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Processo nº 136/2021 Data: 03.11.2021
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime(s) de “furto”.
Continuação criminosa.
Pressupostos.



SUMÁRIO

1. O conceito de “crime continuado” é definido como a “realização plúrima” do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o “mesmo bem jurídico”, executada por forma essencialmente “homogénea”, “temporalmente próxima”, e no quadro da solicitação de uma mesma “situação exterior” que diminua consideravelmente a culpa do agente, (exigindo-se uma apreciação e ponderação “caso a caso”).

2. De (especial) relevo a ponderar é que as ditas “circunstâncias externas” que levam o agente a “agir repetidamente” têm de manter-se, evidenciando, (e justificando, por isso), uma “menor culpabilidade”, o que já não ocorre se o agente actuou sucessivamente, mas “ultrapassando”, “superando” ou “contornando” obstáculos (e resistências) ao longo do “iter criminis”, afeiçoando a realidade exterior aos seus desígnios e propósitos, sendo ele a “dominá-la”, (e não o inverso).

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 136/2021
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão de 27.11.2020 proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-19-0413-PCC do Tribunal Judicial de Base, decidiu-se julgar parcialmente procedente a acusação pelo Ministério Público deduzida, condenando-se o arguido A, (甲), com os restantes sinais dos autos, como autor material da prática na forma consumada e continuada de 1 crime de “furto qualificado”, p. e p. pelo art. 198°, n. 1, al. e) e n.° 2, al. e), art. 29°, n.° 2, e art. 201°, n.° 1, todos do C.P.M., na pena de 1 ano e 9 meses de prisão; (cfr., fls. 301 a 314-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, para o Tribunal de Segunda Instância recorreram o arguido e o Ministério Público.

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Por Acórdão de 24.06.2021, (Proc. n.° 136/2021), negou-se provimento ao recurso do arguido, e, concedendo-se provimento ao recurso do Ministério Público, alterou-se a decisão recorrida – em conformidade e nos termos da acusação deduzida – condenando-se o referido arguido como autor material da prática em concurso real de 2 crimes de “furto qualificado”, p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. e) do C.P.M., na pena de 2 anos de prisão cada, e um outro de “furto qualificado”, p. e p. pelo art. 198°, n. 1, al. e) e n.° 2, al. e) do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, fixando-se-lhe a pena única de 3 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 392 a 402).

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Inconformado, traz o referido arguido o presente recurso; (cfr., fls. 406 a 435).

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Em Resposta, é o Ministério Público de opinião que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 438 a 441).

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Nesta Instância, e em sede de vista, considerou também a Ilustre Procuradora Adjunta que censura não merecia o Acórdão recorrido; (cfr., fls. 448).

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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados e constantes do Acórdão do Tribunal Judicial de Base e do Tribunal de Segunda Instância que, não estando impugnados, nem motivos existindo para qualquer alteração, aqui se dão como definitivamente fixados e integralmente reproduzidos, (mais adiante, se fazendo adequada referência para efeitos de apreciação e decisão do presente recurso).

Do direito

3. Insurge-se o arguido A contra o decidido pelo Tribunal de Segunda Instância que, como se deixou relatado, negando provimento ao recurso que tinha interposto (do Acórdão do Tribunal Judicial de Base), e concedendo provimento ao recurso do Ministério Público, decidiu pela sua condenação pela prática como autor material e em concurso real de 2 crimes de “furto qualificado”, p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. e) do C.P.M., na pena de 2 anos de prisão cada, e um outro de “furto qualificado”, p. e p. pelo art. 198°, n. 1, al. e) e n.° 2, al. e) do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, fixando-lhe a pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.

Considera – apenas – que a sua conduta devia integrar à prática de um (só) “crime continuado”, (nos exactos termos da decisão proferida pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base), insistindo na “redução” e “suspensão da execução da pena” (então) aplicada.

Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento, começando-se então pelo “enquadramento jurídico-penal” da conduta do recorrente.

Nos termos do art. 29° do C.P.M.:

“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Atento o assim estatuído, adequado se mostra de considerar que a “realização plúrima do mesmo tipo de crime” pode constituir:
a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o (mesmo) dolo ou resolução inicial;
b) um só crime, na forma continuada, se (toda) a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; ou,
c) um concurso (real) de infracções, se não se verificar qualquer das situações anteriores.

Maia Gonçalves, (referindo-se a idêntico artigo do C.P. Português), considera que com o preceito em questão – o art. 30° – se perfilha “o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime.
(...)
É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa.
(…)
Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se – assim – como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.
Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa”; (in “C.P.P. Anotado”, 8ª ed., pág. 268).

Isto é, o critério teleológico (e não naturalístico) adoptado pelo legislador na destrinça entre “unidade” e “pluralidade de infracções”, pressupõe o “juízo de censurabilidade”, pelo que haverá tantas infracções quantas as vezes que a conduta que o preenche se tornar reprovável.

Em relação ao (anterior) Código Penal de 1886 considerava também o Prof. E. Correia que:

“Se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídicos e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções. Mas porque a acção, além de antijurídica, tem de ser culposa, pode acontecer que uma actividade subsumível a um mesmo tipo mereça vários juízos de censura. Tal sucederá no caso de à dita actividade corresponderem várias resoluções, no sentido de determinações de vontade, de realização do projecto criminoso”, e que “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime e às quais presidiu pluralidade de resoluções devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam considerável diminuição da culpa. Tal sucederá, quando a repetição da actividade for facilitada, de modo considerável, por uma disposição exterior das coisas para o facto”; (in “Direito Criminal”, Vol. 2, pág. 201, 202, 209 e 210, e ainda em “Unidade e Pluralidade de Infracções”, pág. 338).

Por sua vez, e tratando mais especificamente da matéria do “crime continuado”, também já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de afirmar que:

“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”; (cfr., v.g., o Ac. de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, com abundante doutrina sobre a questão).

Adequado e razoável é assim reter que o conceito de “crime continuado” é definido como a “realização plúrima” do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o “mesmo bem jurídico”, executada por forma essencialmente “homogénea”, “temporalmente próxima”, e no quadro da solicitação de uma mesma “situação exterior” que diminua consideravelmente a culpa do agente, exigindo-se uma apreciação e ponderação “caso a caso”, sendo por sua vez de se ter presente que a (eventual) não verificação de um destes pressupostos leva à consideração da presença da figura da “acumulação real”; (sobre o tema, pode-se também ver, v.g., Manuel Leal-Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. I, pág. 376 e segs.; e M. M. Garcia e J. M. Castela Rio in, “Código Penal. Parte Geral e Especial. Com Notas e Comentários”, pág. 213 e segs.).

De (especial) relevo a ponderar é que as ditas “circunstâncias externas” que levam o agente a “agir repetidamente” têm de manter-se, evidenciando, (e justificando, por isso), uma “menor culpabilidade”, o que já não ocorre se o agente actuou sucessivamente, mas “ultrapassando”, “superando” ou “contornando” obstáculos (e resistências) ao longo do “iter criminis”, afeiçoando a realidade exterior aos seus desígnios e propósitos, sendo ele a “dominá-la”, (e não o inverso), inexistindo, assim, motivos para que se considere verificada qualquer “atracção” (ou “solicitação”) para a prática reiterada do crime e, desta forma, como “atenuada a sua culpa”, não se podendo pois considerar os crimes pelo mesmo assim cometidos como (um) “crime continuado”.

Ora, em face do que até aqui se deixou exposto, quid iuris?

Pois bem, no Acórdão agora recorrido, e sobre a “questão” em apreciação, assim ponderou (essencialmente) o Tribunal de Segunda Instância:

“(…)
O pressuposto fundamental de crime continuado é a existência de um quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que facilita em grande medida a repetição da actividade criminosa, (…), ou seja, a exigência de agir de acordo com a lei é gradualmente reduzido.
O Tribunal ao apreciar os requisitos do crime continuado, designadamente no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, deve ter em especial rigor sobre este requisito.
Neste caso, tal como nos factos provados supramencionados, o arguido por três vezes introduziu na vivenda da companhia para furtar, cada vez, o modo de execução foi diferente. Da primeira vez usou uma chave para abrir a porta principal da vivenda, na situação dos bens não estavam fechados à chave, o arguido furtou uma série de instrumentos. Da segunda vez, depois de usar a chave para abrir a vivenda, usou instrumentos encontrados na vivenda para abrir a fechadura da porta do quarto de armazém e fechadura da caixa de ferramentas, portanto tornou a furtar os bens, da terceira vez usou a chave para introduzir na vivenda, danificou a câmara de vigilância instalada fora do quarto, e usou instrumentos para cortar os fios dos 4 soldadores, enfim furtou tais bens.
Vimos que, o arguido A depois primeiro crime e tornou a praticar crime, a gravidade das circunstâncias elevaram sucessivamente, com excepção de ter usado uma chave para abrir a porta principal da vivenda, não vimos após do primeiro furto, outras circunstâncias que lhe facilitam a prática do crime. Cada crime de furto praticado pelo arguido não só não há lugar a diminuição, ao invés subiu de nível a nível, da última vez até danificou a câmara de vigilância para prevenir ser descoberto, a malignidade atingiu um nível mais alto, pelo que ele deve ser censurado e não há lugar à diminuição considerável da sua culpa.
(…)”; (cfr., fls. 401 e 37 a 39 do Apenso).

Temos como acertado o assim considerado e decidido.

Na verdade e como com mais detalhe salienta o Ministério Público:

“- no primeiro furto, o arguido usou uma chave para abrir a porta principal da vivenda, os bens guardados nessa vivenda não tinham dispositivo antifurto, nem fechados a chave, o arguido depois de furtar tais instrumentos, foi embora;
- no segundo furto, por ter havido o incidente do primeiro furto, é que os bens da vivenda foram guardados numa caixa de ferramentas fechada a chave e colocada dentro de um quarto trancado com fechadura. O arguido usou uma chave para abrir a porta principal da vivenda, depois usou os instrumentos encontrados na vivenda para abrir a fechadura da caixa de ferramentas, em seguida foi embora; e
- em relação ao terceiro furto, dado ter acontecido várias vezes furtos, a companhia ofendida da vivenda para além de participar o caso à polícia, instalou sistema antifurto que permite através da câmara de monitoramento transmitir a filmagem ao empregado da companhia. O arguido usou uma chave para abrir a porta principal da vivenda, em seguida usou instrumentos encontrados na vivenda para abrir a porta do quarto, bem como obstruiu a câmara de vigilância antifurto instalada no exterior do quarto, depois cortou os cabos eléctricos dos quatro soldadores, furtou-os e foi embora”.

E, nesta conformidade, evidente é que o arguido ora recorrente agiu com “domínio sobre a situação”, “ultrapassando obstáculos e resistências” – no caso, pelo ofendido “intencionalmente adoptados e instalados para impedir (precisamente) a repetição da conduta” – (totalmente) inviável sendo a consideração de uma atenuação ou diminuição da sua culpa.

Dest’arte, nenhuma censura merece a decisão do Tribunal de Segunda Instância que se apresenta correcta na “qualificação jurídico-penal” da conduta do recorrente, e igualmente justa e equilibrada nas penas parcelares e única ao mesmo decretadas, necessária sendo a decisão de improcedência do presente recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça de 10 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 03 de Novembro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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