打印全文
Processo nº 208/2020 Data: 15.10.2021
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Negócio jurídico.
Nulidade.
Ineficácia.
“Interessado”; (legitimidade).
Titular de direito afectado pelo negócio.
“Nulidade substancial” (própria).
“Nulidade consequencial”.


SUMÁRIO

1. Nos termos do art. 279° do C.C.M.: “A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.

2. Nesta conformidade, (e atentos os termos do art. 600°, n.° 1 do mesmo C.C.M.), adequado é considerar que a declaração da nulidade de actos e negócios jurídicos pode ser requerida pelos “credores” (e seus interessados), tanto para impugnar actos (nulos) dos quais resulte uma “diminuição do património dos devedores”, assim como para impugnar actos através dos quais se “forjam dívidas fictícias” a fim de se impor ao (verdadeiro) credor um “concorrente fictício em sede de liquidação do património do devedor”.

3. Porém, importa ter presente que o “interesse” na declaração de nulidade tem de se reflectir “directamente” no acto (ou actos) jurídico(s) impugnado(s) que se indica(m) como (directamente) causador(es) da diminuição da garantia patrimonial do credor, (requerente), não bastando um pretenso (e eventual) “efeito à distância” que se possa vir a obter em relação a outros actos jurídicos, pela “projecção” da nulidade de actos jurídicos anteriores, (especialmente, da eventual nulidade de actos que não traduzem ou protegem o interesse “imediato” e “directo” do credor).

O relator,

José Maria Dias Azedo

Processo nº 208/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A “A”, (“甲”), A., propôs no Tribunal Judicial de Base acção declarativa com processo comum ordinário contra:
- “B”, (“乙”),
- “C”, (“丙”),
- “D”, (“丁”), e,
- “E”, (“戊”), (1ª, 2ª, 3ª e 4ª RR.), todas com os restantes elementos identificativos dos autos.

A final da petição inicial que apresentou, formulou pedido no sentido de:

“1) ser declarado nulo o “Contrato de cooperação para o desenvolvimento” celebrado em 18/03/1992, por ser objecto de simulação;
2) ser declarada nula a confissão de dívida e hipoteca celebrado em 02/04/1992, devido à simulação;
3) ser declarada nula a procuração irrevogável passada em 02/04/1992;
4) ser declarada nula a escritura pública do contrato de compra e venda outorgada em 30/10/2003;
5) ser declarada nula a procuração passada em 19/12/2003;
6) ser declarada nula a escritura pública do contrato de compra e venda entre a 2ª Ré e a 3ª Ré outorgada em 08/01/2004;
7) ser ordenado o cancelamento do registo de hipoteca do prédio em causa a favor da 2ª Ré efectuado pela inscrição n° XXXX, de 10/04/1992, por o mesmo ser nulo;
8) ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição do prédio em causa a favor da 2ª Ré efectuado pela inscrição n° XXXXXG, de 07/11/2003 por o mesmo ser nulo;
9) ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição do prédio em causa a favor da 3ª Ré efectuado pela inscrição n° XXXXXG, de 19/01/2004 por o mesmo ser também nulo;
(…)”; (cfr., fls. 2 a 12 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

O processo – autuado e registado com a referência CV2-18-0097-CAO – seguiu os seus normais termos, e, finda a fase dos articulados, proferiu o Mmo Juiz despacho saneador-sentença, no qual, (em abreviada síntese), considerou a A. parte ilegítima em relação aos pedidos de “declaração de nulidade” que deduziu e identificou com os “números 1), 2), 3) e 5)”, (na medida em que estes “actos” não a envolviam e apenas diziam respeito às RR.), considerando, também, que ainda que assim não fosse de entender, a sua eventual procedência, (ou seja, nulidade), não implicava a “nulidade das escrituras públicas de compra e venda outorgadas em 30.10.2003 e 08.01.2004”, peticionada e identificada com os “números 4) e 6)”, (pois que a suposta nulidade das procurações apenas daria lugar a uma “representação sem poderes” nas ditas escrituras, em causa tão só podendo eventualmente estar uma questão de “ineficácia”), desta forma concluindo que a acção proposta era totalmente improcedente, com a consequente absolvição das (1ª, 2ª, 3ª e 4ª) RR.; (cfr., fls. 2122 a 2131).

*

Em sede do recurso que do assim decidido apresentou a A. proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 10.09.2020, (Proc. n.° 156/2020), onde se considerou – essencialmente – que à mesma (recorrente) assistia legitimidade para os pedidos de declaração de nulidade que tinha deduzido relativamente aos referidos “actos/negócios jurídicos”, dado que a dita nulidade podia ter efeitos quanto à “conservação da garantia patrimonial” das RR., e, assim, havendo “matéria de facto” alegada relevante e controvertida, devia a acção prosseguir os seus termos para julgamento e decisão final; (cfr., fls. 2194 a 2212-v).

*

Inconformadas, do referido Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado vem agora recorrer a “C” e a “D”, (as 2ª e 3ª RR.), peticionando a sua revogação com a manutenção da decisão pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base proferida; (cfr., fls. 2227 a 2238 e 2240 a 2252).

*

Cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

2. Feito o – breve – relatório que antecede, em apertada síntese se deixou exposto o porque e o sentido das decisões proferidas e recorridas em sede dos presentes autos assim como o essencial da sua tramitação processual.

Porém, imprescindível é um – ainda que sucinto – acrescento quanto à “situação factual” em que assentam as pretensões das partes que nesta lide recursória se confrontam.

Na verdade, também temos como (totalmente) correcto e adequado que “A resolução de litígios implica que se tenha uma percepção, tão completa quanto possível da realidade integrada ainda pelo circunstancialismo que rodeia os factos. Mas em lugar de se privilegiarem certos factos isolados, importa que, como ocorre com a pintura impressionista, se aprecie todo o quadro fáctico de forma distanciada, postura que os tribunais estão aptos a adoptar, considerando a autonomia conferida aos respectivos juízes. Passo essencial para evitar que, através de um seccionamento da realidade, se impeça uma correcta, justa e formal integração da realidade, mediante o acolhimento de argumentos jurídicos inconsistentes e artificiais que acabem por contrariar o direito material”; (cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 18.06.2014, Proc. n.° 315/05).

Nesta conformidade, e numa tentativa de clarificar e identificar o que, em bom rigor, em causa está, necessário se mostra consignar o que segue, e que, em nossa opinião, consiste numa adequada síntese do que de relevante se colhe das peças existentes e actos processuais praticados assim como do grande volume de documentos juntos aos presentes autos.

Assim, vejamos.

Pois bem, antes de mais, cabe notar que tudo “gira” em torno do “terreno com o n.° 31 da [Avenida]”, descrito sob o número XXXXX, a fls. 184-v, do Livro B36 da Conservatória do Registo Predial de Macau, cuja aquisição do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, encontrava-se inscrita a favor da (1ª R.) “B”, sob o n.° XXXXX a fls. 3 do Livro G57, de 28.04.1982 da dita Conservatória.

E isto dito, consigna-se que resulta, (também), dos presentes autos, que:
A) - em 18.03.1992, esta (1a R.) “B” celebrou com a (2ª R.) “C”, (ora 1ª recorrente), um “contrato de cooperação para o desenvolvimento” do já referido terreno, (cfr., “n.° 1 do pedido da A.”, ora recorrida);
- no âmbito deste “contrato de cooperação”, a dita “C” concordou em investir HKD$162.000.000,00 na construção no aludido terreno de um edifício, ficando a “B” responsável pela organização/ construção, e garantindo que os lucros deste projecto seriam no montante de HKD$81.000.000,00;
B) - em 02.04.1992, (e na sequência do atrás referido “acordo”), a “B” outorgou uma escritura pública de confissão de dívida e hipoteca a favor da “C”, confessando-se devedora da quantia de HKD$243.000.000,00 e constituindo uma hipoteca sobre o aludido imóvel, (cfr., “n°s 2 e 7 do pedido da A.”);
C) - nesta mesma data, (02.04.1992), a “B” emitiu também uma procuração irrevogável a favor da (mesma) “C”, através da qual lhe conferiu amplos poderes sobre o referido imóvel, nomeadamente, para dele “dispor” assim como para a “prática de negócios consigo mesmo”, (cfr., “n.° 3 do pedido da A.”);
D) - em 21.06.1994, a (A.) “A”, (ora recorrida), celebrou com a (1ª R.) “B”, um contrato-promessa de compra e venda de 91 lugares de estacionamento do aludido edifício a ser construído no n.° 31 da [Avenida];
- ficou acordado que o preço de cada um dos lugares de estacionamento era de HKD$175.000,00, sendo o valor total de HKD$15.925.000,00, tendo, aquela, (a A.), entregue à “B”, o montante total de HKD$5.300.000,00 a título de início de pagamento;
E) - em 27.12.2002, a (2ª R. e ora 1ª recorrente) “C”, na qualidade de procuradora da “B”, celebrou com a (4ª R.) “E”, um contrato-promessa de compra e venda do prédio pelo preço de HKD$50.600.000,00;
F) - em 30.10.2003, a mesma “C”, (na mesma qualidade de procuradora da “B”), outorgou escritura pública de compra e venda, vendendo a si própria o dito prédio pelo preço de MOP$52.118.000,00, tendo esta aquisição ficado registada pela inscrição n.° XXXXXG de 07.11.2003, (cfr., “n°s 4 e 8 do pedido da A.”);
H) - em 19.12.2003, a dita “C” emitiu uma procuração a favor da (referida 4ª R.) “E”, conferindo-lhe amplos poderes de administração e disposição sobre o mencionado imóvel, (cfr., “n.° 5 do pedido da A.”);
I) - em 08.01.2004, a “C”, representada pela “E”, vendeu à (3ª R. e ora 2ª recorrente) “D”, o prédio em questão pelo preço de MOP$63.000.000,00, tendo a aquisição ficado registada com a inscrição n.° XXXXXG de 19.01.2004, (cfr., “n°s 6 e 9 do pedido da A.”).

Aqui chegados, cabe notar que a petição inicial pela A. e ora recorrida apresentada e com a qual se iniciou a presente lide deu entrada no Tribunal Judicial de Base em 04.09.2018, após sobre, ou em relação à – mesma – “matéria” aqui agora em questão se ter proferido decisões finais já transitadas em julgado em sede de outras “três acções” (e um processo crime contra as RR. instaurado e, entretanto, já arquivado).

São estas:
- a acção ordinária “CV3-04-0005-CAO”, pela mesma A. apresentada em 23.02.2004, e onde, por sentença de 31.03.2005 se declarou resolvido o referido “contrato-promessa” com a (aqui) 1ª R. (“B”) celebrado em 21.06.1994 em relação aos 91 lugares de estacionamento, com a condenação desta no pagamento (à A.) do dobro do sinal, (MOP$10.631.800,00);
- a acção ordinária “CV2-04-0019-CAO”, pela mesma A. proposta contra as aqui 1ª, 2ª e 3ª RR., (“B”, “C” e “D”), que deu entrada no Tribunal Judicial de Base em 14.07.2004, onde, em síntese, peticionava (também) a declaração da nulidade, (por simulação), das compras e vendas pelas (ou entre as) RR. celebradas e formalizadas pelas escrituras outorgadas em 30.10.2003 e 30.01.2004 assim como o cancelamento dos respectivos registos na Conservatória do Registo Predial, e que, por sentença de 15.01.2013, (confirmada por Ac. do T.S.I. de 21.11.2013, Proc. n.° 362/2013), foi julgada improcedente; e,
- a acção “CV3-12-0051-CAO”, pela aqui 1ª R. (“B”) proposta contra as 2ª, 3ª e 4ª RR., (“C”, “D” e “E”), apresentada em 22.06.2012, onde, em síntese, se pedia – a declaração de nulidade dos (mesmos) negócios celebrados pelas ditas RR., e que por sentença de 30.07.2015, foi também julgada improcedente.

Ora, o que se deixou consignado, é, por si só, bastante explícito do que se podia chamar de (mais) um “infeliz exemplo” de determinadas atitudes comerciais e financeiras adoptadas em sede de investimentos imobiliários e que, (para se não dizer outra coisa), “não acabam bem”…, pondo, também, em evidência – muito infelizmente – uma utilização, (do que se nos mostra de considerar), “menos própria” do direito processual civil…

Seja como for, clamados que fomos a nos pronunciar – e notando-se que com recurso a pontuais “alterações” no que toca a determinados “factos” invocados e à “causa de pedir” agora alegada se afastou a aplicação da regulamentação prevista para as situações de “caso julgado”, e, apresentando-se-nos claro que com os pedidos deduzidos na presente acção mais não pretende a A., ora recorrida, que fazer com que, no final, “tudo volte ao início”, ou seja, que o imóvel em causa nos presentes autos volte a ser propriedade (exclusiva) da 1ª R. “B” para efeitos de, através dele, da mesma poder obter o pagamento do dobro do sinal que já se encontra decidido na atrás referida acção CV3-04-005-CAO – vejamos que solução adoptar.

Pois bem, invocando a A., ora recorrida, o instituto da “simulação” dos “negócios” pelas, (ou entre as), RR. celebrados para justificar os pedidos que deduziu, e assim obter a declaração da sua nulidade, indispensável é aqui reflectir sobre seu regime legal.

Sem mais demoras, vejamos, (ainda que de forma algo abreviada).

Pois bem, (integrado na parte do C.C.M. referente ao “negócio jurídico”, mais concretamente, à “falta e vícios da vontade”, e com a epígrafe “simulação”), preceitua o art. 232° que:

“1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2. O negócio simulado é nulo”.

Regulando a “simulação relativa”, prescreve também o art. 233° que:

“1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.
3. Para efeitos do número anterior, considera-se suficiente a observância no negócio simulado da forma exigida para o dissimulado, contanto que as razões determinantes da forma do negócio dissimulado não se oponham a essa validade”.

E, no que toca à “legitimidade para arguir a simulação” preceitua o seguinte art. 234° que:

“1. Sem prejuízo do disposto no artigo 279.°, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta.
2. A nulidade pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar”.

In casu, e para se apreciar a questão da “(i)legitimidade” da A., ora recorrida, importa então ponderar no estatuído no (referido) art. 279° que, integrado na secção respeitante à “nulidade e anulabilidade do negócio jurídico” preceitua que:

“A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.

Ora, este Tribunal de Última Instância já teve oportunidade de se pronunciar sobre o sentido e alcance do preceituado neste comando legal, considerando, nomeadamente que:

“Em princípio, a nulidade do negócio jurídico por simulação pode ser invocado por qualquer interessado, ao abrigo dos art.°s 234.°, n.° 1 e 279.° do Código Civil (CC).
Entende-se por interessado o sujeito de qualquer relação jurídica afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos a que o negócio se dirigia”; (cfr., v.g., o Ac. de 21.01.2009, Proc. n.° 5/2008; podendo-se, também, no mesmo sentido, ver ainda, Mota Pinto in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pág. 620, Pires de Lima e Antunes Varela in, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., pág. 263, R. Alarcão in, “Confirmação”, 1°-63, nota 68, e Rodrigues Bastos in, “Relações Jurídicas”, 4°-14).

No fundo, e prescrevendo o dito comando legal sobre a “nulidade do negócio jurídico”, adequado parece de concluir que a mesma pode ser invocada por qualquer “interessado” titular de qualquer “direito afectado pelo mesmo negócio”.

Porém, para um melhor (e mais completo) enquadramento (jurídico) da “questão” a apreciar e decidir, (e para boa compreensão do que se deixou exposto), adequado é também chamar à colação o art. 600° do C.C.M. que – em sede do Livro II, respeitante ao “Direito das Obrigações”, Capítulo V, quanto à “Garantia Geral das Obrigações”, e na secção relativa à “Conservação da garantia patrimonial” – preceitua que:

“1. Os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor.
2. A nulidade aproveita não só ao credor que a tenha invocado, como a todos os demais”.

Em face dos preceitos acabados de transcrever, cabe, (essencialmente e, para já), reter dois conceitos (fundamentais) para o que se nos mostra de considerar uma boa resolução da questão em causa: o de “interessado”, porque “afectado pelo negócio”, (cfr., art. 279°), e o de “credor”, (cfr., art. 600°).

Pronunciando-se sobre esta matéria, diz o Prof. Manuel Trigo que:

“A garantia geral das obrigações, pese embora o devedor possa requerer judicialmente o cumprimento e a execução do património do devedor, uma vez que pode variar muito pela evolução do património e ser posta em causa a sua consistência, deve ser acautelada, razão pela qual se prevêem meios da sua conservação ao dispor do próprio credor, que permitem reagir contra actos ou omissões do devedor dos quais resulte a diminuição ou a perda da garantia geral das obrigações.
Os meios de conservação previstos na lei são, sucessivamente, a declaração de nulidade (art. 600.°), a sub-rogação do credor ao devedor (arts. 601.° e ss), a impugnação pauliana (arts. 605.° e ss) e o arresto (arts. 615.° e ss)”.

E, concretamente quanto à referida declaração de nulidade do art. 600° do C.C.M. considera que:

“A nulidade é invocável a todo o tempo por todos os interessados e pode ser invocada oficiosamente pelo tribunal. Tem como efeitos a restituição de tudo o que tiver sido prestado, ou, não sendo possível essa restituição, o valor correspondente; é o regime geral dos arts. 279.° e 282.°. Assim sendo, como interessados, podiam já os credores invocar a nulidade dos actos praticados cm prejuízo da garantia geral.
Sendo isso certo, porém, com a regulamentação da declaração de nulidade como meio de conservação da garantia geral há ainda a ganhar, uma vez que se esclarecem aspectos relevantes do seu regime no art. 600.°.
Quanto aos pressupostos da sua admissibilidade, primeiro, nos termos do n.° 1 do art. 600.°, a lei declara expressamente que os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, em especial dos actos simulados. Se quando se trata de nulidade proveniente da simulação, os credores também têm legitimidade para arguir a nulidade, porém, conforme o n.° 1 do art. 235.°, a nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida contra terceiro de boa fé que do titular aparente adquiriu direitos sobre o bem que foi objecto do negócio simulado (cfr. n.°s 2 e 3; cfr. ainda n.°s 1 e 2 do art. 236.°). Segundo, esclarece-se que os credores podem invocar a nulidade de actos praticados pelo devedor, quer se trate de actos anteriores quer de actos posteriores à constituição do crédito. Terceiro, em qualquer dos casos, o credor deve ter, e provar que tem, interesse nessa declaração de nulidade, não sendo necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor”.

Ora, como já se viu, e assim se deixou consignado, a A., ora recorrida, apresenta-se na presente lide – tão só – como “credora da 1ª R.”, “B”, (quanto ao dobro do sinal que lhe pagou), certo sendo, por sua vez, que nenhum “crédito” possui sobre as restantes (2ª, 3ª e 4ª) RR..

E, nesta conformidade, (ainda que começando-se pelo fim), cabe reflectir sobre o “direito” de que se arroga para peticionar a nulidade da “procuração de 19.12.2003” e subsequente “escritura pública de 08.01.2004”, actos e negócios – atrás referenciados com as letras H) e I) – que lhe são (absolutamente) alheios?

Dir-se-á, porém, que a A., ora recorrida, apenas alegou que tais actos seriam nulos por força (e efeito) da nulidade dos actos e negócios jurídicos que lhes precederam, não padecendo, por isso, os mesmos, de uma “nulidade substantiva própria”, mas antes, e tão só, de uma “nulidade consequencial”.

Todavia, nessa ordem de ideias, não se vislumbra como considerar que a mencionada “procuração” em 19.12.2003 pela 2ª R., “C”, passada a favor da 4ª R., “E”, possa ser nula, uma vez que a “relação jurídica” que lhe está subjacente, (envolvendo tão só a 2ª e a 4ª RR.), é (totalmente) autónoma e independente em relação ao “Contrato de Cooperação para o Desenvolvimento” celebrado em 18.03.1992, à escritura pública de “Confissão de Dívida e Hipoteca” outorgada em 02.04.1992 e à “Procuração Irrevogável” emitida em 02.04.1992, (“actos e negócios jurídicos” que lhe precederam, e em que, apenas, tiveram intervenção a 1ª e 2ª RR., ou seja, a “B” e a “C”).

Assim, e não se divisando qualquer “relação” entre a (eventual) nulidade do referido “primeiro bloco” de actos e negócios jurídicos e a “procuração” passada pela em 19.12.2003, não se vislumbra que tenha a A., ora recorrida, qualquer “interesse” para pedir declaração da sua nulidade.

Em relação à “escritura pública de compra e venda de 08.01.2004” (outorgada entre a 2ª e a 4ª RR.), apresenta-se-nos igualmente claro que a sua eventual nulidade não é – nem pode ser – consequência (ou efeito) da alegada nulidade dos aludidos “actos e negócios jurídicos”, (ou seja, o “Contrato de Cooperação para o Desenvolvimento”, da “escritura pública de reconhecimento de dívida e hipoteca”, nem tão pouco, da Procuração Irrevogável emitida pela 1ª R. a favor da 2ª R., em 02.04.1992).

Poder-se-ia, quiçá, ponderar no sentido de que a suposta nulidade de tal escritura (de 08.01.2004) poderia dever-se a uma (eventual) aquisição a “non domino”, derivada da nulidade imputada à escritura de compra e venda antes celebrada (entre a 1ª e a 2ª RR.) em 30.10.2003.

Porém, (e até mesmo) como para a (própria) A., ora recorrida, esta escritura pública de compra e venda de 30.10.2003 – apenas – é nula porque celebrada com base no já referido “Contrato de Cooperação para o Desenvolvimento” (celebrado em 18.03.1992), na dita escritura pública de Confissão de Dívida e Hipoteca outorgada em 02.04.1992 e na Procuração Irrevogável emitida em 02.04.1992, vejamos, então, se assim é, e se, nessa hipótese, lhe assiste “interesse” na declaração da sua nulidade.

Ora, como é sabido na “garantia geral das obrigações”, “É o património bruto que se tem aqui em vista, quer dizer, o constituído pelos valores activos antes de descontados os passivos”; (cfr., v.g., M. J. Almeida Costa in, “Direito das Obrigações”, 12ª ed., pág. 843).

Por sua vez, e como igualmente se tem como pacífico, a declaração da nulidade de actos e negócios pode ser requerida pelos “credores” (e seus interessados) tanto para impugnar actos (nulos) dos quais resulte uma “diminuição do património dos devedores”, assim como para impugnar actos através dos quais se “forjam dívidas fictícias” a fim de se impor ao (verdadeiro) credor um “concorrente fictício em sede de liquidação do património do devedor”; (nesse sentido, cfr., v.g., M. J. Almeida Costa in, “Direito das Obrigações”, 12ª ed., pág. 843).

Considerando que através do referido “negócio” a 1ª R. “B” se obrigou a devolver à 2ª R., “C”, HKD$243.000.000,00, (tendo ainda prestado garantias para esse efeito), poderíamos ser tentados a concluir que a A., (ora recorrida), teria “interesse” em peticionar a sua nulidade.

Porém, mostra-se adequado recordar que, como se decidiu no atrás citado Acórdão deste Tribunal de Última Instância, (apenas) é “interessado”, o “sujeito de qualquer relação jurídica afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos a que o negócio se dirigia”.

E, então, razoável se nos apresenta de não olvidar e ter presente que o “interesse” na declaração de nulidade tem de se reflectir – sublinhe-se – “directamente” no acto (ou actos) jurídico(s) impugnado(s) que se indica(m) como (directamente) causador(es) da diminuição da garantia patrimonial do credor, (requerente).

Na verdade, não basta – nem pode valer – um pretenso (e eventual) “efeito à distância” que se possa vir a obter em relação a outros actos jurídicos, pela “projecção” da nulidade de actos jurídicos anteriores, (especialmente, da eventual nulidade de actos que não traduzem ou protegem o interesse “imediato” e “directo” do credor), não se podendo assim perder de vista – cabendo mesmo destacar – que, in casu, o referido “negócio”, nos termos em que pela A. vem descrito, apenas teria, (e no limite), a virtualidade de envolver a constituição, (alegadamente fictícia), de uma “dívida” no património da 1ª R., “B”, (não tendo quaisquer outras implicações imediatas).

E, então, se o que (em bom rigor) pretende a A. é que o “prédio” em questão nos presentes autos volte à esfera jurídica da dita 1ª R. “B” para aí ser executado para pagamento do seu crédito, (não estando em causa um interesse de exclusão de um eventual concorrente fictício da liquidação do património da 1ª R.), evidente se nos mostra que esse desiderato não se obtém com a pretendida declaração de nulidade do “Contrato de Cooperação para o Desenvolvimento”, da “escritura de reconhecimento de dívida e hipoteca”, ou mesmo da aludida “procuração irrevogável”; (aliás, também no Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância proferido e ora recorrido se reconhece que o interesse da A. na nulidade daqueles actos jurídicos não se prende com uma diminuição da garantia patrimonial provocada por esses actos, mas antes com a sua “repercussão” que a nulidade desses actos poderia ter nas escrituras públicas de compra e venda de 30.10.2003 e 08.01.2004, uma vez que assim se permitiria que o prédio voltasse a integrar a esfera jurídica da 1ª R. “B”, podendo vir a ser executado para pagamento do crédito da A.).

Nestes termos, (e ressalvado o devido respeito por opinião contrária), adequado e razoável se mostra de se reconhecer que, em causa, também não está qualquer imposição à A. de um “concorrente fictício” na liquidação do património da 1ª R. “B”.

Com efeito, e como se deixou claramente e consignado, não se pode olvidar que o referido “Contrato de Cooperação para o Desenvolvimento” foi assinado em “18.03.1992”, que a “escritura pública de reconhecimento de dívida e hipoteca” foi outorgada em “02.04.1992”, e que a “procuração irrevogável” foi também emitida nesta mesma data (02.04.1992), sendo de salientar que o “contrato-promessa” entre a A. e a 1ª R. “B” foi apenas assinado em “21.06.1994”, (mais de 2 anos depois), e que o crédito de MOP$10.631.800,00 que a A. tem sobre esta só veio a ser judicialmente reconhecido após da decisão de resolução do referido contrato-promessa por sentença proferida em “31.03.2005”, (na acção n.° CV3-04-0005-CAO).

Ora, assim postas as coisas, (e independentemente do demais), a verdade que se evidencia é que o “crédito da A.”, apenas surge muito depois da celebração dos “actos e negócios” jurídicos (entre a 1ª e a 2ª RR.), o que, em nossa opinião, impõe – cremos nós, a (bastante) natural – conclusão de que se não criaram ou forjaram “dívidas fictícias” para efeitos de uma (eventual) concorrência de credores à A., (até mesmo, porque, a 2ª R. “C” já se terá feito pagar, pelo menos em parte, com o prédio, e, como se viu, nada reclamou, em nenhum processo que sobre a matéria correu termos).

Nesta conformidade, adequado se mostra de afirmar que a “relação jurídica” da A. com a 1ª R. “B” não ficou (em nada) “afectada” com a celebração de qualquer um dos referidos “actos”.

E, deste modo, visto cremos que se mostra de concluir que, se o acto que provoca eventual diminuição da garantia patrimonial da A. é a “escritura pública de compra e venda de 30.10.2003”, então, esse o acto que deve ser impugnado (ao abrigo do art. 600° do C.C.M.), e não os seus “actos prévios” que, quando muito, serviriam de motivação à realização daquela escritura, demonstrado ficando desta forma que, à A., ora recorrida, não assiste qualquer interesse na declaração de nulidade do referido Contrato de Cooperação para o Desenvolvimento, na escritura pública de reconhecimento de dívida e hipoteca ou na procuração irrevogável, (pois que, como se deixou consignado, só pode recorrer ao art. 600° do C.C.M. o “sujeito de qualquer relação jurídica afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos a que o negócio se dirigia”).

Aliás, (seja como for), e ainda que, por mera hipótese se mostrasse de admitir que à A. assistia legitimidade para impugnar esses “actos jurídicos” para efeitos de obter uma “projecção” dessa nulidade na escritura pública de 30.10.2003, (e, consequente nulidade da escritura de 08.01.2004 por aquisição a “non domino”), sempre se teria de notar que essa dita “projecção” não tem qualquer fundamento jurídico que a sustente, sendo de referir, como – bem – notou também o Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base, a consequência da celebração da escritura pública de 30.10.2003 com base na procuração irrevogável (nula) não é a “nulidade da escritura”, mas tão só a da sua “ineficácia” em relação ao representado.

Com efeito, e como observa P. L. Pais de Vasconcelos: “(…) a declaração de nulidade da procuração naturalmente irrevogável implica a extinção dos poderes representativos, com efeito retroactivo. (…) Como se viu já, o problema surge quando, à data da declaração de nulidade da procuração naturalmente irrevogável, já foi celebrado um negócio jurídico com base na procuração nula. Nestes casos, uma vez que a declaração de nulidade extingue, com efeitos retroactivos os poderes de representação, não há poderes de representação. Deste modo, não havendo poderes de representação, o negócio celebrado deverá considerar-se como celebrado em representação sem poderes, nos termos do art. 268.° do Código Civil”; (in, “A Procuração Irrevogável”, 2ª ed., pág. 264 e 265).

Nesta conformidade, não se pode olvidar que nos termos do (equivalente) art. 261° do C.C.M.:

“1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. Contudo, o negócio celebrado por representante sem poderes é eficaz em relação ao representado, independentemente de ratificação, se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justificassem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do representante, desde que o representado tenha conscientemente contribuído para fundar a confiança do terceiro.
3. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
4. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
5. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante”.

E, como se nos mostra ser entendimento firme e unânime, o art. 600° do Código Civil (apenas) “confere aos credores o direito de atacarem os actos nulos, e não os actos – meramente – anuláveis do devedor”, (cfr., v.g., Mário Júlio de Almeida Costa in, “Direito das Obrigações”, pág. 849 e 850, nota (3), in fine), tornando assim imperativa a consideração no sentido de que aos “credores”, tão só assiste legitimidade para requerer a “nulidade” dos actos impugnados, o mesmo já não sucedendo para requerer a sua “anulação”, e, muitos menos, a sua “ineficácia”.

Dest’arte, e demonstrado estando que a eventual nulidade daqueles “actos jurídicos”, (em especial da dita “procuração irrevogável”), não implica a nulidade da escritura pública de compra e venda de 30.10.2003, impõe-se-nos concluir que a presente acção é “manifestamente inviável”, pois que à A., ora recorrida, não assiste “legitimidade substantiva” para os pedidos de nulidade que deduziu – sobre actos jurídicos que apenas projectam uma situação de “ineficácia” quanto ao acto que, eventualmente, atinge a sua garantia patrimonial – havendo, assim, que se revogar a decisão recorrida para ficar a valer a proferida pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base.

Decisão

3. Em face do que se deixou exposto, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso.

Custas pela A., (recorrida), com a taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, nada vindo e após trânsito, remetam-se os autos ao Tribunal Judicial de Base com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 15 de Outubro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 208/2020 Pág. 32

Proc. 208/2020 Pág. 33