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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso laboral
N.º 2 / 2008

Recorrente: A
Recorrido: B






   1. Relatório
   B instaurou uma acção ordinária laboral contra a A, pedindo que esta seja condenada a pagar ao autor determinada quantia em dinheiro por violação dos direitos ao descanso semanal, anual e feridos obrigatórios, danos não patrimoniais e restituição dos descontos efectuados pelo autor para o Fundo dos Trabalhadores da A.
   Por sentença do Tribunal Judicial de Base, a acção foi julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar à autora MOP$558.612,50 a título de compensação pelo não gozo de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios, e os respectivos juros.
   Inconformada com a decisão, a ré recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 439/2007, foi anulado o julgamento efectuado no Tribunal Judicial de Base por deficiência da resposta a quesitos.
   Deste acórdão vem agora a ré recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   - O acórdão de que ora se recorre violou os art.ºs 571.º e 629.º do CPC.
   - Mais do que deficiente, a douta decisão do TSI ora em crise é contraditória.
   - De facto, constam do processo em primeira instância “todos os elementos de prova que serviram de base à decisão”. Termos em que entende a recorrente que o tribunal a quo não podia ter utilizado da faculdade ou do poder verdadeiramente excepcional previsto no n.° 4 do art.º 629.º do CPC.
   - Face à contradição insanável entre o julgamento da matéria de facto e a decisão de condenação da recorrente, deveria ter havido uma reparação da decisão da primeira instância feita pelo TSI.
   - A ora recorrente entende que, mais do que deficiência entre a matéria de facto provada e a decisão final, o que existe é uma contraditoriedade da decisão de facto, que apenas e só poderia ter levado à absolvição da recorrente do pedido.
   - Não pode levar à condenação da ora recorrente em custas judiciais.
   - A regra da insindicância da apreciação pelo TUI das decisões do TSI, no âmbito do art.º 629.º do CPC, não tem consagração legal em Macau.
   - Assim, entende a recorrente, que em Macau, o Tribunal de Última Instância pode verificar, sindicar ou apreciar da conformidade dos poderes exercidos pelo TSI. Não estamos no reino dos factos, mas da censura legal e judicial dos poderes decisórios do tribunal de segunda instância.
   - A anulação do julgamento pelo TSI, não retira a contradição entre a matéria de facto considerada provada e a decisão de direito que foi proferida pelo TJB.
   
   O recorrido apresentou resposta no sentido de manter o acórdão recorrido.
   
   Por requerimento a fls. 474, veio o autor recorrido declarar que se conformava com a sentença (de primeira instância), reduzindo os seus pedidos aos montantes da condenação da ré pelo Tribunal Judicial de Base. A desistência parcial do pedido foi julgada válida.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de factos
   Foram considerados provados os seguintes factos pelas instâncias:
   “1. A ré tem por objecto social a exploração de jogos de fortuna e azar, a indústria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestres, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiros, comércio de importação e exportação (A).
   2. Até meados de 2002, a ré foi concessionária de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna e azar ou outros, em casinos (B).
   3. Em 15 de Janeiro de 1971, o autor iniciou uma relação laboral com a ré, sob a direcção efectiva, fiscalização e mediante retribuição por parte desta (C).
   4. A função do autor foi prestar assistência a clientes da ré (D).
   5. A referida relação entre autor e ré prolongou-se até 22 de Julho de 2002 (E).
   6. O horário de trabalho do autor foi sempre fixado pela ré, em função das suas necessidades, por turnos diários, em ciclos de três dias, num total de oito horas, alternadas de quatro em quatro horas, existindo apenas o período de descanso de oito horas diárias durante dois dias e um período de dezasseis horas de descanso no terceiro dia (F).
   7. O rendimento auferido pelo autor tinha uma componente fixa e uma componente variável (G).
   8. Esta parte variável correspondia à quota parte do autor nas gorjetas atribuídas pelos clientes da ré (H).
   9. Desde a data em que a ré iniciou a actividade de exploração de jogos de fortuna e azar, as gorjetas dadas a cada um dos seus trabalhadores pelos seus clientes eram por si reunidas, contabilizadas e depois distribuídas a todos os trabalhadores dos casinos, de acordo com a categoria profissional a que pertenciam (I).
   10. A componente fixa da remuneração do autor foi de MOP$4,10 desde a sua contratação até Junho de 1989, de Julho de 1989 a Abril de 1995 foi de HK$10,00 e desde Maio de 1995 passou a ser de HK$ 15,00 (J).
   11. O rendimento diário auferido pelo autor de 1971 a 1983 foi no montante médio diário de MOP$ 296,00 (MOP$9.000,00 por mês) (resposta ao item 1.°).
   12. Em 1984 esse rendimento foi no montante médio diário de MOP$174,00 (resposta ao item 2.°).
   13. Em 1985 foi de MOP$ 187,00 (resposta ao item 3.°).
   14. Em 1986 foi de MOP$ 181,00 (resposta ao item 4.°).
   15. Em 1987 de MOP$ 197,00 (resposta ao item 5.°).
   16. Em 1988 foi de MOP$ 200,00 (resposta ao item 6.°).
   17. Em 1989 foi de MOP$ 279,00 (resposta ao item 7.°).
   18. Em 1990 foi de MOP$ 326,00 (resposta ao item 8.°).
   19. Em 1991 foi de MOP$ 313,00 (resposta ao item 9.°).
   20. Em 1992 foi de MOP$ 294,00 (resposta ao item 10.°).
   21. Em 1993 foi de MOP$ 294,00 (resposta ao item 11.°).
   22. Em 1994 foi de MOP$ 304,00 (resposta ao item 12.°).
   23. Em 1995 foi de MOP$ 321,00 (resposta ao item 13.°).
   24. Em 1996 foi de MOP$ 302,00 (resposta ao item 14.°).
   25. Em 1997 foi de MOP$ 319,00 (resposta ao item 15.°).
   26. Em 1998 foi de MOP$ 313,00 (resposta ao item 16.°).
   27. Em 1999 foi de MOP$ 257,00 (resposta ao item 17.°).
   28. Em 2000 foi de MOP$ 307,00 (resposta ao item 18.°).
   29. Em 2001 foi de MOP$ 317,00 (resposta ao item 19.°).
   30. Em 2002 foi de MOP$ 450,00 (resposta ao item 20.°).
   31. O autor, durante o período de 15 de Janeiro de 1971 a Outubro de 2000, nunca gozou de quaisquer dos dias de descanso anual, de descanso semanal e dos feriados obrigatórios (resposta aos itens 23.° a 25.°).
   32. Por causa do exposto, o autor andava cansado e sem capacidade e tempo de se relacionar socialmente e com a sua família (resposta aos itens 26.° e 27.°).
   33. Quando celebrou o contrato o autor foi informado pela ré que para além de um salário diário fixo, receberia uma quota parte do total das gorjetas entregues pelos clientes da ré a todos os trabalhadores (resposta ao item 28.°).
   34. A ré informou os seus trabalhadores que aufeririam um rendimento global composto por uma remuneração fixa diária e uma quota parte nas gorjetas recebidas dos clientes, de montante imprevisível, perdendo tal quantia caso não comparecessem ao trabalho (resposta ao item 29.°).
   35. O autor não compareceu ao serviço nos dias referidos no documento junto aos autos a fls. 145, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (resposta ao item 38.º).”
   
   
   2.2 Desistência parcial do pedido
   O autor recorrido veio desistir parcialmente do pedido, reduzindo este ao montante da condenação da ré pelo Tribunal Judicial de Base, ou seja, no valor de MOP$558.612,50. Foi julgada válida a desistência parcial do pedido.
   Mas tal desistência e a sua implicação no valor económico da causa não impede o prosseguimento da instância do presente recurso
   Segundo o art.º 250.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, sendo irrelevante a posterior desistência parcial do pedido feita por autor.
   
   Assim, o valor da presente acção mantém-se em MOP$1.456.427,00, tal como foi indicado pelo autor na petição inicial.
   
   Mesmo com a anulação do julgamento de primeira instância pelo Tribunal de Segunda Instância e a desistência parcial do pedido feita pelo autor, entendemos que o valor de sucumbência da ré, para efeito de recorribilidade da decisão de segunda instância, continua a ser MOP$558.612,50, ao abrigo do art.º 583.º, n.º 1 do CPC.
   Por ser superior à alçada do Tribunal de Segunda Instância o valor da acção, com o valor de sucumbência da ré que ultrapassa a metade dessa alçada, mantém-se a recorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância, pelo que prosseguimos a apreciação do presente recurso.
   
   
   2.3 Sindicabilidade da decisão sobre matéria de facto
   A recorrente entende que há contradição entre os factos provados e a decisão de primeira instância e que o Tribunal de Segunda Instância devia absolver a recorrente, em vez de anular o julgamento de primeira instância, por não ter sido provado que a ré não procedeu ao pagamento da compensação pelo trabalho prestado pelo autor nos dias de descanso. E pugna pela possibilidade de o Tribunal de Última Instância sindicar a decisão do Tribunal de Segunda Instância de anular o julgamento de primeira instância em uso do poder previsto no n.º 4 do art.º 629.º do Código de Processo Civil (CPC).
   
   O tribunal recorrido considerou que as respostas aos quesitos n.ºs 23 a 25 eram deficientes por faltar de referência ao facto alegado pelo autor e que consistia em ter trabalhado em tais descansos e feriados “sem que lhe fosse paga a respectiva compensação monetária de acordo com o previsto na Lei”, que não justifica a condenação da ré na pagamento de compensação do trabalho prestado pelo autor em dias de descanso semanal, anual e feriado obrigatório. Ao abrigo do n.º 4 do art.º 629.º do CPC, foi anulado o julgamento efectuado em primeira instância para que após a sanação da apontada deficiência, se profira nova decisão, podendo o Tribunal Judicial de Base, se entender adequado, ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos de matéria de facto com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
   
   Perante esta decisão oficiosamente tomada pelo tribunal recorrido, põe-se a questão da sua sindicabilidade pelo Tribunal de Última Instância.
   A questão já foi abordada nos acórdãos deste Tribunal de 23 de Maio de 2001 do processo n.º 5/20011, de 19 de Outubro de 2005 do processo n.º 18/2005 e, nos casos semelhantes ao presente, de 11 de Março de 2008 do processo n.º 51/2007 e de 5 de Novembro de 2008 do processo n.º 27/2007, e tem sido decidida sempre no mesmo sentido que será mantido no presente recurso.
   
   De acordo com o art. 47.º, n.º 2 da Lei de Bases de Organização Judiciária (Lei n.º 9/1999):
   “Excepto disposição em contrário das leis de processo, o Tribunal de Última Instância, quando julgue em recurso não correspondente a segundo grau de jurisdição, apenas conhece de matéria de direito.”
   
   Ou seja, no julgamento do recurso de terceiro grau, como no presente caso, o Tribunal de Última Instância conhece, em princípio, apenas matéria de direito, salvo disposição em contrário de leis processuais.
   Assim, é mister atender aos seguintes artigos do Código de Processo Civil:
“Artigo 649.º
(Âmbito do julgamento)
   1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
   2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   
Artigo 650.º
(Insuficiência da matéria de facto e contradição na decisão de facto)
   1. Se entender que a matéria de facto pode e deve ser ampliada para fundamentar a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão de facto que inviabilizam a decisão de direito, o Tribunal de Última Instância manda julgar novamente a causa no Tribunal de Segunda Instância.
   2. O Tribunal de Última Instância fixa logo o regime jurídico aplicável ao caso; se, por insuficiência da matéria de facto, ou contradição na decisão de facto, o não puder fazer, fica a nova decisão que o Tribunal de Segunda Instância proferir sujeita a recurso para o Tribunal de Última Instância, nos mesmos termos que a primeira.”
   
   Destes dois artigos citados pode chegar às seguintes conclusões:
   O Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime jurídico aos factos fixados pelo tribunal recorrido e só pode alterar a decisão deste sobre matéria de facto quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   E pode anular a decisão recorrida e mandar julgar novamente a causa no tribunal recorrido quando seja insuficiente a matéria de facto ou ocorra contradição na decisão de facto.
   
   O art.º 629.º, n.º 4 do CPC em que fundamenta a decisão do tribunal recorrido permite que “o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
   E considerar se as respostas a quesitos são deficientes, obscuras, contraditórias ou até ininteligíveis constitui uma questão de facto e não de direito, pois está em causa a percepção por homem médio de realidade veiculada pelos factos constantes das respostas a quesitos e a sua comparação, que não envolve qualquer qualificação ou apreciação jurídicas.
   Sendo uma decisão sobre questão de facto, é insindicável pelo Tribunal de Última Instância em via de recurso, salvo houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   
   A matéria quesitada nos n.ºs 23 a 25 prende-se com a situação laboral do autor nos dias de descanso semanal, anual e de feriados obrigatórios durante um determinado período.
   Ao considerar as respostas aos quesitos em causa deficientes, o tribunal recorrido não violou nenhuma norma legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   Assim, por falta do poder de cognição, o Tribunal de Última Instância não aprecia, no presente recurso, a decisão do tribunal recorrido de anular o julgamento de primeira instância por deficiência de respostas a quesitos com base no poder conferido pelo n.º 4 do art.º 629.º do CPC.
   
   Por manterá a decisão do tribunal recorrido de anular o julgamento realizado pelo Tribunal Judicial de Base e consequentemente serão dadas novas respostas a quesitos, fica prejudicado o conhecimento da alegada contradição entre os factos provados e a sentença condenatória da primeira instância.
   
   
   2.4 Responsabilidade por custas
   A recorrente entende que o acórdão recorrido não pode levar a sua condenação por custas.
   
   Trata-se manifestamente de um equívoco da recorrente.
   Na parte de decisão o tribunal recorrido limitou a fixar as custas a final, ou seja, a recorrente não foi condenada em custas na segunda instância. De acordo com o disposto no art.º 376.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas ficam a cargo da parte vencida no final do processo, pois a decisão de anular o julgamento de primeira instância foi tomada oficiosamente pelo Tribunal de Segunda Instância, que não foi suscitada pelas partes do processo, portanto, não há parte vencida no recurso de segunda instância.
   Já nesta instância, a recorrente será responsável por custas do presente recurso, porque deu causa ao presente recurso e ficará vencida.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
   Custas pela recorrente.
   
   Aos 10 de Dezembro de 2008


Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM, 2001, p. 593.
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Processo n.º 2 / 2008 1