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Processo n.º 110/2021
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrida: Associação dos Advogados de Macau
Data da conferência: 24 de Setembro de 2021
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai

Assuntos: - Pena disciplinar
- Intervenção judicial
- Proporcionalidade

SUMÁRIO
1. É a jurisprudência firme deste Tribunal de Ultima Instância que a aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
2. Nos casos em que a Administração actua no âmbito do poder discricionário, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos excepcionais acima referidas.
3. A intervenção do juiz fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo agente.
4. Há que pôr em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto administrativo restritivo ou limitativo e os bens e interesses individuais sacrificados por esse acto, para aferir da proporcionalidade da medida concretamente aplicada. E só no caso de considerar inaceitável e intolerável o sacrifício é que se deve concluir pela violação dos princípios orientadores do exercício de poderes discricionários, tais como da proporcionalidade, da razoabilidade e da justiça.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A Associação dos Advogados de Macau, melhor identificada nos autos, interpôs recurso contencioso da deliberação tomada pelo Conselho Superior da Advocacia (CSA) que decidiu condenar as advogadas estagiárias Drª.s B e A na pena disciplinar de “advertência”.
Por acórdão proferido em 11 de Março de 2021, o Tribunal de Segunda Instância julgou parcialmente procedente o recurso, anulando o acto impugnado, na parte referente à escolha da pena aplicada à A.
Inconformada com o acórdão, vem A recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. Os presentes autos resultam do recurso contencioso no qual a Recorrente (Direcção da AAM) não considera adequada a medida da pena aplicada, pelo que as contra-interessadas deveriam ser punidas com a pena imediatamente acima, de censura.
B. Está em causa neste recurso, no essencial, o princípio da separação de poderes e a manutenção da jurisprudência dos Tribunais Superiores da RAEM nessa matéria: o respeito pela discricionariedade dos órgãos administrativos, neste caso o respeito pelo juízo de censura e condenação do CSA.
C. O CSA, enquanto órgão único e independente com competência exclusiva para o exercício da jurisdição disciplinar sobre Advogados e Advogados-estagiários, não pode ver os tribunais sindicar as sanções por si aplicadas, sob pena de se violar a separação de poderes entre o poder jurisdicional e o poder administrativo, porquanto ao tribunal cabe somente apreciar da legalidade das deliberações.
D. As considerações de prevenção especial e geral são atinentes à infracção, não à culpa e qualquer eventual diferença de punição que se justificasse aplicar às visadas seria entre a pena de advertência e a pena imediatamente acima, de censura, pelo que estamos perante matéria de apreciação da medida da pena e a mera desadequação não é fundamento para a intervenção judicial.
E. A jurisprudência do TSI e do TUI é clara e inequívoca quanto a esta questão.
F. Já em relação à culpa e à prevenção geral e especial, ainda que estivesse em causa a graduação da pena, resulta do princípio da margem da liberdade que a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
G. A pena aplicada não é desadequada, quer em face dos factos praticados, quer em face do comportamento subsequente da ora recorrente, que de imediato aceitou o erro do seu acto, dirigiu-se à Direcção da AAM, colaborou com o CSA e o Senhor Instrutor e expressou de forma inequívoca o seu arrependimento.
H. A deliberação do CSA não padece de “erro grosseiro e manifesto”, nem constitui um “caso excepcional” caracterizado por “total desrazoabilidade” nos termos do art. 21.º, n.º 1, al. d), do CPAC, ou uma violação do princípio da proporcionalidade de tal forma grave que justificasse desconsiderar a discricionariedade do CSA e da Justiça Administrativa, atribuindo aos tribunais – pela via anulatória – uma competência indirecta de apreciação da graduação das penas aplicadas administrativamente.
I. Se a intenção do legislador fosse atribuir competências aos tribunais em matéria de graduação de penas a via jurisdicional não seria a de anulação. O CSA já formou a sua convicção, que reafirmou nos autos do recurso contencioso. Seriam inúteis as decisões judiciais que determinassem a anulação da decisão condenatória por discordância da medida da pena, uma vez que não poderiam impor a convicção judicial ao órgão administrativo.
J. No caso dos autos, o Acórdão do TSI não poderia impor ao CSA que aplicasse uma sanção distinta. Tratando-se de uma anulação em matéria de discricionariedade do órgão administrativo, e não de matéria vinculada, o Acórdão do TSI não poderia ser executado. Tal seria inconsistente com o espírito das normas do art. 7.º, n.º 4, bem como do art. 8.º, n.º 3, ambos do Código Civil.

Não contra-alegou a entidade recorrida.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, entendendo que deve ser concedido provimento ao recurso jurisdicional e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida.

2. Factos
Fica provada a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
As contra-interessadas B e A são advogadas estagiárias.
Por Acórdão de 24.10.2019, proferido no âmbito de processo disciplinar, foram as duas advogadas estagiárias condenadas pela entidade recorrida na pena disciplinar de advertência, pela prática dos seguintes factos:
- As Arguidas naquele processo disciplinar comum e aqui contra-interessadas são advogadas estagiárias.
- As contra-interessadas frequentavam as aulas do módulo de Direito Administrativo, da componente escolar do estágio.
- No dia 5 de Setembro de 2018, no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ) de Macau e com início às 09h30, teve lugar uma aula respeitante ao referido módulo.
- A segunda contra-interessada, Drª. A, estando atrasada na chegada ao CFJJ para frequentar a referida aula do módulo de Direito Administrativo, contactou através de telemóvel a primeira contra-interessada, Drª. B, pedindo-lhe que colocasse o seu nome no respectivo lugar da folha de presença.
- Acedendo ao pedido, a primeira contra-interessada, Dra. B, após assinar a própria presença na referida folha apôs, com o seu próprio punho, o nome da colega no respectivo lugar da mencionada folha de presença.
- Ao actuarem do modo descrito, as contra-interessadas, em conluio, procuraram enganar os responsáveis do CFJJ relativamente à presença atempada da participada Drª. A à referida aula.

3. Direito
Na tese da recorrente, sendo o CSA o órgão único e independente com competência exclusiva para o exercício da jurisdição disciplinar sobre Advogados e Advogados-estagiários, não podem os tribunais sindicar as sanções por si aplicadas, sob pena de se violar a separação de poderes entre o poder jurisdicional e o poder administrativo, porquanto ao tribunal cabe somente apreciar da legalidade das deliberações.
Ora, não é totalmente correcto afirmar que não podem os tribunais sindicar as sanções aplicadas pelo CSA, pois cabe ao tribunal apreciar a legalidade dos actos administrativos (art.º 20.º do CPAC), podendo ele intervir na apreciação sobre a crítica feita à actuação administrativa de desrespeito pelos princípios orientadores no exercício de poderes discricionários, para ver se as decisões administrativas violam a lei, com erro manifesto ou total desrazoabilidade (art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC).
É a jurisprudência firme deste Tribunal de Ultima Instância que a aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.1
Nos casos em que a Administração actua no âmbito do poder discricionário, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos excepcionais acima referidas.
Sendo entendimento uniforme e pacífico, este TUI tem também afirmado que “a intervenção dos tribunais na anulação de actos exercidos no exercício de poderes discricionários, com fundamento em violação de princípios como da proporcionalidade ou da justiça, só deve ter lugar naqueles casos flagrantes, evidentes, de violações intoleráveis destes princípios”.

No caso ora em apreciação, à recorrente foi aplicada pelo CSA a pena disciplinar de advertência, pela violação dos deveres deontológicos previstos nas disposições dos art.ºs 1.º n.ºs 1 e 3 e 14.º, al. a) do Código Deontológico dos Advogados, com referência ao art.º 2.º do Código Disciplinar dos Advogados e ao art.º 25.º n.º 4 do Regulamento de Acesso à Advocacia, porque, conforme a factualidade assente, estando atrasada na chegada ao CFJJ para frequentar uma aula, ela pediu à primeira contra-interessada, Drª. A, para colocar o seu nome no respectivo lugar da folha de presença, pedido este que foi acedido e satisfeito, tendo ambas procurado, em conluio, enganar os responsáveis do CFJJ relativamente à presença atempada da recorrente à referida aula.
No recurso interposto pela Associação dos Advogados de Macau, ao lado de manter a pena de advertência aplicada à primeira contra-interessada, decidiu o Tribunal de Segunda Instância anular a deliberação impugnada na parte respeitante à ora recorrente, por entender que “a violação do dever previsto no Código Deontológico pela mesma é gravosa, tendo com a sua conduta defraudado o Centro de Formação e, indirectamente, a Associação dos Advogados, deixando de zelar pelo prestígio da classe, daí que, …, a pena disciplinar de advertência é manifestamente leve e desproporcional, enfermando esta parte da deliberação de erro manifesto”.
Na óptica da recorrente, a pena aplicada não é desadequada, quer em face dos factos praticados, quer em face do comportamento subsequente da recorrente e a deliberação do CSA não padece de “erro grosseiro e manifesto”, nem constitui um “caso excepcional” caracterizado por “total desrazoabilidade” nos termos do art.º 21.º, n.º 1, al. d), do CPAC, ou uma violação do princípio da proporcionalidade.
A questão reside em saber se houve erro manifesto na aplicação da pena de advertência ou violação do princípio da proporcionalidade.
Ora, é indiscutível que, no que concerne à pena disciplinar, a sua aplicação, graduação e escolha da medida concreta cabem na discricionariedade da Administração.
Repetindo, só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável.
Daí que a intervenção do juiz fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo agente.
“No âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro.”2
No caso vertente, não se nos afigura existir erro manifesto ou grosseiro na aplicação da pena de advertência pelo CSA nem manifestamente desproporcional tal sanção disciplinar.
Na realidade, está em causa uma conduta isolada da recorrente, de solicitar à colega para marcar a sua presença na aula, não se constatando nos autos indícios que revelem a prática pela recorrente de outros actos violadores dos deveres deontológicos.
Compreende-se o entendimento do Tribunal recorrido que, comparando as condutas da 1.ª contra-interessada e da ora recorrente, considera leve e desproporcional da sanção aplicada à recorrente, uma vez que esta “agiu com dolo directo, e o grau de culpa é manifestamente mais intenso em relação ao da 1.ª contra-interessada, tendo em conta que foi a 2.ª quem ‘investigou’ a 1.ª a incorrer na prática da respectiva infracção disciplinar, ao passo que a culpa da 1.ª contra-interessada é relativamente reduzida, por ter sido ‘instigada’ a cometer a infracção”.
No entanto, nem por isso se deve considerar manifestamente desproporcional a pena de advertência aplicada à recorrente.
O princípio da proporcionalidade é definida como “um princípio geral de direito, …, conformador dos actos do poder público, …, de acordo com o qual a limitação instrumental de bens, interesses ou valores subjectivamente radicáveis se deve revelar idónea e necessária para atingir os fins legítimos concretos que cada um daqueles actos visam, bem como axiologicamente tolerável quando confrontada com esses fins”.3
E quanto ao cumprimento, ou não, do princípio da proporcionalidade previsto no n.º 2 do art.º 5.º do Código de Procedimento Administrativo, “há que pôr em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto administrativo restritivo ou limitativo e os bens e interesses individuais sacrificados por esse acto, para aferir da proporcionalidade da medida concretamente aplicada. E só no caso de considerar inaceitável e intolerável o sacrifício é que se deve concluir pela violação dos princípios orientadores do exercício de poderes discricionários, tais como da proporcionalidade, da razoabilidade e da justiça”.
É de dizer que o princípio da proporcionalidade exige uma certa relação de adequação entre o meio utilizado pela Administração e os objectivos que visa a respectiva decisão administrativa, sabendo que compete à Administração prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes (art.º 5.º n.º 2 e art.º 4.º do Código do Procedimento Administrativo).
Também chamado por princípio da proibição do excesso, o princípio da proporcionalidade é “um perâmetro de controlo de actuações restritivas dos direitos e interesses dos particulares, constituindo, portanto, um limite a tais restrições”, tal como afirma, muito bem, o Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer emitido.
Ora, concentrando-se na relação entre a sanção disciplinar em causa, a de advertência, e o interesse que pretende prosseguir com o acto de punição (a defesa do prestígio da classe, na consideração do acórdão recorrido), não se nos afigura verificado erro manifesto ou total desrazoabilidade na escolha dessa pena nem violado o princípio da proporcionalidade, na consideração das suas vertentes de adequação (ou idoneidade), de exigibilidade (ou necessidade) e de proporcionalidade em sentido restrito.
É de conceder provimento ao recurso jurisdicional.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, revogando o acórdão recorrido.
Sem custas.

Macau, 24 de Setembro de 2021
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
1 Os acórdãos do TUI de 28 de Julho de 2004, 21 de Janeiro de 2015 e 4 de Abril de 2019, respectivamente, nos Processos n.ºs 27/2003, 26/2014 e 11/2019, entre outros.
2 Os acórdãos do TUI de 19 de Novembro de 2014, 5 de Dezembro de 2018 e 4 de Abril de 2019, respectivamente, nos Processos n.ºs 112/2014, 65/2018 e 11/2019, entre outros.
3 Viralino Canas, citado no Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho, pag. 90.
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