打印全文
Processo nº 34/2021 Data: 24.09.2021
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Recurso em processo penal.
Recurso para o Tribunal de Última Instância.
Admissibilidade.



SUMÁRIO

1. Ainda que o “direito ao recurso” não esteja expressamente consagrado na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, dúvidas não parece que possam existir que o mesmo se deve ter como um “direito fundamental” que a todos assiste de “obter uma reapreciação de uma decisão proferida por um Tribunal de hierarquia superior”.

Tal conclusão mostra-se aliás imperativa em face do que preceituado está no art. 14°, §5 do “Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”, aplicável por força do art. 40° da dita L.B.R.A.E.M., assim como atenta a (própria) redacção do art. 36° desta mesma Lei quanto ao “acesso ao direito e aos Tribunais” e do estatuído no seu art. 41° quanto aos “outros direitos e liberdades asseguradas pelas leis da R.A.E.M.”.

2. Embora – teoricamente – desejável a consagração de um “direito ao recurso” (pleno e) com a amplitude que a todos pudesse agradar, importa ter em conta as regras sobre tal matéria previstas no art. 390° do C.P.P.M. quanto às “decisões que não admitem recurso”.

3. Em face do estatuído no art. 390°, n.° 1, al. e), f) e g), do C.P.P.M., não é admissível de recurso para o Tribunal de Última Instância de Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou decisão do Tribunal Judicial de Base que efectuou o “cúmulo jurídico” de duas penas parcelares por decisões já transitadas em julgado aplicadas ao arguido: uma, de “9 anos de prisão”, e a outra, de “6 anos e 3 meses de prisão”, (aplicadas pela prática, em concurso real, de 2 crimes de “tráfico ilícito de estupefacientes” que, nos termos do art. 8°, n.° 1, da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, é punível com a pena de “5 a 15 anos de prisão”, cada).

4. De facto, se os ditos Acórdãos que decretaram as ditas penas parcelares já “transitaram em julgado”, não se vê como possam estas mesmas decisões e respectivas “penas”, (qualquer delas), ser validamente invocadas para (efeitos de) justificar um novo “recurso” – “ordinário”, como é o dos autos – para eventual (re)apreciação da sua adequação.

5. Dir-se-á, porém, que em causa está agora uma “pena única” – e nova – de “11 anos de prisão”, (resultado de um cúmulo jurídico efectuado com aquelas aludidas 2 penas parcelares), tendo por referência uma moldura de 9 a 15 anos e 3 meses de prisão, constituindo, (também) assim, uma “pena aplicável superior a 10 anos de prisão”, (para efeitos da “alínea g)” do art. 390° do C.P.P.M.).

Todavia – notando-se que da decisão do Tribunal Judicial de Base que operou o referido cúmulo jurídico já foi interposto recurso para o Tribunal de Segunda Instância, (assegurado estando o “segundo grau de jurisdição”, não existindo recursos “ad eternum” ou “ad infinitum”) – em causa (apenas) estando, agora, o recurso para esta Instância, cremos que o assim considerado escapa (e colide com) a regulamentação prevista (e pretendida) no aludido preceito legal.

É que o comando em questão tão só elege como pressuposto para a recorribilidade – da decisão confirmatória do Tribunal de Segunda Instância – a “medida da pena aplicável ao crime”, (ou, em caso de “concurso de crimes”, a “cada um dos crimes”) cometido(s), abstraindo-se, (completamente), da “pena (única) aplicável ao cúmulo jurídico” (ou da pena única deste resultante).

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 34/2021
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão de 28.11.2019 proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR2-19-0331-PCC do Tribunal Judicial de Base decidiu-se condenar o (aí 1°) arguido A, (甲), com os restantes sinais dos autos, como co-autor da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 9 anos de prisão; (cfr., fls. 173 a 177-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Por sua vez, por Acórdão de 22.05.2020, proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-19-0403-PCC do mesmo Tribunal Judicial de Base, foi também o dito arguido condenado pela prática como autor de 1 outro crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo dito art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 6 anos e 3 meses de prisão; (cfr., fls. 289 a 298).

*

Seguidamente, por Acórdão de 08.10.2020 proferido nos autos CR2-19-0331-PCC operou-se o cúmulo jurídico das duas aludidas penas (parcelares) ao arguido aplicadas, fixando-se-lhe a pena única de 11 anos de prisão; (cfr., fls. 374 a 375).

*

Em recurso do assim decidido, por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 04.02.2021, (Proc. n.° 1086/2020), foi o mesmo julgado improcedente, confirmando-se a referida “pena única” decretada pelo Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 410 a 413).

*

Ainda inconformado, o arguido recorreu para este Tribunal de Última Instância; (cfr., fls. 422 a 427).

*

Admitido o recurso, e remetidos os autos a esta Instância, em sede de exame preliminar suscitou-se a questão da “recorribilidade” do referido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 04.02.2021, e, oportunamente, após Parecer do Ministério Público e resposta do arguido, foi o recurso admitido e, de seguida, rejeitado por “manifesta improcedência”; (cfr., fls. 454 a 457-v).

*

No uso da faculdade que lhe é conferida pelo n.° 8 do aludido art. 407° do C.P.P.M., o arguido reclamou, (cfr., fls. 464 a 468), e, em sede de conferência – tendo-se presente que “A decisão que admita o recurso, que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal a que o recurso se dirige”, (cfr., art. 404°, n.° 3 do C.P.P.M.) – voltou-se a colocar a questão da “recorribilidade” do aludido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 04.02.2021.

*

Tendo-se chegado a entendimento inverso ao assumido na aludida “decisão de admissão do presente recurso”, cumpre (tentar) expor as suas razões.

Fundamentação

2. Nos termos do art. 389° do C.P.P.M. – onde se consagra o “princípio geral da recorribilidade das decisões” proferidas em sede de processo penal – “É permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.

Por sua vez, sob a epígrafe “decisões que não admitem recurso” prescreve o art. 390° que:

“1. Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De decisões proferidas em processo sumaríssimo;
d) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que não ponham termo à causa;
e) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância;
f) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
g) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
h) Nos demais casos previstos na lei.
2. O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido”.

Atento o assim preceituado, e importando agora tão só explicitar se do aludido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância cabe recurso para esta Instância, vejamos.

Como – breve – nota preliminar, mostra-se de salientar desde já que ainda que o “direito ao recurso” não esteja expressamente consagrado na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, dúvidas não parece que possam existir que o mesmo se deve ter como um “direito fundamental” que a todos assiste de “obter uma reapreciação de uma decisão proferida por um Tribunal de hierarquia superior”; (cfr., v.g., Miguel A. L. M. de Lemos in, “O direito ao recurso da decisão condenatória enquanto direito constitucional e direito humano fundamental”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias, pág. 923 a 948; e “Direitos Fundamentais e Processo Penal: o Habeas Corpus, o Direito ao Recurso de Decisão Condenatória e as Funções de Tutela de Direitos Fundamentais do Tribunal de Instrução Criminal”, 2as Jornadas de Direito e Cidadania da Assembleia Legislativa da RAEM, Direitos Fundamentais – Consolidação e Perspectivas de Evolução, pág. 257 a 286, onde vem citada vasta doutrina sobre o tema).

De facto, tal conclusão mostra-se-nos aliás imperativa em face do que preceituado está no art. 14°, §5 do “Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”, aplicável por força do art. 40° da dita L.B.R.A.E.M., assim como atenta a (própria) redacção do art. 36° desta mesma Lei quanto ao “acesso ao direito e aos Tribunais” e do estatuído no seu art. 41° quanto aos “outros direitos e liberdades asseguradas pelas leis da R.A.E.M.”.

Notando-se, igualmente, que embora também tenhamos como desejável a consagração de um “direito ao recurso” (pleno e) com a amplitude que a todos pudesse agradar (sempre) – mas adquirido e reconhecido se nos apresentando contudo que nenhum sistema jurídico o faz por motivos dos mais variados, (não sendo este o momento ou local para sobre os mesmos reflectir) – e, em causa não estando (agora) a abordagem do dito “direito (ao recurso)” atenta esta sua “natureza” de “princípio-geral-fundamental de direito (processual penal)”, (cfr., v.g., o art. 389° do C.P.P.M.), cabendo-nos, tão só, decidir da “situação (concreta)” que agora nos ocupa, ou seja, da susceptibilidade de recurso do já referido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, mostrando-se de referir ainda que, tal como previsto e regulado está, os “recursos” assumem, apenas, o papel de “remédios jurídicos”, (constituindo a prova cabal e acabada que os Tribunais e os seus Juízes, como simples e comuns mortais, não são incansáveis e infalíveis).

Isto dito, importa, atentar no prescrito no atrás transcrito art. 390°, n.° 1, al. g), do referido C.P.P.M., (até mesmo por ter sido o preceito invocado para a “decisão de admissão do recurso” agora em questão, e constituir, em nossa opinião, o comando legal de cuja interpretação e aplicação depende a solução que se mostra de adoptar).

Ora – valendo a pena aqui referir que idêntico preceito do C.P.P. português já deu lugar a, (seja-nos permitida a expressão), “rios de tinta”, (em estudos, comentários e anotações, originando também inúmeras decisões judiciais de diversos sentidos das Relações, do S.T.J. e do Tribunal Constitucional, com consequentes alterações da sua redacção; cfr., v.g., J. Damião da Cunha in, “A estrutura dos recursos na proposta de revisão do C.P.P.”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.° 8, 1998, pág. 251 a 275, e, M. C. Andrade, M. J. Antunes e S. A. de Sousa in, “Tempestividade e admissibilidade de recurso para o S.T.J.”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.° 13, 2003, pág. 419 a 432) – cremos que com o preceito em questão, (art. 390°, n.° 1, al. g) do C.P.P.M., assim como com o ínsito na “alínea f)” que a antecede), quis o legislador (local) deixar claro que, para efeitos de recurso – para este Tribunal de Última Instância – relevante é tão só (e apenas) a “pena aplicável” ao(s) crime(s) objecto de pronúncia no Acórdão recorrido – do Tribunal de Segunda Instância – vedando tal possibilidade (de recurso de decisão confirmativa), quando em causa estivesse(m) pena(s) de prisão “não superior a 10 anos”.

Isto é, (em conformidade com aí preceituado), para se saber e decidir se um Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que – como no caso em questão – confirmou uma decisão de condenação do Tribunal Judicial de Base é susceptível de recurso, (para este Tribunal de Última Instância), imprescindível é ver qual a “pena aplicável” ao(s) crime(s) em questão: se lhe(s) cabia uma “pena de limite máximo superior a 10 anos de prisão”, de sentido positivo é a resposta; no caso de assim não ser, susceptível de recurso não é a decisão proferida, (do Tribunal de Segunda Instância).

No caso dos presentes autos, e como se deixou consignado, em causa está um Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou anterior decisão do Tribunal Judicial de Base que efectuou o “cúmulo jurídico” de duas penas parcelares aplicadas ao arguido.

Uma, de “9 anos de prisão”, e a outra, de “6 anos e 3 meses de prisão”, aplicadas pela prática (em concurso real) de 2 crimes de “tráfico ilícito de estupefacientes” que, nos termos do art. 8°, n.° 1, da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), é punível com a pena de “5 a 15 anos de prisão”, (cada).

E, assim, em face desta “moldura penal” – 5 a 15 anos de prisão – admite-se que possível seja considerar que susceptível de recurso é – devia ser – o dito Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, pois que confirmou tal “cúmulo jurídico” de 2 penas parcelares aplicadas pela prática de 2 crimes aos quais (e a cada um deles) era “aplicável pena superior a 10 anos de prisão”.

Porém, importa não olvidar que os Acórdãos do Tribunal Judicial de Base nos quais se decidiu decretar as ditas “penas (parcelares)” de 9 anos e 6 anos e 3 meses de prisão – há cerca de 1 ano que – já “transitaram em julgado”; (o primeiro, após improcedência do recurso trazido a este Tribunal de Última Instância, e, o segundo, por não ter sido objecto de oportuna impugnação).

E dest’arte, (se os ditos Acórdãos que decretaram as ditas penas parcelares já transitaram em julgado), não se vê como possam estas (mesmas) decisões e respectivas “penas”, (qualquer delas), ser validamente invocadas para (efeitos de) justificar um novo “recurso” – “ordinário”, como é o dos autos – para (re)apreciação da sua adequação.

Seria, cremos nós, uma interpretação, no mínimo, não consentida – pelo que previsto está em matéria de “recurso ordinário”, e, em especial cremos nós – pela própria “letra” e “ratio” do preceituado no art. 390°, n.° 1, al. g) do C.P.P.M..

Dir-se-á, porém – quiçá – que em causa está agora uma “pena única” – e nova – de “11 anos de prisão”, (resultado de um cúmulo jurídico efectuado com aquelas aludidas 2 penas parcelares), tendo por referência uma moldura de 9 a 15 anos e 3 meses de prisão, constituindo, (também) assim, uma “pena aplicável superior a 10 anos de prisão”, (para efeitos da dita “alínea g”).

Ora, é – totalmente – verdade.

Todavia – notando-se que da dita decisão do Tribunal Judicial de Base que operou o referido cúmulo jurídico já foi interposto recurso para o Tribunal de Segunda Instância, (assegurado estando assim o “segundo grau de jurisdição”, e que não existem recursos “ad eternum” ou “ad infinitum”) – em causa (apenas) estando, agora, o recurso para esta Instância, e sem embargo do muito mérito que um tal entendimento possa merecer, (e diga-se, desde já, que merece, até por ser “favorável ao arguido”), cremos que o mesmo escapa (e colide com) a regulamentação prevista (e pretendida) no aludido preceito legal.

É que o comando em questão tão só elege como pressuposto para a recorribilidade – da decisão confirmatória do Tribunal de Segunda Instância – a “medida da pena aplicável ao crime”, (ou, em caso de “concurso de crimes”, a “cada um dos crimes”) cometido(s), abstraindo-se, (completamente), da “pena (única) aplicável ao cúmulo jurídico” (ou da pena única deste resultante).

Este, em nossa opinião, o sentido (útil) que se mostra de extrair da expressão “mesmo em caso de concurso de infracções”, aliás, como decidido tem sido por este Tribunal de Última Instância, que tratando de questão próxima, considerou e consignou, nomeadamente, que:

“A expressão “mesmo em caso de concurso de infracções” constante das alíneas f) e g) do n.º 1 do art.º 390.º do Código de Processo Penal, significa que, para que seja admissível recurso de decisão do Tribunal de Segunda Instância para o Tribunal de Última Instância, é necessário que a penalidade aplicável, em abstracto, a cada crime, exceda 8 ou 10 anos de prisão, respectivamente, nos casos das alíneas f) e g) do n.º 1 do art.º 390.º, ainda que esteja em causa um concurso de infracções”, (cfr., v.g., os Acs. de 17.09.2003, Proc. n.° 20/2003 e de 15.10.2003, Proc. n.° 25/2003);

“Nos termos das al.s f) e g) do n.° 1 do art.° 390.° do Código de Processo Penal, quando está perante o concurso de crimes, a pena a considerar para aferir a recorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância é o limite máximo da pena abstracta aplicável a cada crime, e não a soma das penas máximas abstractas de todos os crimes objecto do concurso.
Para que seja admissível recurso de decisão do Tribunal de Segunda Instância para o Tribunal de Última Instância, é necessário que a penalidade aplicável, em abstracto, a cada crime, exceda 8 ou 10 anos de prisão, respectivamente, nos casos das duas alíneas acima referidas, ainda que esteja em causa um concurso de infracções”, (cfr., v.g., o Ac. de 24.10.2003, Proc. n.° 24/2003); e,

“Em caso de concurso de crimes, para que seja admissível recurso de decisão do Tribunal de Segunda Instância para o Tribunal de Última Instância, é necessário que a penalidade abstracta aplicável a cada crime exceda oito ou dez anos de prisão, respectivamente, nos termos das alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 390.º do Código de Processo Penal”, (cfr., v.g., o Ac. de 13.04.2005, Proc. n.° 1/2005 e, mais recentemente, de 06.06.2019, Proc. n.° 44/2019).

Admite-se – e, como é óbvio, respeita-se – outro entendimento que considere (eventualmente) que o “alcance” da dita expressão (e do preceito em questão) não deva ser o que se deixou exposto, reconhecendo-se à “situação dos autos” contornos (e características) que levem a crer que a mesma não tenha sido objecto de oportuna e devida ponderação pelo legislador, justificando-se, assim, (plenamente), uma “intervenção (judicial)” a fim de lhe dar adequada resposta.

É – certamente – um ponto de vista.

Contudo, não nos parece que em face do regulamentado se possa falar de “vazio legal”, e, «de jure constituto», também não se nos apresenta de adoptar tal entendimento.

O sistema de “direito processual penal” estatuído no C.P.P.M., aprovado pelo D.L. n.° 48/96/M, (e vigente desde o dia 01.04.1997, cfr., art. 6° do dito D.L.), foi já, como sabido é, várias – bastantes – vezes objecto de alterações através de intervenções legislativas efectuadas sobre o que inicialmente se prescreveu, inclusivé, em matéria do “regime de recursos”; (cfr., v.g., a Lei n.° 9/1999, a Lei n.° 9/2013 e, a mais recente, a Lei n.° 4/2019, todas elas introduzindo aí significativas alterações).

E, nesta conformidade, (atento ao que se tem vindo a decidir sobre a matéria; cfr., v.g., os citados Acs. deste T.U.I.), e tendo-se em atenção o estatuído no art. 8° do C.C.M. (quanto às “regras sobre a interpretação das leis”), razoável não se nos mostra de considerar que se está perante uma “situação” (lacunosa) em que legítima fosse uma “intervenção interpretativa judicial”, (correctiva ou integrativa), de forma a acomodar uma decisão de admissão do recurso trazido a esta Instância.

Não se nega que (extremamente) tentadora se apresenta uma tal “solução”, (especialmente, como já se referiu, por ser favorável ao arguido).

Porém, pelos motivos que se deixaram expostos, cremos que a mesma, (por ora), não se mostra possível, isto, sem prejuízo de a nível de direito a constituir dever ser objecto de merecida atenção.

Tudo visto, resta decidir como segue.

Decisão

3. Em face do que se deixou exposto, em conferência, acordam em não admitir o presente recurso, (sem efeito ficando todo o processado desde o despacho que o admitiu).

Custas do incidente pelo recorrente, com a taxa de justiça de 3 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$3.500,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 24 de Setembro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei (segue-se declaração de voto)

Declaração de voto
  Tendo feito o exame preliminar e ouvido as opiniões do recorrente e do Ministério Público sobre a questão de (in)admissibilidade do recurso, decidi, na qualidade da relatora do presente recurso, admitir o mesmo e proferi a decisão sumária, rejeitando o recurso. Desta decisão sumária, o recorrente reclamou para a conferência.
  Salvo o elevado respeito por opinião diferente, mantenho a opinião de dever ser admitido o recurso.
  Nos termos do art.º 389.º do Código de Processo Penal, é permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
  Conforme este princípio geral, é permitido recorrer para o tribunal superior de todos os acórdãos, sentenças e despachos, salvo se a sua irrecorribilidade estiver expressamente prevista na lei (incluindo o Código de Processo Penal e as leis avulsas).
  O art.º 390.º n.º 1 do CPP especifica expressamente as várias situações em que não é permitido recorrer dos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Segunda Instância para o Tribunal de Última Instância, entre os quais se contam os acórdãos proferidos em recurso pelo TSI que não ponham termo à causa, os acórdãos absolutórios proferidos em recurso pelo TSI que confirmem decisão de primeira instância, os acórdãos proferidos em recurso pelo TSI, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos e os acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelo TSI que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos (art.º 390.º n.º 1, alíneas d), e), f) e g)).
  Em suma, o legislador estipula como regra geral que é admissível recurso ordinário de todas as decisões feitas pelo tribunal e prevê de forma expressa algumas excepções, em que não é admissível recurso ordinário para o TUI.
  O objecto do presente recurso é o acórdão proferido pelo TSI, no recurso interposto pelo recorrente da decisão do Tribunal Judicial de Base que lhe operou o cúmulo jurídico das penas, pois o recorrente tinha sido condenado, em dois processos diferentes, nas penas de prisão de 9 anos e 6 anos e 3 meses, respectivamente, pela prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 17/2009.
  Relativamente aos crimes pelos quais foi condenado o recorrente, pode haver recurso para o TUI.
  A particularidade do presente recurso reside no já trânsito em julgado de ambas as decisões que condenaram o recorrente nas duas penas parcelares incluídas no cúmulo jurídico operado.
  O legislador não estabelece uma solução explícita sobre a dita questão concreta.
  Tendo em conta a regra geral de recurso acima referida e o facto de que o presente caso não se integra em nenhuma das situações em que o legislador prevê expressamente a irrecorribilidade de decisões, inclino-me a entender que é permitido recorrer da decisão de cúmulo jurídico proferida pelo Tribunal de Segunda Instância.
  A circunstância de existirem decisões já transitadas em julgado sobre as penas parcelares não pode obstar à admissão do recurso, na medida em que o presente recurso não visa uma nova apreciação das penas parcelares, mas sim uma apreciação da pena única aplicada ao recorrente resultante do cúmulo jurídico, que é uma pena nova, distinta daquelas duas penas parcelares.
  Eis a minha declaração de voto.
2021-9-24
Song Man Lei

Proc. 34/2021 Pág. 20

Proc. 34/2021 Pág. 21