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Processo n.º 741/2021 Data do acórdão: 2021-10-28
Assuntos:
– crime de fuga à responsabilidade
– instalação de câmara privada do tipo car cam em veículo
– Lei n.o 2/2012
– gravação visual e sonora por car cam em veículo
– conceito de dados pessoais
– tratamento do teor da gravação de car cam
– art.o 4.o, n.o 1, alínea 1), da Lei n.o 8/2005
– art.o 3.o, n.o 2, da Lei n.o 8/2005
– art.o 113.o do Código de Processo Penal
– utilização da gravação de car cam para investigação criminal
– consentimento da pessoa abrangida pela gravação de car cam
– art.o 80.o, n.os 2 e 5, do Código Civil
– condução rodoviária em via pública
– vida privada
– art.o 30.o, n.o 1, do Código Penal
– crimes de gravações e fotografias ilícitas
– art.o 191.o do Código Penal
– art.o 112.o do Código de Processo Penal
– princípio da livre apreciação da prova
– prova bastante ou prova suficiente
– contraprova
S U M Á R I O
1. A Lei n.o 2/2012, como tem por objecto regular a utilização de sistemas de videovigilância em espaços públicos pelas forças e serviços de segurança da Região Administrativa Especial de Macau na qualidade de autoridade de polícia, não é aplicável à instalação da câmara privada (do tipo “car cam”, em inglês) em veículo automóvel.
2. Como no momento em que foi feita a gravação visual e sonora pela câmara privada instalada no veículo do condutor ofendido dos presentes autos sobre a circulação rodoviária do veículo automóvel então conduzido pela arguida, ainda não foi identificada ou identificável a própria pessoa desta, assim, não se pode considerar que o conteúdo da gravação em causa tenha contido “dados pessoais” dela na acepção definida na alínea 1) do n.o 1 do art.o 4.o da Lei n.o 8/2005. Por outro lado, atento o disposto no art.o 3.o, n.o 2, da Lei n.o 8/2005, mesmo sem a consideração atrás feita acerca do conceito de “dados pessoais”, ao tratamento do teor da gravação visual e sonora feita pelo ofendido através da câmara privada instalada no seu veículo aquando do exercício da sua actividade, exclusivamente pessoal, de condução rodoviária, para fins de defender a sua posição no acidente de viação em questão no subjacente processo penal de justiça, também não é aplicável o regime dessa Lei n.o 8/2005.
3. A gravação visual e sonora por uma câmara privada instalada em veículo automóvel particular não pode constituir prova obtida através dos métodos referidos nos n.os 1 e 2 do art.o 113.o do Código de Processo Penal.
4. A utilização para efeitos de investigação criminal – efeitos estes integrados indubitavelmente no âmbito de exigências ou finalidades de segurança ou de justiça – de imagens e sons captados pela câmara privada instalada previamente no veículo automóvel então conduzido pelo ofendido não carece do consentimento da própria pessoa abrangida por essas imagens e/ou sons, por força precisamente do disposto no art.o 80.o, n.os 2 e 5, do Código Civil, regras jurídicas estas que prejudicam evidentemente toda a tese jurídica segundo a qual o tribunal recorrido, para efeitos de formação da sua livre convicção sobre os factos, terá valorado ilegalmente, em violação do art.o 113.o, n.o 3, do Código de Processo Penal, o conteúdo da gravação daquele aparelho instalado no veículo do ofendido. Aliás, a condução rodoviária em via pública não pode ser considerada como integrante da vida privada da pessoa condutora.
5. As regras dos n.os 2 e 5 do art.o 80.o do Código Civil, como relevam logicamente nos termos e para os efeitos do art.o 30.o, n.o 1, do Código Penal, afastam a possibilidade de verificação de crimes de gravações e fotografias ilícitas previstos no art.o 191.o do Código Penal.
6. Do exposto, resulta demonstrado o carácter lícito da utilização, para efeitos de justiça (inclusivamente de investigação criminal), do conteúdo de gravação feita pela câmara privada instalada em veículo automóvel particular (cfr. o disposto no art.o 112.o do Código de Processo Penal), carácter lícito este que garante também o carácter lícito de valoração, pelo tribunal recorrido, do conteúdo da gravação em causa, para efeitos de formação da sua livre convicção sobre os factos constitutivos do objecto probando do processo na parte relativa ao pronunciado crime, da arguida recorrente, de fuga à responsabilidade.
7. O princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do Código de Processo Penal não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
8. Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
9. Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
10. Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 741/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 297 a 308v do Processo Comum Colectivo n.° CR4-21-0051-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida A, aí já melhor identificada, ficou condenada pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de fuga à responsabilidade, p. e p. pelo art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), na pena de sete meses de prisão (suspensa na sua execução por dois anos), com sanção acessória de interdição efectiva de condução por um ano e seis meses, para além de ser condenada a pagar ao ofendido B a quantia de MOP34.421,40 (trinta e quatro mil, quatrocentas e vinte e uma patacas e quarenta avos) (com juros legais a contar a partir da data desse acórdão até integral e efectivo pagamento), arbitrada oficiosamente, para efeitos de indemnização das despesas de reparação do veículo automóvel do próprio ofendido.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pretender, a título principal, a sua absolvição total, ou, pelo menos, a aplicação da pena de multa, em vez da de prisão, tendo chegado a expor o seguinte, na sua motivação apresentada a fls. 321 a 355 dos presentes autos correspondentes:
– <<[…]
  1 - A R. ora Recorrente, foi condenada a sete meses de prisão, com pena suspensa por dois anos, e inibição de condução pelo período de 18 meses, pela prática de um crime de fuga à responsabilidade, previsto e punido no artigo 89.º da Lei do Trânsito Rodoviário, bem como a indemnizacao cível, mas a R. não se furtou à responsabilidade civil ou criminal em que eventualmente pudesse ter incorrido por causa do alegado acidente, como tentará demonstrar.
  2 - Salvo melhor entendimento, considera a R. que a prova obtida através da câmara particular do Ofendido (sem qualquer certificação legal que permita conferir a autenticidade e fidelidade da gravação e edição da mesma) reproduzida nos autos a fls. 31 e 32, visionada na audiência de julgamento, deveria ter sido expurgada dos autos, porque constitui prova obtida por meios ilícitos, não regulados e certificados nos termos do Regime Jurídico da Videovigilância em Espaços Públicos vigente na RAEM (Lei nº 2/2012, de 12 de Março).
  3 - A admissão de tal prova proibida, sugestionando as testemunhas, dando uma visão parcial do modo como os factos ocorreram, inquinou todo o processo de produção de prova no julgamento no tribunal a quo, sem qualquer garantia de fiabilidade no modo de produção e edição do vídeo por uma parte com interesse directo no processo, devendo por isso, ser considerada prova ilegal a desentranhar dos autos.
  4 - A R. nunca prestou o seu consentimento para que os seus dados pessoais, recolhidos por câmara particular, fossem alvo de tratamento, nos termos do artigo 6.º da Lei de Protecção de Dados Pessoais (Lei nº 8/2005 de 22 de Agosto), e como tal não houve sanação do vício de uso da prova proibida no julgamento.
  5 - Tanto mais que o Regime Jurídico da Videovigilância em espaços públicos e o uso de sistemas de vídeo-vigilância e captação de dados, aprovado pela Lei nº 2/2012 de 12 de Março, regula o sistema de vídeo vigilância em lugares públicos com o objectivo de protecção e segurança, nomeadamente de todos os utentes de vias rodoviárias, incumbindo tal missão às forças e serviços de segurança públicas.
  6 - A lei não comete nem permite tal acção a particulares, excepto se certificados pelos organismos competentes, Ex.: videovigilância em condomínios, bancos e outras instituições para segurança dos particulares, condóminos ou utentes.
  7 - Não permite a Lei nº 2/2012 o uso de câmaras de filmar por particulares, maxime condutores de veículos ligeiros de passageiros privados, para funções de segurança rodoviária em vias públicas.
  8 - A segurança rodoviária e o sistema de vigilância público existente na RAEM é um desiderato levado a cabo pelos poderes públicos de segurança e não por particulares.
  9 - A certificação por organismos oficiais e o uso excepcional por particulares (ver 5 supra), nos termos da lei de protecção de dados e das norma de direitos fundamentais da Lei Básica de Macau, determinados por lei, visa evitar a manipulação de meios mecânicos de captação de imagens lesivos dos direitos liberdades e garantias impostos pela Lei Básica de Macau e pelas leis em sentido material da RAEM que regulam a matéria.
  10 - O douto acórdão do tribunal a quo funda-se em prova proibida visionada em audiência de julgamento, tendo sido arguida a nulidade pela R. durante a Instrução, na Contestação e na Audiência de Julgamento.
  11 - Desde a primeira hora a PSP, o Ministério Público e Tribunal de Instrução Criminal não deviam ter admitido nos autos aquela gravação particular, ilícita, e muito menos ser a mesma visionada na audiência de julgamento para apoio à memória das testemunhas.
  12 - Pelo que, nos termos conjugados dos artigos 105º, 112.º e 113º nº 2 do Código de Processo Penal, entendemos que, a prova produzida pela câmara particular do Ofendido, é um método proibido de prova, não foi consentido, logo não foi sanado o vício, (cf. artº 6º da Lei de Protecção de Dados Pessoais, Lei nº 8/2005, de 22 de Agosto), e não podiam ser valoradas pelo Tribunal a quo, porque padece de nulidade.
  13 - A Nulidade da proba proibida foi arguida, em devido tempo, pela ora Recorrente.
  14 - Ao terem sido visionadas durante o depoimento das testemunhas, e valoradas na sentença produzida pelo Tribunal a quo, ora em crise, inquinaram definitivamnte todo o prepcesso de produção de prova em busca da verdade material, o que, por si, obriga à renovação da prova e à repetição do julgamento.
  15 - Com efeito, as filmagens particulares obtidas pela câmara do ofendido, sem qualquer certificação dos poderes públicos competentes, trazidas ao processo pelo ofendido, visionadas na audiência de julgamento, captadas e editadas pelo ofendido, são prova proibida no nosso sistema jurídico.
  16 - Com efeito, as fotos de fls. 31 e 32, que correspondem ao vídeo captado ao minuto 8.30.54, 8.30.57, 8.30.58 (na câmara do ofendido), não registam as imagens captadas ao minuto 8.22.04 (videovigilância da Ponte), pois estas mostrariam que o ofendido deliberadamente tentou abalroar momentos antes o veículo da R. (v. fotos de fls. 35 e vídeo da PSP ao minuto 8.22.04.). E os dois momentos não podem ser dissociados na procura da verdade material pelo Tribunal.
  17 - Acontece que a sentença ora em crise, faz uma interpretação das imagens de videovigilância gravadas entre o minuto 8.22.01 e 8.22.05 (Câmara de videovigilância da PSP na Ponte da Amizade) exactamente contraria aos que as imagens evidenciam.
  18 - Existe erro notório na apreciação da prova (artigo 400º, nº2 c) do CPP c), pois as imagens mostram que o ofendido tentou abalroar o veículo da R., mudando para a faixa direita de repente, sem sinalizar, numa manobra perigosa, quando o veículo da R. já seguia na faixa direita, quase provocando um acidente não fora a arguida travar a tempo. (ver minuto 8.22.01 e minuto 8.22.04 das imagens captadas pela videovigilância da PSP).
  19 - A foto captada do vídeo, desse mesmo momento, minuto 8.22.01, junta aos autos, na Audiência de Julgamento pela R., demonstra com nitidez a posição entre os dois veículos, e demonstra também como é erróneo o facto dado provado na sentença ora em crise.
  20 - Com estas imagens estabelece a sentença recorrida, como matéria de facto provada, que sustenta a condenação da R., que foi o ofendido que primeiro iniciou a manobra de passagem para a faixa da direita antes da R. (o vídeo da PSP da Ponte da Amizade mostra exactamente o contrario ao minuto 8.22.01 a 8.22.04) e, que o veículo desta seguia atrás do veículo do ofendido na faixa da esquerda, tendo a R. tentado impedir o ofendido de mudar de faixa, quase causando um acidente!
  21 - Tal interpretação padece do vício de erro notório na apreciação da prova, v. artigo 400º, nº2 alínea c), do CPP,
  Senão vejamos,
  22 - Se, como afirma e sustenta a douta sentença do Tribunal a quo, a R. seguia atrás do veículo do ofendido na faixa da esquerda, tendo este mudado de faixa para a direita primeiro, então a R. não teria como impedir essa mudança de faixa pois encontrava-se atrás e não à frente do carro do ofendido!
  23 - Na realidade e visionando as imagens, de uma forma isenta, verifica-se que existe contradição na fundamentação e/ou erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal a quo:
Nas imagens pode ver-se exactamente o oposto, o carro da R. já seguia na faixa da direita (minuto 8.22.01) sendo que o ofendido cruza a linha descontínua para a faixa da direita posteriormente e sem sinalizar a mudança de faixa (minuto 8.22.02), apercebendo-se da existência da R. faz uma breve travagem sem no entanto abortar a manobra (minuto 8.22.03) forçando depois a sua entrada e permanência na faixa da direita tentando abalroar o carro da R. e encostando-o aos rails do separador central (minuto 8.22.04 e 8.22.05), tendo o embate sido evitado apenas porque a R. travou e evitou o mesmo.
  24 - O enquadramento objectivo dos factos ocorridos, para uma busca da verdade material pelo Tribunal, tem que ser visto com as imagens conjugadas do minuto 8.22.01 e do minuto 8.22.12.
  25 - O tribunal a quo ao errar de forma notória sobre a interpretação da factualidade demonstrada pelas imagens a partir do minuto 8.22.04 até ao minuto 8.22.05 do video da PSP, naturalmente vai fazer uma interpretação dos factos viciada por esse erro notório, quando visiona as imagens do Video da PSP ao minuto 8.22.12, ou seja,
se foi a R. que efectuou uma manobra perigosa ao minuto 8.22.04 e não o ofendido, então foi a R. que também efectuou uma manobra perigosa ao minuto 8..22.12, embora nem o Tribunal, nem as testemunhas, possam afirmar que, do visionamento das imagens de videovigilância da PSP, únicas admissíveis como prova no processo, se percepciona, se consegue ver ao minuto 8.22.12, uma ultrapassagem perigosa, sem qualquer sinalização por parte da R. e um embate do veículo conduzido por esta no veículo do ofendido.
Tal prova não existe nos autos. e o tribunal a quo baseou-se numa interpretação errad da situação ao minuto 8.22.01 - 8.22.05 para sustentar igual erro ao minto 8.22.12.
Mas o video da PSP não suporta tal prova que a douta sentença do Tribunal a quo, por erro notório na apreciação da prova, diz estar comprovada e sustentada no vídeo da PSP.
  26 - O que existe é uma valoração errada do ponto de vista fáctica da realidade, desfavorável à R., sem avaliar a conduta objectiva do ofendido, demonstrada pelo mesmo meio de prova que condena a R., branqueando a conduta de condução perigosa pelo ofendido, que as imagens de videovigilância da Ponte da Amizade obtidas pela PSP, visionadas na audiência de julgamento, comprovam ao minuto 8.22.04.
  27 - Tanto mais que, no vídeo de gravação da PSP do tráfego na Ponte da Amizade no dia 25 de Junho de 2019, ao minuto 8.22.14 se pode visualizar que vários veículos procediam tal como a R. à passagem para a faixa da direita por aí existir espaço para tal manobra, e na faixa esquerda seguir um autocarro a velocidade moderada, o que quem conduz sabe que acontece frequentemente.
  28 - Nos termos do Regulamento do Tráfico Rodoviário havendo duas vias a regra é a condução pela esquerda, usando a faixa da direita os veículo que pretendem andar a maior velocidade - dentro dos limites permitidos - máximo de 80 Km na Ponte da Amizade - ou efectuar ultrapassagens dentro daqueles limites.
  29 - As filmagens da PSP na Ponte da Amizade, únicas que podem servir de prova no presente processo, indiciam que pode ter havido uma tangente entre o veículo conduzido pela R. e o veículo conduzido pelo ofendido, mas não chegou a haver acidente porque a R. conseguiu, face ao perigo eminente de colisão, (provocado pela aceleração propositada e repentina do veículo do ofendido), desviar o seu veículo do veículo do ofendido e seguir viagem, onde tinha a faixa desimpedida.
  30 - A ora R., na manobra que executou para se afastar do veículo do ofendido e evitar o acidente, agiu numa situação de estado de necessidade (face à aceleração repentina do ofendido e ao perigo de colisão que tal representava) para afastar um perigo actual (colisão com o veículo do ofendido e eminência de um acidente na Ponte da Amizade) e conseguiu evitar a colisão.
  31 - A ora R. reagiu ao abrigo do estado de necessidade defensivo, caracterizado pela reacção do agente contra um interesse jurídico do agressor, causador da situação de perigo, que foi este ter acelerado de repente para impedir ou dificultar a manobra da ora R. e esta para ecitar perigo maior, embate de dois veículo em hora de ponta na Ponte da Amizade, acelerou e passou rente/ tangente ao veículo do ofendido, mas não chocou com ele ee vitou o acidente.
  32 - Verifica-se que não ocorreu um acidente, porque a arguida conseguiu escapar da área de colisão do veículo do ofendido, que violou voluntariamente e de forma grosseira as regras de passagem da Lei Rodoviária - devia desacelerar para permitir a entrada do veículo da arguida, mas fez exactamente o contrário, acelerou para impedir e dificultar perigosamente a execução da manobra de mudança de faixa já iniciada pela arguida.
  33 - A R., em 1 de Março de 2021, apresentou nos Serviços do Ministério Público da RAEM Denúncia/Participação Crime em relação ao ofendido, que corre os seus termos sob o Proc.º Inquérito nº 3799/2021 MP - 5a. Secção, documento junto aos autos com a contestação.
  34 - Não existe prova material nos autos que tenha existido um acidente na Ponte da Amizade no dia 25 de Junho 2019, cerca das 8h21m da manhã, acidente alegadamente causado pela ora R no veículo do ofendido.
  35 - Nunca foi realizada perícia aos dois veículos com recurso a meios técnicos e científicos, com análise de tinta e de chapa da carroceria dos dois veículos que confirmasse a existência de acidente nos moldes participados pelo ofendido e descritos pela sentença ora em crise.
  36 - No relatório da PSP apenas constam as medições dos 2 veículos quanto à localização da mancha escura no veículo do ofendido, não existindo qualquer afirmação que existissem marcas de tinta branca no veículo da R, e danos de chapa no veículo do ofendido, quando os veículos que embateram seguiam a uma velocidade média entre 60/80Km hora.
  37 - O Departamento de Trânsito da PSP na Flora, não usou quaisquer técnicas científicas que permitissem concluir que foi o veículo da R. que provocou a mancha negra no veículo do ofendido, não foi demonstrado nem indiciado que a R. tenha embatido na viatura do ofendido, causando danos no veículo da ofendido - ambos os veículos não evidenciaram, quando examinados pela PSP no Departamnto de Transito da PSP na Flora, vestígios de danos de chapa, vestígios de tinta, compatíveis com um embate ocorrido a uma velocidade média de 60/80 Km/ hora.
  38 - Durante a Instrução e antes do Julgamento, foi por 2 vezes indeferido o pedido da realização de prova pericial aos danos dos dois veículos, para averiguar nomeadamente da sua compatibilidade, e que incluísse um perito nomeado pela ora R.
  39 - De facto, os pneus do veículo da R. entre a parte superior da jante e a parte superior do pneu encontram-se a uma distância do chão entre 53cm e 60cm, o que resulta numa largura do pneu de 7cm, bem inferior à dimensão dos danos contínuos (mancha preta) no veículo do ofendido que na medição da PSP indicia serem de pelo menos 11 cm.
  40 - Os danos no carro do ofendido são pretos e o carro da arguida é cinzento metalizado. Não existe mo relatório decorrente do exame do veícula da R. na PSP Flora quakquer indicação de timta cinzeta metalizada no veículo do ofendido e os pneus do veículo da R. não têm largura sufuciente para poderem causar a referida mancha preta no carro do ofendido.
  41 - Por outro lado, o pneu direito traseiro do veículo da R. teria que estar levantada no ar vara poder provocar o dano à altura indicada nas medições do Relatório da PSP.
  42 - O pneu direito traseiro, ao contrário das medições efectuadas pela PSP, não se encontra ao nível (a altura do pneu traseiro direito da R. não corresponde à altura da mancha negra na parte lateral frente esquerda do ofendido) dos danos - mancha negra - que aparece no veículo do Ofendido, não revelando o veículo da R. quaisquer danos de chapa, que existiriam por mais pequeno que tivesse sido o embate entre os dois veículos que circulassem à velocidade de 70/80 Km/hora.
  43 - Se as regras da experiência comum não chegarem para se retirar esta conclusão - os danos de chapa na carroceria de ambos os veículos tem que ser compatíveis entre si, e compatíveis com uma colisão ocorrida a uma velocidade média dos dois veúculos entre 60/80 Km hora - então a prova pericial que foi negada, teria munido o Tribunal a quo das ferramentas para uma decisão assente em matéria de facto apurada com recursos a métodos e técnicas científicas.
  44 - A sentença do tribunal a quo não assenta em matéria de facto suficiente para tomar a decisão de condenação da R. e incorre em vício de erro notório sobre a matéria de facto provada, recusando sempre o recurso à Perícia para quaiquer dúvidas em relação à conduta R. poderem ser dirimidas.
  45 - A R., ao desviar-se do veículo do ofendido, para evitar o embate face ao aceleramento súbito do veículo daquele, tinha os pneus traseiros alinhados com a carroceria do seu veículo e protegidos pelo pára-lamas, não podendo, pelas leis da física, o pneu traseiro direito raspar no veículo do ofendido, sem provocar danos de chapa, vulgo amolgadelas.
  46 - Os danos evidenciados a fls. 68 e 69 e 70 só seriam possíveis se o veículo da arguida se tivesse deslocado do pavimento, levantando-se do solo, em direcção ascendente ao veículo do ofendido (V. fls. 68, 69 e 70), mas mesmo assim tal embate, em modo de vôo, provocaria simultaneamente danos na chapa no veículo do ofendido, que não foram identificadas no exame da PSP, nem no veículo da R., porque não existiram quaisquer danos de chapa e os mesmos não se encontram provados nos autos, por documento, relatório policial, exame ou perícia, por não ter havido colisão.
  47 - Chamámos à colação as Leis da Física e da Mecânica, para aplicadas ao embate entre 2 veículos automóveis ligeiros de passageiros, nos poderem dar uma resposta científica ao ocorrido.
  48 - As Leis de Newton, da Mecânica Clássica, não foram observadas, nem aplicadas no Exame Sumário realizado aos 2 veículos pela PSP, que se limitou a tirar medidas do local dos danos em cada veículo, em relação ao solo e em relação a cada um deles..
  49 - Os factos que a sentença em crise, considera provados e incriminadores da acção da R., exame dos veículos e video da Ponte da PSP, não são suficientes para a incriminação. e para a formação da convicção do Tribunal a quo. Não são consentâneos com as regras da experiência comum e muito menos das regras científicas da Mecânica, que se aplicam in casu - as chamadas Leis de Newton.
  50 - Segundo as Leis de Newton, que enformam a Mecânica Clássica, o choque entre 2 corpos obedecem a Leis Físicas, assim na dinâmica das colisões unidimensionais, usando 2 variavéis - velocidade de afastamento e velocidade de aproximação - para 2 corpos colidirem antes precisam de se aproximar e depois do choque afastar. Com isso eles possuem uma velocidade relativa de aproximação e uma velocidade relativa de afastamento.
  51 - Ocorrendo um embate entre 2 objectos, in casu, 2 veículos, estes teriam uma aproximação e depois um afastamento depois do choque. Nada disso aconteceu no presente caso, nem existem evidências, provas físicas que o veículo da R embateu no veículo do ofendido, nos termos descritos, quer na acusação, quer na sentença ora em crise.
  52 - Nem um pequeno vestígio de tinta branca (cor do carro do ofendido) foi encontrado no carro da R., antfoi encontrado vestígios de tinta amarela, por ter raspado numa coluna no estacionamento do local de trabalho, como a R. identificou à PSP, aquando do exame sumário à sua viatura.
  53 - Também no veículo do ofendido não há e nunca houve vestígios de tinta cinzenta metalizada, cor do carro da R., aquando do exame feito pela PSP no próprio dia dos factos.
  54 - Os elementos constantes dos autos, conjugados com a as regras da experiência comum, (art. 400º nº2 a) do CPP) obrigam a retirar a conclusão que 2 veículos a uma velocidade de 60/80 Km hora, que colidam, por mais pequena que seja a colisão imobilizam após o choque e ficam marcas do embate na carroceria de ambos os veículos.
  55 - O Tribunal a quo não cuidar de obter prova suficiente para condenar a R. no crime de fuga à responsabilidade, por esta ter dado causa a um acidente e não ter permanecido no local.
  56 - De facto, a arguida nunca sentiu que ocorreu um acidente com o seu veículo e do ofendido e que nele tivesse chocado e embatido. Sentiu que foi tangencial a passagem do seu carro para a faixa direita quando o veículo do ofendido acelerou repentinamente.
  57 - Se tivesse sentido qualquer toque mesmo pequeno teria parado de imediato e não tendo o seu veículo qualquer dano compatível com um acidente entre 2 veículos, nunca equacionou que tivesse estado envolvida num acidente e ausentado do local conscientemente.
  58 - De notar que o ofendido e a sua mulher que seguia no veículo, nos seus depoimentos, na audiência de julgamento, disseram que o veículo da R. era vermelho, cor de vinho tinto (ver gravação audiência de julgamento ao 1.00.29 e 1.05.58, inquirição do ofendido sobre a cor do veículo da R. a instância da defesa) e depois a instâncias da M. Juíza Presidente, passou a ser castanho avermelhado e que esse veículo vermelho ou vermelho acastanhado vinha já apitando ao seu carro desde cemitério chinês antes de entrada na Ponte da Amizade.
O visionamento do video privado do ofendido a pedido do MP (com a oposição da Defesa, que ditou para a acta as razões da impugnação do visionamento), visionamento aceite pela Meretíssima Juíza Presidente do Colectivo, serviu e baseou as perguntas para continuação de inquirição como testemunha do segundo agente da PSP, (ver 2.29.08- 2.29.51 - 2.30.14 - 2.30.40 - 2.36.40 - 2.37.26 - que tinha claramente afirmado não se ver a ocorrência de um acidente no video da PSP (como referimos supra) - veio inquinar definitivamente o processo de produção de prova durante na Audiência de Julgamento, sendo nula a partir dessse momento quaisquer declarações das testemunhas baseadas no visionamento de prova proibida, que já devia estar expurgada dos autos e que foi chamada a ser visionada por não se ter feito até àquele momento prova suficiente para a incriminação da ora Recorrente.
  59 - Ou seja, jamais a R. agiu conscientemente e deliberadamente para pôr em risco a sua segurança, e a dos seus e demais que circulavam na Ponte da Amizade à data dos factos.
  60 - Não tendo a R. provocado nenhum acidente nem colidido com o veículo do ofendido, não fugiu à responsabilidade de um pretenso acidente, porque este nunca ocorreu.
  61 - Pelo que, terá de se concluir que não existem indícios suficientes e factos provados suficientes nos autos que permitam ao Tribunal a quo formar uma convicção segura quanto ao pretenso acidente ocorrido com o veículo da R., nem que a R. tenha cometido o crime de fuga à responsabilidade de que vem condenada,
  62 - Devendo a Recorrente ser Absolvida, face à insuficiência da prova para a sua condenação, ao erro notório na apreciação da prova produzida, ao uso de prova proibida para a sua incriminação, vícios que inquinam todo o processo de realização da prova e da verdade material e, em consequência inquina a douta sentença a quo, de nulidade, e, se assim se não entender, ser alterada substancialmente a medida da pena, face ao baixo grau de culpa e ilicitude do comportamento da arguida, confirmada na sentença ora em crise, face ao facto da arguida ser primária e sem qualquer histório de acidente de viação durante 11 anos de condução contínua, sem interrupção em Macau, antes e depois do pretenso acidente, sendo sufciente, face aos grau de culpa e de ilicitude indicada na sentença, a aplicação de uma pena de multa, pena de multa aplicada em situções semelhantes pelo TJB - Tuízo Criminal.
  63 - Ou, se assim se não entender, devem os autos baixar ao TJB, para a renovação da prova e realização da Perícia, indicando os quesitos nos termos seguintes, já anteriormente requeridos:
“PROVA:
Requer nova Perícia aos veículos da Recorrente e do Ofendido, tudo nos termos e para os efeitos do artigo 139.º e ss do Código de Processo Penal, que deverá incidir sobre o veículo da Recorrente e do Ofendido, de modo a averiguar se (i) os danos existentes no veículo do ofendido são compatíveis, em termos físicos e mecãnicos, com a colocação física do veículo da R. no pavimento da Ponte, no momento do pretenso acidente e com os danos verificados no veículo da R. posteriormente; (ii) se um embate lateral a uma velocidade de 70/80km/h é compatível com os danos apresentados no veículo do Ofendido, sem quaisquer danos de amolgadelas de chapa e com manchas de pneus a uma altura e de dimensão não compatíveis com a posição e largura do pneu traseiro direito do veículo da R.; (iii) se um embate à velocidade supra referida, não teria que resultar numa deslocação do veículo do Ofendido e da R. para a direita e consequente embate no rail separador da Ponte, onde se imobilizariam; e (iv) outros esclarecimentos que se entendam necessários e relevantes. ”,
Vem dizer o seguinte:
Nos termos do artigo 139º do Código Processo Penal, a prova pericial tem lugar quando a percepção dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos e científicos.
In casu, estamos perante versões contraditórias dos factos, uma que diz ter havido um acidente provocado pela R. no carro do ofendido e outra, a da R., que não chegou a existir acidente.
Ora, quando estamos perante colisões entre 2 veículos, aplicam-se Leis da Física e da Mecânica - Leis de Newton.
Durante a batida os carros trocam energia e alteram o sentido dos seus movimentos obedecendo a Leis da Física, estas leis são de carácter geral e são válidas para qualquer tipo de colisão entre 2 veículos ou de uma raquete contra uma bola.
1. Ora se o choque entre 2 corpos obedecem às Leis da Física e da Mecânica, os peritos aplicando aquelas leis poderão aferir do embate e das suas consequências:
(1.1) danos
(1.2) da compatibilidade dos danos entre os veículos envolvidos,
(1.3) dos efeitos no tipo de embate da velocidade em que os veículos circulam (in casu, 70/80 Km/hora),
(1.4) se da colisão, naquelas circunstâncias, têm que resultar necessariamente danos de chapa na carroceria dos dois veículos que colidiram.
  2 - O pneu direito traseiro do veículo da arguida, estando alinhado com a carroceria do veículo (ver foto fls.261), posição que tinha o veículo da arguida quando mudou para a faixa da direita, poderia ter causado os danos de mancha negra contínua, na carroceria acima da zona do pneu do veículo do ofendido, sem que os dois veículos se tivessem tocado, e sem danos de chapa em ambos os veículos?
  3 - A altura a partir do solo, da mancha negra no carro do ofendido é compatível com a altura dos pneus da arguida, e se o veículo da R. não teria que estar elevado do solo para poder provocar, àquela altura, o dano peticionado pelo ofendido?
  4 - Os riscos e as tintas (cor e qualidade de tinta) existentes em cada um dos veículos são compatíveis?
A resposta a estas questões equacionadas pela arguida, em matéria de prova, a fls. 263, são de carácter técnico e científico e envolvem conhecimentos de Física e Mecânica, a fim de ser realizada peritagem no âmbito do processo judicial, para apuramento dos factos constantes da acusação, que exigem resposta técnica e científica, que ainda não foi dada, por ter sido negado o requerido pela ora Recorrente, por duas vezes, na Instrução e na Contetação antes da Audiência de Julgamento.
[…]>>.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 357 a 361v dos autos, no sentido de improcedência do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 372 a 376v, opinando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 297 a 308v dos autos, cujo teor integral (incluindo-se nele a fundamentação fáctica e probatória da decisão) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A arguida, pronunciada pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário do art.o 279.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP) e de um crime de fuga à responsabilidade do art.o 89.o da LTR, e finalmente condenada em primeira instância apenas pela perpetração deste último, começa por defender, na motivação do recurso, que o Tribunal recorrido tinha valorado uma prova proibida na formação da livre convicção sobre os factos, qual seja, o conteúdo da gravação sonora e visual feita pela câmara privada instalada no veículo automóvel do ofendido.
Cabe saber, pelo seguinte, se o conteúdo da gravação visual e sonora feita pela câmara privada (do tipo “car cam”, em inglês) instalada no veículo automóvel do ofendido pode ser utilizado para efeitos de investigação criminal de algum acto delitual penalmente relevante.
Antes do mais, observa-se que diversamente do defendido pela arguida recorrente, a gravação visual e sonora feita pela câmara privada instalada no veículo automóvel do ofendido dos presentes autos não é susceptível de violar o disposto na Lei n.o 2/2012, nem na Lei n.o 8/2005.
É que:
– a Lei n.o 2/2012 tem por objecto regular a utilização de sistemas de videovigilância em espaços públicos pelas forças e serviços de segurança da Região Administrativa Especial de Macau, enquanto dotadas de autoridade de polícia; a câmara privada instalada no veículo automóvel do ofendido dos autos não é sistema de videovigilância instalado em algum espaço público pelas forças e serviços de segurança da Região Administrativa Especial de Macau como autoridade de polícia;
– no momento em que foi feita a gravação visual e sonora pela câmara privada instalada no veículo do ofendido nomeadamente sobre a circulação rodoviária do veículo automóvel então conduzido pela arguida, ainda não foi identificada ou identificável a própria pessoa da arguida, pelo que não se pode considerar que o conteúdo da gravação feita nessa câmara privada tenha contido “dados pessoais” da arguida para os efeitos a relevar para a aplicação da Lei n.o 8/2005 (cfr. o conceito de “dados pessoais” definido na alínea 1) do n.o 1 do art.o 4.o desta Lei), por um lado, e, por outro, o art.o 3.o, n.o 2, desta Lei dispõe que ela “não se aplica ao tratamento de dados pessoais efectuado por pessoa singular no exercício de actividades exclusivamente pessoais ou domésticas salvo se se destinar a comunicação sistemática ou difusão”, de maneira que, mesmo sem a consideração acabada de ser feita acerca do conceito de “dados pessoais”, ao tratamento do teor da gravação visual e sonora feita pelo ofendido dos presentes autos através da câmara privada instalada no seu veículo automóvel aquando do exercício da sua actividade, exclusivamente pessoal, de condução rodoviária, para fins de defender a sua posição concretamente no acidente de viação em causa no subjacente processo penal de justiça, não é aplicável o regime da mesma Lei n.o 8/2005.
Voltando ao cerne da questão de prova proibida, o art.o 113.o do Código de Processo Penal (CPP) tem a seguinte redacção:
Artigo 113.º
(Métodos proibidos de prova)
1. São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral da pessoa.
2. São ofensivas da integridade física ou moral da pessoa as provas obtidas, mesmo que com consentimento dela, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3. Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4. Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos no presente artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.
Por aí se vê, desde já, que a gravação visual e sonora por uma câmara privada instalada em veículo automóvel particular não pode constituir prova obtida através dos métodos referidos nos n.os 1 e 2 do art.o 113.o do CPP.
Por outro lado, o Código Civil vigente, no seu art.o 80.o, dita o seguinte:
< (Direito à imagem e à palavra)
1. O retrato ou qualquer outro sinal visualmente identificador de uma pessoa não pode ser captado, exposto, reproduzido, divulgado ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 68.º, segundo a ordem nele indicada.
2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de segurança ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a imagem estiver enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto puder resultar ofensa do direito à honra, nos termos do artigo 73.°
4. As imagens de lugares públicos captadas para finalidades de segurança ou de justiça apenas podem ser utilizadas para estes fins, devendo ser destruídas logo que se tornem desnecessárias.
5. O disposto nos números anteriores é aplicável, com as necessárias adaptações, à captação, reprodução e divulgação da palavra de uma pessoa.>>
No entender do presente Tribunal de recurso, a utilização para efeitos de investigação criminal – efeitos estes integrados indubitavelmente no âmbito de exigências ou finalidades de segurança ou de justiça – de imagens e sons captados pela câmara privada instalada previamente no veículo automóvel então conduzido pelo ofendido não carece do consentimento da própria pessoa abrangida por essas imagens e/ou sons, por força precisamente do disposto no art.o 80.o, n.os 2 e 5, do Código Civil, regras jurídicas estas que prejudicam evidentemente toda a tese jurídica segundo a qual o Tribunal recorrido, para efeitos de formação da sua livre convicção sobre os factos, terá valorado ilegalmente, em violação do art.o 113.o, n.o 3, do CPP, o conteúdo da gravação daquele aparelho instalado no veículo do ofendido. Aliás, a condução rodoviária em via pública não pode ser considerada como integrante da vida privada da pessoa condutora.
De frisar que as mesmas regras dos n.os 2 e 5 do art.o 80.o do Código Civil, como relevam logicamente nos termos e para os efeitos do art.o 30.o, n.o 1, do CP (em sintonia com o qual “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”), afastam a possibilidade de verificação de crimes de gravações e fotografias ilícitas previstos no art.o 191.o do CP.
Do acima analisado, resulta demonstrado o carácter lícito da utilização, para efeitos de justiça (inclusivamente de investigação criminal), do conteúdo de gravação feita pela câmara privada instalada em veículo automóvel particular (cfr. o disposto no art.o 112.o do CPP), carácter lícito este que garante também o carácter lícito de valoração, pelo Tribunal recorrido, do conteúdo da gravação em causa, para efeitos de formação da sua livre convicção sobre os factos constitutivos do objecto probando do processo na parte relativa ao pronunciado crime de fuga à responsabilidade.
Improcede, pois, o recurso da arguida nesta parte relativa à alegada prova proibida, sem mais indagação, por prejudicada ou desnecessária, sobre todo o aí alegado em conexão ao assunto da câmara privada em causa.
Na mesma motivação, a arguida assacou, com considerações várias, ao Tribunal sentenciador o cometimento do erro notório na apreciação da prova incriminatória do crime de fuga à responsabilidade.
Sempre se diz que ocorre este vício, nominado na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso, o Tribunal a quo já teceu (a partir do último parágrafo da página 11 do texto do seu acórdão a fl. 302 até ao terceiro parágrafo da página 16 desse texto a fl. 304v) a fundamentação probatória de toda a sua decisão sobre a matéria de facto.
Depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados pelo Tribunal recorrido, entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou esse Tribunal na parte, ora sob sindicância pela arguida recorrente, respeitante à pronunciada conduta de fuga à responsabilidade dela. Aliás, é mui razoável e convincente o juízo de valor formado pelo Tribunal recorrido (e explicado, já, a partir do penúltimo parágrafo da página 15 do mesmo acórdão (a fl. 304) e até ao primeiro parágrafo da página seguinte (a fl. 304v)) a propósito dos factos atinentes à fuga à responsabilidade da arguida.
De toda a factualidade dada por provada em primeira instância (sem qualquer erro notório na apreciação da prova nos termos acima vistos, nem, pois, qualquer insuficiência da prova), resulta cabalmente verificado o tipo-de-ilícito, quer objectivo quer subjectivo, da fuga à responsabilidade.
De referir também que da leitura de toda a fundamentação fáctica da decisão judicial recorrida, não se vislumbra qualquer contradição insanável da fundamentação. A discordância da arguida com a fundamentação fáctica da decisão condenatória recorrida não equivale necessariamente à existência do vício referido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Por força do resultado do julgamento dos factos feito pelo Tribunal recorrido no concernente ao pronunciado crime de fuga à responsabilidade, há que decair, por falta de qualquer suporte factual, a tese defendida pela arguida de ter ela reagido “ao abrigo do estado de necessidade defensivo”.
Não pode, pois, ser absolvida a arguida do crime de fuga à responsabilidade.
Quanto ao subsidiário pedido de aplicação da pena de multa em vez da de prisão: O crime de fuga à responsabilidade é punível com pena de prisão ou com pena de multa. O Tribunal recorrido optou por aplicar pena de prisão à arguida. É de louvar esta decisão sobre a espécie da pena, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP.
Naufraga, pois, o recurso, sem mais abordagem, por prejudicada, sendo certo que na esteira da jurisprudência do TSI, só cabe ao tribunal de recurso decidir das questões postas no recurso, e já não de todo e qualquer argumento exposto pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões (cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente o recurso da arguida.
Custas do recurso pela arguida, com dez UC de taxa de justiça.
Comunique o presente acórdão (com cópia do acórdão recorrido) ao ofendido, ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, à Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego e ao Processo de Inquérito n.o 3799/2021 (5.a Secção) do Ministério Público.
Macau, 28 de Outubro de 2021.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
___________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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