifica do contrato-promessa de hipoteca encontram-se integrados na massa falida.
d) Entendeu-se no acórdão recorrido que o Recorrente pretendeu convencer o TSI de que a promessa de constituir hipoteca, assumida pela falida, podia ser cumprida pelo administrador da falência, ao abrigo do disposto no art.° 1109°/3 do CPC, mediante o recurso à analogia ou à interpretação enunciativa baseada no argumento a maiori ad minus do mesmo normativo.
e) O argumentum a maiori ad minus é um argumento lógico, doutrinariamente admitido no processo de interpretação de uma norma, para além do seu elemento literal e do apuramento do seu sentido, no desenvolvimento desse mesmo sentido.
f) O Recorrente não pretendeu, nem pretende, que seja feita uma interpretação, designadamente extensiva, do disposto no n.° 3 do art.° 1109.° do CC, nem apelou à determinação do sentido desta norma jurídica, dentro do quadro fixado no art.° 8.° do CC.
g) Diferentemente, o Recorrente defendeu, como continua a defender, que, não tendo o legislador previsto a situação da promessa de hipoteca ainda por cumprir, caberá integrar tal lacuna mediante o disposto no art.° 1109.°, n.° 3, do CC tirado por analogia, a qual é admitida por força do disposto no art.° 9.° deste diploma legal.
h) É, portanto, irrelevante a consideração feita no acórdão recorrido à circunstância de que a constituição de hipoteca é qualitativamente diversa da compra e venda e não quantitativamente diversa.
i) O TSI entendeu que o cumprimento de uma promessa de constituição uma hipoteca não constitui uma situação análoga à prevista no art.° 1109.°, n.° 3, do CPC.
j) O TSI interpreta o art.° 1109.°, n.° 3, do CPC na óptica do benefício ou vantagem para a massa falida do cumprimento de um contrato de compra e venda ainda não cumprido.
k) O TSI reconhece logo de seguida que no caso da promessa de hipoteca não há um prejuízo para a massa falida pois o cumprimento dessa promessa não implica a diminuição da massa falida.
l) A consequência lógica deste raciocínio seria a decisão sobre a aplicação analógica do disposto no art.° 1109.°, n.° 3, do CPC à situação decorrente de um contrato promessa de hipoteca não cumprido, pois não deixamos de estar perante um contrato sinalagmático e do seu cumprimento não resulta um prejuízo para a massa falida.
m) Mas o TSI afasta-se da aplicação analógica com o argumento de que no caso tal configuraria um privilégio do beneficiário da promessa de hipoteca em relação aos credores comuns que não beneficiarem de garantia especial.
n) Precisamente porque a promessa de hipoteca não cumprida pela falida constitui uma situação da mesma natureza de uma promessa de venda não cumprida, sendo ambas situações susceptíveis de não prejudicarem a massa falida, não pode ser o critério do benefício do credor hipotecante em relação aos credores comuns a afastar a analogia.
o) No caso da compra e venda não cumprida, a solução prevista no n.° 3 do art.° 1109.° do CPC não deixa de representar uma solução em que o credor da promessa de venda é beneficiado em relação aos credores comuns e tal não impediu o legislador de prever esta situação particular.
p) A aplicação analógica de uma norma jurídica (analogia iuris) deve ser feita considerando situações da mesma natureza, sendo necessário que haja igualdade jurídica entre o caso regulado e o caso a regular e na sua aplicação o intérprete não pode num caso dar relevância jurídica ao eventual prejuízo para a massa falida e noutro relevar o prejuízo para os credores comuns, porque tal representa uma distorção do conceito da analogia.
q) O acórdão recorrido manteve a decisão de indeferimento liminar do pedido subsidiário com o argumento de que o reembolso do débito da falida ao Recorrente representaria um acto dispositivo que implica a diminuição da massa falida.
r) Este entendimento não pode proceder, pois da situação prevista no art.° 1109.°, n.° 3, do CPC, representa precisamente um acto dispositivo que implica a diminuição da massa falida.
s) Daí que o pedido subsidiário formulado pelo Recorrente era processualmente viável, por via da aplicação analógica da segunda parte do n.° 3 do art.° 1109.° do CPC à promessa de hipoteca, pois configura um pedido indemnizatório pelos danos sofridos com a eventual resolução do contrato-promessa.
t) A promessa de hipoteca feita pela falida não se encerra em nenhuma das situações previstas no art.° 1104.° do CPC, pelo que não estamos, sequer, perante um acto resolúvel em benefício da massa falida, em que, eventualmente, se fundasse o entendimento da inviabilidade da acção de execução específica.
u) A decisão recorrida faz uma errada aplicação do disposto no art.° 394.°, n.° 1, alínea d), do CPC.
v) O Tribunal recorrido fez, ainda, uma errada interpretação e aplicação das normas do processo falimentar ao caso concreto.
w) A acção deveria ter sido considerada viável aplicando-se o disposto no art. ° 1095.°, n.° 3, do CPC e, por analogia, a previsão da segunda parte do n.° 3 do art.° 1109.° do CPC.
x) Ao não proferir despacho de aperfeiçoamento no sentido do suprimento da falta de capacidade judiciária da falida, ao abrigo do art.° 413.°, alínea c), e do art.° 427.°, n.° 1, alínea a), ambos do CPC, o que deveria ter feito ao abrigo do poder de direcção previsto no art.° 6.°, n.° 1, do CPC., o TJB omitiu um poder/dever, o que constitui nulidade processual nos termos do art.° 147.°, n.° 1 do CPC, por preterição de acto vinculado.
y) Nulidade processual que o acórdão recorrido manteve ao não revogar a decisão proferida pelo TJB”; (cfr., fls. 129 a 136).

*

Sem resposta, vieram os autos a esta Instância.

Cumpre decidir.

Fundamentação

2. Como resulta do até aqui relatado, tem o presente recurso como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a decisão de “indeferimento liminar” pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base proferida.

Das transcritas conclusões do recurso, constata-se que – em bom rigor, e em síntese que se nos mostra adequada – apenas duas são as questões (agora) colocadas.

Exactamente, as antes já suscitadas perante o Tribunal de Segunda Instância, e que, (como se colhe das transcritas conclusões de recurso), vem identificadas como: “errada aplicação do direito” e de “nulidade”.

Vejamos.

Confirmando o entendimento pelo Tribunal Judicial de Base assumido (e que igualmente se deixou transcrito), assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância (na parte que agora interessa):

“(…)
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Em face das conclusões tecidas na petição do recurso, a única questão que constitui o objecto da nossa apreciação consiste em saber se, em vez de indeferir liminarmente a acção, o Tribunal a quo deve proferir um despacho de aperfeiçoamento convidando o Autor para suprir a ilegitimidade passiva passando a intentar a acção contra o administrador de falência, pois, na sua óptica, face ao disposto no artº 1109º/3 do CPC, se o legislador previu a solução para a eventualidade de acto dispositivo a praticar pelo administrador da falência de coisa propriedade do falido que passou a integrar a massa falida, parece evidente que no caso de oneração de coisa propriedade do falido ……não pode resultar solução de maior gravame para o credor. E na esteira desse raciocínio, deve ser citado para esta acção o administrador da falência, a quem cabe a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência nos termos do disposto no artº 1095º/3 do CPC, a fim de este fazer a opção pelo cumprimento da promessa de constituir hipoteca, com a eventual autorização do M. P., nos termos permitidos no artº 1109º/3 do CPC.
A questão nestes termos colocada pode e deve analisada a montante e a jusante.
A montante, há que averiguar se o administrador pode, tal como defende o recorrente, optar pelo cumprimento da promessa de onerar os dois imóveis da ora falida B, já integrados na massa falida por efeito da declaração da sua falência, ao abrigo do disposto no invocado artº 1109º/3 do CPC.
E a jusante, em caso afirmativo, se o Tribunal a quo deve convidar o Autor, ora recorrente, para suprir a ilegitimidade passiva da ora falida.
Então vejamos.
Ao que parece, o ora recorrente pretende convencer este Tribunal de recurso de que a promessa de constituir hipoteca, assumida pela falida, pode ser cumprida pelo administrador da falência, ao abrigo do disposto no artº 1109º/3 do CPC, mediante o recurso à aplicação analógica ou a interpretação enunciativa baseada no argumento a maiori ad minus do mesmo normativo.
E na esteira desse entendimento, o administrador da falência deve ser citado para a presente acção da execução específica.
O artº 1109º do CPC encontra-se localizado na subsecção II da secção IV dedicada aos efeitos em relação aos negócios jurídicos do falido, do Capítulo III do Título XII do Livro V do CPC que visa regular os processos especiais.
E tem a seguinte redacção:
Artigo 1109.º
(Compra e venda ainda não cumprida)
1. Na compra e venda em que o falido seja comprador e em que não haja ainda total cumprimento do contrato por ambas as partes à data da declaração da falência, tem o vendedor a faculdade de realizar ou completar a sua prestação, sujeitando-se ao recebimento do preço segundo as forças da massa falida.
2. Se o vendedor não exercer a faculdade prevista no número anterior, mantém-se suspenso o cumprimento do contrato até que o administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, declare querer cumpri-lo, mantendo todas as obrigações do comprador, ou resolvê-lo, liberando a massa falida dessas obrigações; o vendedor pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da falência para este exercer a sua opção, findo o qual o contrato se considera resolvido.
3. O contrato de compra e venda não se extingue se o vendedor for o falido e a propriedade da coisa se tiver já transmitido à data da declaração da falência; no caso contrário, cabe ao administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, optar pelo cumprimento do contrato ou pela resolução dele, ficando salvo ao comprador o direito a reclamar da massa falida a indemnização pelos danos sofridos.
Foquemos apenas a nossa atenção no seu nº 3, invocado pelo ora recorrente, para sustentar a sua tese.
Tal como a própria epígrafe indica, o artº 1109º do CPC visa regular a compra e venda ainda não cumprida.
Pela letra da lei, o contrato-promessa de constituição da hipoteca não deve ser considerado abrangido no âmbito da sua aplicação.
Nos termos do disposto no artº 9º/1 do CC, os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
Então vamos averiguar se as situações directamente contempladas pelo artº 1109º/3 do CPC são análogas ou não ao contrato-promessa de constituição da hipoteca.
As situações contempladas no artº 1109º/3 do CPC reportam-se a à compra e venda.
Trata-se de contratos sinalagmáticos ou bilaterais, que impõem obrigações recíprocas a ambas as partes contraentes.
Não obstante a sua natureza real quoad effectum, do contrato de compra e venda resulta os efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço.
Assim, no caso de ser vendedor o falido, a opção pelo cumprimento do contrato pode ser vantajosa e beneficiante da massa falida (imagina-se a venda a um bom preço, e. g. bem superior ao do mercado), cremos, é por isso, que o nosso legislador permite, algo excepcionalmente, a saída de bens já integrados na massa falida com a declaração da falência.
Todavia, o que já não sucede com o eventual cumprimento de uma promessa de constituir hipoteca sobre determinados bens já integrados na massa falida, pois não obstante não implique a diminuição da massa falida, a constituição da hipoteca coloca o beneficiário da promessa em lugar privilegiado em relação aos credores comuns que não beneficiarem da garantia especial.
Não se vendo razões justificativas desse privilégio na satisfação dos seus interesses na futura graduação dos créditos, é de concluir que o cumprimento de uma promessa de constituir hipoteca sobre bens integrados na massa falida não é análogo às situações contempladas no artº 1109º/3 do CPC.
Quanto ao argumento a maiori ad minus, é de rejeitar uma vez que, conforme acabamos de ver supra, o cumprimento do contrato de compra e venda de bens integrados na massa falida e o cumprimento da promessa de constituição de hipoteca sobre o mesmo tipo de bens são qualitativamente diversos e não quantitativamente diversos.
O que de per si já demonstra a impertinência do argumento a maiori ad minus.
Finalmente, no que diz respeito ao indeferimento liminar do pedido subsidiário de condenação da falida a reembolsar ao Autor o montante de débito no valor de HKD$26.000.000,00, é de manter a decisão recorrida, uma vez que constituindo o pretendido reembolso sempre um acto de disposição que implica necessariamente diminuição da massa falida, a tal pretensão é manifestamente improcedente.
Face ao exposto, torna-se uma questão falsa o despacho de aperfeiçoamento, peticionado em sede do presente recurso.
(…)”; (cfr., fls. 118 a 120).

Quid iuris?

Antes de mais, e como “nota preliminar”, vale a pena consignar que os presentes autos se iniciaram com a petição inicial pelo A., ora recorrente, apresentada no Tribunal Judicial de Base, onde, alegando, essencialmente, que tinha concedido à R., (ora recorrida), um empréstimo no valor total de HKD$46.000.000,00, e que, por falta de capital suficiente por parte da R. para o seu reembolso, celebraram, para garantia do pagamento da quantia de HKD$26.000.000,00, um “contrato-promessa de constituição de hipoteca” sobre os (2) imóveis (da R.), em relação aos quais pediu fosse ordenada a (atrás referida) “execução específica”.

Acautelando a improcedência do assim pretendido, pediu, subsidiariamente, a condenação da R. no pagamento do referido montante de HKD$26.000.000,00 (alegadamente garantido pelo dito “contrato-promessa”); (cfr., fls. 2 a 5).

E, como se viu, sobre o assim alegado e peticionado proferiu o Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base a decisão – de indeferimento liminar – que se deixou transcrita, e que, por sua vez, foi confirmada pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, (nos termos que, na parte em questão, se deixou igualmente transcrita).

Ora, da análise e reflexão que sobre o decidido pudemos efectuar, temos para nós que não se pode reconhecer razão ao ora recorrente.

–– Vejamos, começando-se pela primeira “questão”, ou seja, pela imputada “errada aplicação do direito”.

Sob a epígrafe de “noção de insolvência”, prescreve o art. 1185°, n.° 1 do C.P.C.M. que, “O devedor que não seja empresário comercial pode ser declarado em estado de insolvência quando o activo do seu património seja inferior ao passivo”.

No caso, (e como se viu), a R., (ora recorrida), foi declarada em “estado de insolvência” por sentença transitada em julgado, datada de 03.10.2019, proferida nos Autos de Insolvência n.° CV1-19-0002-CFI que correu os seus termos no Tribunal Judicial de Base; (cfr., certidão de fls. 78 e segs. pelo recorrente junta aos autos).

Nesta conformidade, sendo que à “insolvência” são aplicáveis as disposições relativas à “falência” – neste sentido, cfr., o art. 1187° do dito C.P.C.M., (com “excepções”, para a situação dos autos irrelevantes) – sendo também de se ter presente que nos termos do art. 1095°, n.° 1, do aludido código, “A declaração da falência produz a inibição do falido para administrar e dispor dos seus bens presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida”, e que estatui ainda o n.° 3 deste mesmo preceito legal que “O administrador da falência assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência”, esclarecida (cremos que) fica a “solução” – da necessária improcedência do presente recurso – que atrás se deixou apresentada, (não se deixando de referir que pouco compreensível se nos apresenta até que a “acção declarativa de condenação” pelo ora recorrente proposta contra a ora recorrida no Tribunal Judicial de Base com os aludidos “pedidos” aí deduzidos o tenha sido “por apenso” aos “Autos de Insolvência” em que esta figurava como requerida, e em data posterior à sentença que a declarou insolvente…).

Passa-se a tentar explicitar o porque deste nosso ponto de vista.

Pois bem, mostra-se-nos que o “processo falimentar” – cujos princípios aplicam-se ao processo de “insolvência” – tem, (ou melhor, pode ter), essencialmente, duas finalidades: a “recuperação da empresa” e/ou a “protecção dos seus credores”, (sistemas jurídicos havendo que, consoante os tempos, adoptaram, de forma mais ou menos acentuada, um, ou outro, “modelo”).

Nos termos em que a matéria é tratada pelo ordenamento jurídico local, apresenta-se-nos de considerar que o modelo adoptado foi e continua a ser (essencialmente) o segundo.

Como já notava o Professor Alberto dos Reis:

“O processo de falência (…) tem a índole clara dum processo de execução para pagamento de quantia. Se cotejarmos os termos e actos essenciais da falência com os termos e actos essenciais da execução regulada nos arts. 811.° a 923.°, havemos de reconhecer que o paralelismo é perfeito. Num e noutro encontramos:
1.° A apreensão de bens;
2.° A reclamação e verificação de créditos;
3.° A venda de bens;
4.° O pagamento.
A diferença a assinalar é a seguinte: a execução propriamente dita tem o carácter duma liquidação singular e parcial; pelo contrário, a falência apresenta o cunho duma liquidação total e colectiva.
Quer dizer, ao passo que a execução é promovida em beneficio de um ou de alguns credores, a falência aproveita a todos os credores do falido; enquanto a execução só sacrifica parte do património do devedor, a falência importa em princípio o sacrifício de todos os bens do falido.
Pois que a falência tem a clara significação duma acção executiva universal e colectiva, há-de ter por base um título executivo. E aqui não vale qualquer título com força executiva; o único que lhe pode servir de assento, dentre os mencionados no art. 46.°, é a sentença.
Para que possa iniciar-se a liquidação total do património do comerciante, é absolutamente indispensável que o tribunal emita sentença que o declare em estado de falência (art. 1144.°)”; (in “Processos Especais”, Vo. II, pág. 312 e segs.).

Com efeito, e como igualmente observa Luís Carvalho Fernandes, (in “Efeitos substantivos da declaração de falência”, Revista “Direito e Justiça”, Vol. IX, 1995, Tomo 2, pág. 19 e segs.):

“A declaração de falência envolve a constituição de um estado pessoal do devedor insolvente, titular de empresa não recuperável ou que, não existindo empresa, não obteve a homologação prévia de uma concordata particular.
Há, assim, como que uma jurisdicionalização de uma situação de facto – a insolvência –, própria do devedor que, carenciado de meios patrimoniais e de crédito, está impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações”.

Na verdade, em causa está – quanto aos seus efeitos “patrimoniais” – a liquidação universal do património do falido, (no caso, do “insolvente”), e a satisfação, à sua custa, dos direitos dos seus credores.

Daí que – como um dos ditos “primeiros efeitos” (patrimoniais) – à referida “declaração” se siga a apreensão judicial dos bens, visando, duas finalidades distintas: a sua “preservação”, (também apelidada de “estabilização”), e subsequente “venda”, com a participação de todos os credores no processo, sujeitos, todos eles, a um tratamento igualitário, segundo a qualidade dos seus direitos.

Como prescreve o art. 599° do C.C.M.:

“1. Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.
2. São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção”.

Totalmente acertada se mostra assim a observação efectuada pelo Professor Alberto dos Reis no sentido de se tratar de uma “execução total e colectiva”, pois que, como igualmente nota Gonçalo Andrade e Castro, (in “Efeitos da declaração de insolvência sobre os créditos”):

“O Princípio geral de que se arranca neste domínio das consequências da declaração de insolvência sobre os credores é o da igualdade de tratamento de todos os credores, expresso na máxima da par conditio creditorum e genericamente acolhido no art.° 604.° do Código Civil, que logo salvaguarda, porém, a existência de causas legítimas de preferência. (…) o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores ou a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência. Ora, o processo de insolvência deverá dirigir-se à satisfação proporcional dos direitos de todos os credores, ressalvados aqueles que sejam titulares de direitos que gozam de prevalência sobre os demais ou que, pelo contrário, são objecto de um tratamento de desfavor.
(…)
A igualdade entre os credores supõe um processo único de execução universal do seu património e a constituição de uma massa insolvente, pelo que seria contraditório que se permitisse a prossecução de iniciativas executivas isoladas dos credores”; (in Revista “Direito e Justiça”, Vol. XIX, 2005, Tomo II, pág. 263 e segs.).

Na verdade, “O processo de insolvência visa a satisfação dos credores que, para poderem ser considerados como tal, têm, todavia, por regra, de reclamar os seus créditos, os quais, por sua vez, são necessariamente objecto de apreciação pelo administração. A partir daqui abre-se oportunidade para quem, tendo legitimidade, entenda questionar as relações de créditos apresentadas pelo administrador da insolvência, ainda que ninguém o chegue a fazer.
A final, haverá sempre a prolação da sentença que hierarquiza os créditos e, consequentemente, determina a ordem por que serão atendidos em caso de distribuição do produto da massa insolvente.
As restantes fases são de verificação eventual, dependendo da efectiva dedução de impugnações e, sucessivamente, das vicissitudes que originem.
Tudo se organiza, no entanto, em termos de optimizar as hipóteses de os credores verem satisfeitas as suas pretensões, na melhor medida possível, o que, precisamente, passa por lhes conferir a possibilidade de lutarem pela defesa do seu crédito, quer, sendo o caso, na perspectiva do seu reconhecimento pleno, quer na de oposição ao que entendam poder prejudicá-lo.
Por assim ser, é dada aos credores a possibilidade de atacar a lista de créditos reconhecidos, tanto com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, como, sendo os casos, na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos (…)”; (cfr., v.g, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda in, “A reclamação, verificação e graduação de créditos em processo de insolvência – Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 1246/06.3TBPTM-H.S1, de 19 de Novembro de 2009”, Revista “O Direito”, n.° 143, 2011, Tomo V, pág. 1147 a 1167).

Feitas estas considerações, e, (para começar), no que toca ao “pedido subsidiário”, onde se pretende que seja a R. condenada a reembolsar ao A. o (montante do débito no) valor de HKD$26.000.000,00 garantido pelo alegado “contrato-promessa de hipoteca”, evidente se apresenta a sua solução.

Na verdade, estando a R. declarada em “estado de insolvência”, (por sentença já transitada em julgado quando o próprio pedido do ora recorrente é deduzido), motivos cremos que não existem para se não aplicar o que por Lei está estatuído e deve assim suceder a todo e qualquer seu alegado credor, ou seja, o de ter de “reclamar” o crédito que alega ter (sobre a recorrida, insolvente), nos termos – especialmente – previstos para o “processo de falência”, (por aplicação do referido art. 1187° do C.P.C.M., e, desta forma), em sede de “liquidação em benefício dos credores”, matéria regulada no art. 1043° e segs. do mesmo C.P.C.M..

Com efeito, natural nos parece de concluir que a acção em questão relativamente ao dito “pedido subsidiário” de condenação se apresenta como um meio, processualmente “impróprio”, (ou assim não sendo, “supervenientemente inútil”, pois que se só serão pagos os créditos verificados no próprio processo de insolvência, de nada servirá o prosseguimento da dita acção); (cabendo aqui notar que no art. 128°, n.° 5 do “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” português aprovado pelo DL n.° 84/2019, de 28/06, se prescreve, expressamente, que “A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”; podendo-se, sobre o tema ver, v.g., Artur D. Oliveira in, “Os efeitos externos da insolvência – As acções pendentes contra o insolvente”, Revista “Julgar”, n.° 9, 2009, pág. 173 e segs.).

Como considera Abrantes Geraldes, (in “Efeitos Externos dos Processos de Recuperação de Empresas e de Falência”):

“Os processos de natureza falimentar têm uma vocação universalista, no sentido de induzirem a intervenção de todos os interessados [entre os quais ocupam um lugar cimeiro os credores], quer para se discutir e aprovar uma qualquer medida de recuperação de empresa, quer para se apreciarem os fundamentos de que depende a declaração da falência e o consequente apuramento do passivo e liquidação do activo” e que “A vocação universalista de qualquer destes processos [de falência e de recuperação da empresa] constitui a principal característica distintiva relativamente aos processos comuns declarativos ou executivos em que, ao invés, predomina a legitimidade activa singular, em que cada interessado busca a tutela dos respectivos interesses sem que aí se cuide das consequências que podem emergir da condenação do devedor ou da execução do respectivo património e em que o processo tem como objectivo fundamental a tutela desse interesse exclusivo”; (no mesmo sentido de que “O tratamento paritário dos credores é o principal objectivo do processo falimentar”, vd., v.g., F. U. Coelho in, “Curso de Direito Comercial”).

Assim, e claro se nos apresentando o que se deixou exposto, continuemos, apenas para se fazer umas (ainda que) breves referências ao “pedido principal”, ou seja, em relação à pretendida “execução específica”.

Pois bem, como cremos que é adquirido, a “execução específica” de uma obrigação é a “realização forçada por intervenção judicial” da prestação debitória que o devedor não executou voluntariamente através da prolação de uma sentença que produza os efeitos da declaração negocial em falta; (cfr., v.g., Manuel Trigo in, “Lições de Direito das Obrigações”, pág. 51 e 150 e segs.).

Por sua vez, importa atentar que o credor pode recorrer à “execução específica” se a obrigação tiver por objecto a “entrega de uma coisa determinada”, supondo-se que, não tendo sido a obrigação voluntariamente cumprida, o seu cumprimento ainda seja possível e mantenha interesse para o credor.

Com efeito, como, saliente-se, para o “contrato-promessa de compra e venda” prescreve o art. 820° do C.C.M.:

“1. Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso se não oponha a natureza da obrigação assumida.
2. Para efeitos do número anterior, a simples existência de sinal prestado no contrato-promessa, ou a fixação de pena para o caso do não cumprimento deste, não é entendida como convenção em contrário e, ainda que tenha havido convenção em contrário, o promitente-adquirente, relativamente a promessa de transmissão ou constituição onerosas de direito real sobre prédio ou fracção autónoma dele, goza do direito à execução específica, contanto que tenha havido a seu favor tradição da coisa objecto do contrato.
3. A requerimento do faltoso, a sentença que produza os efeitos da sua declaração negocial pode ordenar a modificação do contrato nos termos do artigo 431.º
4. Tratando-se de promessa, sujeita a execução específica, relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre prédio, ou fracção autónoma dele, sobre que recaia hipoteca, pode o promitente-adquirente, para o efeito de expurgação da hipoteca, requerer que a sentença referida no n.º 1 condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o montante do débito garantido, ou o valor nele correspondente à fracção objecto do contrato, e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até integral pagamento.
5. O disposto no número anterior só se aplica, porém, se:
a) A hipoteca tiver sido constituída posteriormente à celebração da promessa;
b) A hipoteca tiver sido constituída para garantia de um débito do promitente faltoso a terceiro, pelo qual o promitente-adquirente não seja corresponsável; e
c) A extinção da hipoteca não preceder a mencionada transmissão ou constituição, nem coincidir com esta.
6. Tratando-se de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal”.

“In casu”, em causa, e como vimos, está um alegado “contrato-promessa de hipoteca”.

E, como também se deixou explicitado – após a decisão de “indeferimento liminar” pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base proferida – invoca o ora recorrente a norma do art. 1109°, n.° 3 do C.P.C.M., cuja aplicação (analógica) reclama para a sua situação, tentando, assim, (justificar e) “viabilizar a sua pretensão”.

Ora, (sem embargo do muito respeito por entendimento diverso, e de se nos ser de reconhecer o esforço encetado na argumentação empreendida), muito não se mostra de aqui dizer para se demonstrar das razões da solução que atrás já se deixou adiantada.

Com efeito, prescreve este n.° 3 do art. 1109° que;

“O contrato de compra e venda não se extingue se o vendedor for o falido e a propriedade da coisa se tiver já transmitido à data da declaração da falência; no caso contrário, cabe ao administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, optar pelo cumprimento do contrato ou pela resolução dele, ficando salvo ao comprador o direito a reclamar da massa falida a indemnização pelos danos sofridos”.

E da leitura que fazemos do transcrito comando legal, não vislumbramos nenhuma possibilidade de o mesmo – e seja de que forma for, isto é, por “interpretação extensiva” ou por sua “aplicação analógica” – poder “servir a situação do ora recorrente”.

Com efeito, (e independentemente do demais), o dispositivo legal em questão, impedindo a “extinção do contrato” – como aí se refere, expressamente – tem aplicação (específica) em matéria de “contrato-promessa de compra e venda”, em que a “propriedade da coisa” seu objecto “se tiver já transmitido à data da falência” (ou insolvência), apresentando-se-nos, assim, e pelo menos, nesta parte, totalmente insusceptível de invocação para os presentes autos, (por em causa estar uma situação em nada “idêntica” ou “próxima” sequer).

Por sua vez, importa ter também presente que a pretendida “execução específica” é igualmente inviável por ser absolutamente contrária à ratio do próprio preceito.

Com efeito, se declarado está já o “estado de insolvência”, ao administrador cabendo a “representação do insolvente”, e, assim, cabendo-lhe – ainda que fosse, por hipótese, em relação ao dito contrato-promessa de hipoteca – “optar pelo cumprimento ou resolução”, e apenas “com a autorização do Ministério Público”, como pretender-se que se imponha a sua celebração através de uma sentença judicial?

Decididamente, não se vislumbra como…

–– Por fim, e aqui chegados, adequado se mostra tecer umas breves considerações sobre a igualmente imputada “nulidade”.

Justifica o recorrente a dita nulidade com a “inobservância do estatuído no art. 6°, n.° 1 do C.P.C.M.”.

Preceitua este preceito que:

“1. Incumbe ao juiz, sem prejuízo do ónus da iniciativa das partes, providenciar pelo andamento regular e célere do processo, ordenando as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusando o que for impertinente ou meramente dilatório.
2. O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que essa falta seja susceptível de suprimento, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, se estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.
3. Incumbe ao juiz realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

Comentando idêntico preceito dizem C. Pires e V. Lima que:

“(…)
2. De acordo com o n.° 1, cabe ao juiz providenciar pelo andamento regular e célere do processo, sem prejuízo do ónus da iniciativa das partes. A inovação do dever imposto ao juiz reside no dever de celeridade, tendo em atenção que a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter uma decisão em “prazo razoável” (art. 1.°, n.° 1).
Anteriormente, dispunha-se que “a iniciativa e o impulso processual incumbem às partes” (art. 264.°, n.° 1 do CPC de 1961). Agora acentua-se que o poder de direcção do processo a cargo do juiz não prejudica o ónus de iniciativa das partes. Atendendo a que a epígrafe do art. 3.° refere o princípio da iniciativa das partes, que não é mais do que o princípio do pedido, vertido no seu n." 1, segundo o qual o processo só se inicia por impulso da parte e nunca por iniciativa do juiz ou do Tribunal, parece que foi intenção do legislador abolir o chamado ónus do impulso processual, que alguma utilização indevida por parte de muitos juízes os levava a solicitar excessivamente do autor a remoção de obstáculos ao prosseguimento da acção. Deve, contudo, entender-se que aí onde a lei expressamente exija impulso à parte, não pode o juiz substituir-se a esta.
3. I. O n.° 2 constitui uma das inovações donde ressalta a preocupação do legislador na obtenção, sempre que possível, de uma decisão de mérito: o juiz deve oficiosamente providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que a falta seja sanável.
Como notam J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, “já anteriormente a lei previa a sanação da falta de alguns pressupostos processuais, como a capacidade judiciária (arts. 23.° a 25.°) e a legitimidade em casos de litisconsórcio necessário (art. 269.°). Mas agora, o que era excepção, dependendo de uma lei que expressamente o previsse, torna-se a regra, e a falta em geral dum pressuposto processual deixa de conduzir automaticamente à absolvição da instância, que só tem lugar quando o suprimento for impossível ou quando, dependendo ele da vontade da parte, esta se mantiver inactiva”.
(…)”; (in “C.P.C.M., Anotado e Comentado”, Vol. I, pág. 50 e 51).

Por sua vez, e referindo-se a idêntico preceito legal, considera Rui Pinto: “O procedimento é, assim, conduzido pelo juiz para o fito da justiça, e não por uma mera formalidade de actuação burocrática. O escopo da “justa composição em prazo razoável” é o santo e senha dos poderes de promoção oficiosa de diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção (incluindo o suprimento falta de pressupostos processuais) e de adopção de mecanismos de simplificação e agilização processual”; (in “C.P.C. Anotado”, Vol. I, 2018, pág. 67; podendo-se, sobre o tema, e com abundante doutrina, ver também José Igreja Matos in, “A gestão processual: um radical regresso às raízes”, Julgar, n.° 10, pág. 123 e segs.; Miguel Mesquita in, “Princípio da Gestão Processual o «Santo Graal» do Novo Processo Civil?”, R.L.J., Ano 145, Nov-Dez. 2015; e Vera Leal Ramos in, “O princípio da gestão processual: vertente formal e material do princípio”, F.D.U.C., 2017).

No caso dos autos, e em face do que se deixou exposto quanto aos motivos da “(manifesta) improcedência” do pelo recorrente peticionado, de forma alguma se mostra de considerar que cometida foi a assacada nulidade.

Dest’arte, e apreciadas que cremos ter ficado todas as questões colocadas, resta decidir como segue.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o recorrente as custas do presente recurso com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo de novo, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 07 de Julho de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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Proc. 22/2021 Pág. 13