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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.º 48 / 2008

Recorrente: A
Recorrido: B







   1. Relatório
   No âmbito do presente processo penal, foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido B pela prática dos crimes de falsificação de documento de especial valor e de burla qualificada, previstos nos art.ºs 245.º e 211.º, n.º 4, al. a) do Código Penal.
   Em seguida, o assistente A apresentou o pedido de indemnização civil enxertado contra o arguido e outros, com pedidos vários.
   Por despacho da juíza do Tribunal Judicial de Base (fls. 52 e 53 dos presentes autos), não foi admitido o pedido de indemnização civil.
   Inconformado com esta decisão, o assistente recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 485/2008, foi negado provimento ao recurso.
   Deste acórdão vem agora o assistente recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. Ao presente recurso deve ser atribuído efeito suspensivo e ser subido junto com o processo, sob pena de haver grande possibilidade de a sentença sobre o recurso se tornar inútil, e de fazer o recorrente suportar despesas irrazoáveis.
   2. O pedido de indemnização civil intentado ao TJB foi rejeitado por despacho do Juiz, pelo que o recorrente vem interpor recurso ao TSI.
   3. Porém, o TSI negou provimento ao recurso, motivo pelo qual, o recorrente vem interpor o presente recurso.
   4. O fundamento em que se baseia a sentença recorrida é a existência de excepção ao art.º 7.º do CPP. Ou seja, o recurso foi rejeitado ao abrigo do art.º 71.º, n.º 4 do CPP.
   5. No presente caso a data de audiência já foi marcada, e mesmo que não se altere a data de julgamento da 1.ª instância, se ninguém retardar dolosamente o processo, ainda pode ser processado um processo ordinário de declaração dentro do prazo já fixado, tais como citação, contestação, entre outras.
   6. Na realidade, em relação ao pedido civil intentado num processo penal, só pode ser aplicado um processo sumário declarativo.
   7. Por este motivo, entende o recorrente que não está preenchido o requisito de “retardamento intolerável do processo penal” que está previsto no art.º 71.º, n.º 4 do CPP.
   8. Pelo que, a sentença recorrida fez uma má interpretação do requisito de “retardamento intolerável do processo penal” previsto no art.º 71.º, n.º 4 do CPP, o que consubstancia um “vício de erro na interpretação das leis”, devendo ser revogado.
   9. Entende o recorrente que, fazendo uma correcta interpretação dos art.ºs 7.º e 71.º, n.º 4 do CPP, o tribunal deve revogar a sentença recorrida, e que dada a simplicidade do caso, o tribunal de recurso pode directamente proferir decisão, ordenando o 3.º Juízo Criminal do TJB a admitir o pedido de indemnização civil e prosseguir os procedimentos subsequentes.”
   Pedindo que seja revogado o acórdão recorrido e determinado que o Tribunal Judicial de Base admita o pedido de indemnização civil do recorrente com o prosseguimento dos trâmites posteriores.
   
   O arguido respondeu pela irrecorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância e entendeu que devia ser mantida a decisão da primeira instância de não admissão do pedido de indemnização civil.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Recorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância relativo ao pedido de indemnização civil
   O arguido, ora recorrido, suscitou a questão de irrecorribilidade do acórdão de segunda instância, fundamentando no disposto do art.º 390.º, n.º 1, al. g) do Código de Processo Penal (CPP) por moldura penal dos crimes imputados ao arguido e na aplicação subsidiária do art.º 638.º, n.º 2 do Código de Processo Civil por confirmação da decisão de primeira instância sem voto de vencido.
   
   É manifesta a falta de razão do recorrido, pois não atendeu ao disposto no n.º 2 do mesmo art.º 390.º do CPP.
   Segundo este número, “o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido.”
   Ora, em matéria cível, a alçada do Tribunal de Segunda Instância é de um milhão patacas (art.º 18.º, n.º 1 da Lei n.º 9/1999).
   O recorrente indicou o valor do pedido de indemnização civil em mais de cinquenta e dois milhões de patacas.
   As decisões das instâncias são no sentido de rejeitar o pedido de indemnização civil. É aquele valor o de sucumbência.
   Logo, o acórdão recorrido é desfavorável para o recorrente em valor manifestamente superior à metade da alçada do Tribunal de Segunda Instância e, em consequência, é de admitir o presente recurso.
   
   
   2.2 Admissibilidade do pedido de indemnização civil
   No pedido de indemnização civil apresentado pelo recorrente, com base essencialmente na falsidade da procuração de 16 de Março de 2001 que foi usada na transmissão de propriedade do imóvel em causa de que o recorrente era um dos proprietário, foram formulados os seguintes pedidos:
   - declarar nula a procuração obtida pelo 1º demandado;
   - declarar nulo o contrato-promessa celebrado entre os 1º e 2º demandados;
   - declarar nulo o contrato tripartida celebrado entre os 1º a 3º demandados;
   - declarar nulo o contrato de compra e venda do respectivo prédio entre os 1º e 2º demandados no Cartório Notarial;
   - ordenar a Conservatória do Registo Predial a cancelar o registo de propriedade e todos os outros relacionados com esta, incluindo o de ónus de hipoteca, do respectivo imóvel;
   - ordenar a Conservatória do Registo Predial a registar o demandante como proprietário do referido imóvel em porção de 50%;
   - e subsidiariamente condenar o 1º demandado a pagar ao demandante a indemnização patrimonial e não patrimonial no valor total não inferior a MOP$50.204.758,00 e juros.
   
   O Tribunal Judicial de Base não admitiu o pedido de indemnização civil por duas razões:
   Primeira, a inconveniência de conhecer no processo penal de todas as questões de indemnização do assistente, devido à apreciação de outros factos relevantes com a protelação inevitável do processo penal.
   Segunda, a existência de litispendência relativa ao processo civil n.º CV3-05-0029-CAO.
   Decisão essa foi mantida pelo acórdão do Tribunal de Segunda Instância ora recorrido.
   
   O art.º 60.º do CPP consagra o princípio de adesão do pedido de indemnização civil ao processo penal:
   “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, em acção cível, nos casos previstos na lei.”
   
   Mesmo que o pedido de indemnização civil for deduzido no processo penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, conforme o prescrito no art.° 121.° do Código Penal.
   E segundo o art.° 62.°, n.° 1 do CPP, tem legitimidade para deduzir tal pedido o lesado, ou seja, a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, contra arguido e pessoa com responsabilidade meramente civil, ao abrigo do n.° 2 do mesmo artigo.
   Assim, estamos no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos e o pedido de indemnização civil visa os danos causados pelo crime e por meio do qual se pretende a sua reparação no processo penal.
   Nos termos do art.° 556.° do Código Civil, a obrigação de indemnizar um dano consiste em reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. É a chamada teoria de reconstituição da situação actual hipotética a que a lei dá prevalência como primeiro escopo de reparação do dano. Só quando a reconstituição natural não for possível, total ou parcialmente, ou for excessivamente onerosa para o devedor, se procura a indemnização em dinheiro como sucedâneo (art.º 560.° do Código Civil).
   Para fundamentar o pedido de indemnização civil no sentido de reconstituir a situação actual hipotética, é possível que seja necessária a alegação de novos factos não constantes da acusação ou pronúncia para conhecer toda a extensão do dano sofrido por lesado e indagar a verificação dos requisitos para alcançar a reconstituição natural, sendo assim perfeitamente normal a introdução de novos factos com a dedução do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal para serem tratados em audiência de julgamento juntamente com os factos acusatórios.
   
   No presente processo penal, os pedidos formulados pelo recorrente no seu pedido de indemnização civil enxertado são em abstracto susceptíveis de reconstituir a sua situação actual hipotética como reparação natural dos danos sofridos, pelo que a simples introdução de novos factos relevantes e causas de pedir, devido à dedução do pedido de indemnização civil, com o natural aumento do tempo necessário para a conclusão do julgamento do processo penal, não constituir, em princípio, obstáculo à admissão do pedido de indemnização civil enxertado.1
   
   
   2.4 Litispendência com uma acção cível
   Mas existe uma situação que não pode ser menosprezada ao indagar a possibilidade do exercício conjunto da acção penal e civil.
   Foi instaurada pelo próprio recorrente uma acção civil praticamente idêntica ao presente pedido de indemnização civil em Maio de 2005, ainda antes da dedução da acusação pelo Ministério Público datada de Setembro de 2007. Tal acção civil está pendente após os articulados cujo trâmite foi ordenado suspenso para aguardar o julgamento do presente processo penal.
   Trata-se da acção comum de declaração com processo ordinário de n.° CV3-05-0029-CAO em que são autor o ora recorrente e réus o arguido do presente processo penal e C, que são, por sua vez, os dois primeiros demandados civis do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal. Como pedido o recorrente requer que sejam declarados nulos a procuração de 16 de Março de 2001, a venda do imóvel a C e o registo desta transmissão de propriedade, tendo por fundamento a falsidade daquela procuração.
   No presente processo penal, o pedido de indemnização civil apresentado pelo ora recorrente foi proposta ainda contra o banco que concedeu empréstimo a C com garantia de hipoteca do imóvel em causa e o outro comproprietário do mesmo imóvel, com os pedidos, para além dos idênticos aos da acção cível, de anulação do registo de hipoteca, de registar o recorrente como proprietário do imóvel na quota de 50%, bem como indemnização em subsidiário. O principal fundamento do pedido de indemnização civil enxertado também é a falsidade da referida procuração.
   Assim, é evidente que existe litispendência, pelo menos em relação aos pedidos fundamentais da acção cível e do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal, o que determinará a extinção da instância do pedido de indemnização civil enxertado (art.°s 414.º, 418.º, n.º 1, 412.°, n.° 2 e 230.°, n.° 1, al. e) do Código de Processo Civil).
   Na verdade, pode ser deduzido em acção cível em separado o pedido de indemnização civil quando foi formulado contra, para além do arguido penal, outras pessoas com responsabilidade meramente civil (art.º 61.º, n.º 1, al. f) do CPP).
   Considerando o disposto no art.° 71.°, n.° 4 do CPP, é de manter a decisão de não admissão do pedido de indemnização civil do recorrente no presente processo penal.
   O presente recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
   Nos termos do art.º 410.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, é o recorrente condenado a pagar 4 UC.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 4 UC.
   
   
   Aos 10 de Dezembro de 2008

Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Questão semelhante foi decidida no mesmo sentido no acórdão do TUI de 18 de Julho de 2007 proferido no processo n.° 31/2007.
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Processo n.º 48 / 2008 9